Opinião

Desestatização da Sabesp precisa respeitar o Marco Legal do Saneamento

Autor

  • Marcelo Figueiredo

    é advogado consultor jurídico professor associado dos cursos de graduação e pós-graduação de Direito Constitucional e Direito Constitucional Comparado da PUC-SP.

31 de março de 2024, 7h07

Quase 35 milhões de pessoas no Brasil vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto, resultando em doenças que poderiam ser evitadas, e que podem levar à morte por contaminação.

Esse é o cenário quase dois anos depois de entrar em vigor o novo Marco do Saneamento, sancionado na Lei 14.026/2020, insuficiente para que sejam cumpridas as metas da legislação atualizada. Somente 50% do volume do esgoto do país recebe tratamento, o que equivale a milhões de litros de esgoto despejados diariamente na natureza. A falta de saneamento básico mata 11 mil pessoas por ano no Brasil, de crianças a idosos.

O cenário acima descrito é suficiente para compreendermos a necessidade de investir e regular cada vez melhor o setor de saneamento básico no Brasil incentivando fortes investimentos do setor público e do setor privado.

Definidos na Lei Federal nº 11.445/2007, saneamento básico é o conjunto de serviços infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo de águas pluviais urbanas.

A quem compete prestar esses quatro serviços?

Os quatro são serviços de interesse local e de titularidade municipal. Como se sabe não existe interesse exclusivamente local, mas predominantemente local.

Ocorre que os serviços de saneamento básico estão umbilicalmente ligados a outros temas como o domínio da água, a energia elétrica e hidráulica, aos recursos hídricos, o que implica em uma necessária harmonia ou coordenação entre ou com as competências estaduais e federais, a depender da matéria.

Ademais, nas regiões metropolitanas o § 3º, do artigo 25 da Constituição atribui aos estados a competência para, mediante lei complementar, instituir as regiões (…) e “para integrar a organização, o planejamento e a execução de função pública de interesse comum”.

Divulgação

Então, ao menos nas regiões metropolitanas, parece que o serviço de saneamento básico deixa de ser um serviço exclusivo de interesse local, e passa a ser regional, de titularidade dos estados. É certo que a doutrina não é pacífica a respeito.

O que é possível afirmar talvez de uma forma menos peremptória é que, nas regiões metropolitanas, os estados têm competência para impor condicionamentos exigidos pelo interesse regional; detêm a titularidade para prestar os serviços que extravasem os limites territoriais do município.

Privatização já judicializada

Inicialmente uma palavra sobre o que achamos da privatização ou desestatização da paulista Sabesp. Com ela não concordamos. Não vemos razão para privatizar uma empresa de sucesso, com grande eficiência e excelente governança corporativa. Mas nossa opinião não importa pois, não somos eleitos pelo povo para tomar decisões políticas.

Apenas deixamos claro que aparentemente a pretendida desestatização é uma pretensão argentária para a entrada de mais recursos no tesouro estadual, sem justificativa racional ou plausível.

Na análise jurídica, ao examinarmos o Projeto de Lei nº 1.501/2023 da Assembleia Legislativa de São Paulo, verificamos a nítida intenção de desestatizar a companhia.

O primeiro ponto que nos chama a atenção é a previsão na Constituição do Estado de São Paulo em seu artigo 215 e 216 o seguinte:

“Do Saneamento

Artigo 215 – A lei estabelecerá a política das ações e obras de saneamento básico no Estado, respeitando os seguintes princípios:

I – Criação e desenvolvimento de mecanismos institucionais e financeiros, destinados a assegurar os benefícios do saneamento à totalidade da população;

II – Prestação de assistência técnica e financeira aos Municípios, para o desenvolvimento dos seus serviços;

III – orientação técnica para os programas visando ao tratamento de despejos urbanos e industriais e de resíduos sólidos, e fomento à implantação de soluções comuns, mediante planos regionais de ação integrada.

Artigo 216 – O Estado instituirá, por lei, plano plurianual de saneamento estabelecendo as diretrizes e os programas para as ações nesse campo.

§1º – O plano, objeto deste artigo, deverá respeitar as peculiaridades regionais e locais e as características das bacias hidrográficas e dos respectivos recursos hídricos.

§2º – O Estado assegurará condições para a correta operação, necessária ampliação e eficiente administração dos serviços de saneamento básico prestados por concessionária sob seu controle acionário. (negrito do autor do artigo)

§3º – As ações de saneamento deverão prever a utilização racional da água, do solo e do ar, de modo compatível com a preservação e melhoria da qualidade da saúde pública e do meio ambiente e com a eficiência dos serviços públicos de saneamento.”

Algumas vozes da doutrina vislumbram no artigo 216, § 2º, um empecilho à pretendida desestatização pois a sociedade de economia mista estaria contemplada em dispositivo da Constituição estadual.

No mesmo sentido, entende-se que a desestatização da Sabesp obrigatoriamente faria com que o estado passasse a ser acionista minoritário, perdendo a maioria ou uma posição de maioria ou dominante. Por isso, advoga-se que a privatização ou desestatização da Sabesp necessita alteração da Constituição estadual.

É uma posição, reconheça-se, com argumentos normativos atrativos.

Pessoalmente tenho dúvidas se a Constituição do Estado de São Paulo. Por esse dispositivo estaria vedando qualquer alteração do controle acionário da companhia. Ou ainda, se pelo fato de mencionar a estatal, estaria protegendo-a a tal ponto que sua modificação acionária estaria vedada.

Pois bem, para alguns como dissemos anteriormente, a desestatização (tout court) da Sabesp estaria vedada caso o Estado passasse a ser minoritário entre os acionistas, perdendo parte de seu controle acionário, ou maioria. Para essa mesma corrente, a Sabesp somente poderia ser alienada com a alteração da Constituição estadual. É uma posição respeitável.

Por fim argumenta-se que não há no âmbito estadual um Programa Nacional de Desestatização como ocorreu no âmbito federal com a Lei nº 9.491/97.  Não haveria desse modo uma norma geral de desestatização a autorizar a operação.

Não foi o que achei em minhas pesquisas.

De fato, temos a Lei estadual 17.853 de 8 de dezembro de 2023 que autoriza o Poder Executivo do estado de São Paulo a promover medidas de desestatização da Sabesp, segundo vários dispositivos que a lei comtempla.

A questão do controle parece equacionada pois em seu artigo 3º estabelece:

“O estatuto social da companhia deverá contemplar a previsão de ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva do estado de São Paulo, nos termos do §7º, do artigo 17 da Lei Federal nº 6.404, de 15 de dezembro  de 1976, que dará poder de veto nas deliberações sociais relacionadas à denominação e sede da companhia, e alteração do objeto social que implique supressão da atividade precípua de prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.”

Jurisprudência

Passamos a recordar alguns casos, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, que enfrentaram o tema da desestatização. É evidente que cada caso é único e não pode ser um prognóstico do que ocorrerá com o caso Sabesp. Mas é o que temos para ser analisado.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.341/600, requerente o governador do estado do Rio de Janeiro e Requerido a Assembleia Legislativa do mesmo estado, relator o ministro Néri da Silveira, julgado em 22/6/1995).

Nesta ação o governador do Rio trazia os artigos 69 e seu parágrafo único, e 99, XXXIII, da Constituição daquele estado, onde previa-se que as ações de sociedades de economia mista pertencentes ao estado não poderão ser alienadas sem autorização legislativa.

Do mesmo modo, o parágrafo único desse artigo 69 afirmava que as ações com direito a voto das sociedades de economia mista somente poderão ser alienadas, desde que mantido o controle acionário representado por 51% das referidas ações.

Por outro lado, o artigo 99 inciso XXXIII, dispunha que competia à Assembleia Legislativa a autorização, criação, fusão, ou extinção de empresas públicas ou de economia mista bem como o controle acionário de empresas particulares pelo estado.

Sustentava o governador quanto ao inciso XXXIII, ofensa ao artigo 37, XII, da Constituição Federal, ao tornar privativa da Assembleia Legislativa, sem participação do governador, autorização para a criação, fusão ou extinção de empresas públicas e sociedades de economia mista, bem como o controle acionário das empresas particulares pelo Estado, em face da necessidade de sanção do chefe do Poder Executivo.

Nesta ação decidiu-se, no fundamental que: alienar o Estado o controle acionário de sociedade de economia mista traz a consequência de descaracterizá-la como tal, o que equivaleria à sua extinção. Ora, como sem lei não pode ser extinta sociedade de economia mista, do mesmo modo, sem lei, não cabe alienar o controle acionário.

Não é o caso de exigir-se autorização legislativa se a alienação de ações não importar perda do controle acionário da sociedade de economia mista, pelo Estado. Não será, destarte, admissível no sistema da Constituição, máxime à vista de seus artigos 173 e 174, que norma de Constituição estadual proíba, no Estado-membro, possa este reordenar; no âmbito da própria competência, sua posição na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevida ou desnecessariamente exploradas pelo setor público.

Ao final julgou-se procedente, em parte, a ação, para declarar inconstitucionais o parágrafo único do artigo 69, e o inciso XXXIII do artigo 99, ambos da Constituição do Rio de Janeiro, bem assim para declarar parcialmente inconstitucional o artigo 69, “caput”, da mesma Constituição, quanto a todas as interpretações que não sejam a de considerar exigível a autorização legislativa somente quando a alienação de ações do Estado em sociedade de economia mista implique perda de seu controle acionário.

Alguns anos depois, em 8/2/2021, o STF na ADI nº 6.241-DF, requerente o Partido Democrático Trabalhista (PDT) também se discutia a desestatização de empresas públicas e sociedades de economia mista.

Nesta ação colhe-se os seguintes relevantes trechos da decisão, que reporta-se a outros precedentes do STF, a saber: a ADI 1.724, relator ministro Gilmar Mendes, a medida cautelar na ADI nº 3.578, a ADI nº 3.577, relator ministro Dias Toffoli:

A titularidade da competência para decisões de intervenção estatal na economia pela criação ou desestatização de empresas estatais é do Poder Legislativo. Entretanto, a Constituição da República de 1988 não foi explícita quanto à forma legislativa a ser adotada no desempenho dessa competência para a desestatização, se haveria de ser por lei geral ou necessariamente por lei específica.

Para a desestatização de empresa estatal é suficiente a autorização genérica prevista em lei que veicule programa de desestatização. O que essa legislação há de observar é que seja aquele objeto com a previsão do fim determinado.

Autorização legislativa genérica não corresponde a delegação discricionária e arbitrária ao chefe do Poder Executivo.

Finalmente, a ação foi conhecida na parte em que se impugna a autorização de inclusão de empresas estatais no plano de desestatização e, nessa parte, julgar improcedente o pedido.

Por fim, permitam-me comentário final.

Seja qual for o destino da impugnação judicial da matéria nos tribunais brasileiros, é importante recordar que temos um Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil. A Lei 14.026/2020 está em vigor e todos os seus dispositivos devem ser respeitados, com ou sem a desestatização da Sabesp.

Esperemos que a sociedade organizada e os técnicos mais experientes na matéria de saneamento se façam ouvir perante o Judiciário e o Legislativo para que o melhor ocorra, se possível mantendo-se a empresa como é hoje, uma excelente sociedade de economia mista.

Autores

  • advogado e consultor jurídico em Direito Público. Professor Associado de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da PUC-SP onde leciona nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação. Presidente da ABCD- Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas, seção brasileira do Instituto Ibero-Americano de Direito Constitucional com sede no México.

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