Opinião

Testemunho de ouvir dizer é algo que merece ser proscrito

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28 de março de 2024, 19h35

“Certas pessoas são maldosas unicamente pela necessidade que têm de falar. O que dizem, conversa de salão, tagarelice nas salas de espera, é como essas lareiras que consomem a lenha depressa, precisam de muito combustível, e o combustível é a vida dos outros.”
Victor Hugo [1]

Em nenhum outro processo a necessidade da prova testemunhal é tão sentida como no processo penal, ao ponto de Carnelutti ter dito, sem nenhum exagero, que “o juízo penal pode-se considerar indubitavelmente como o reino da prova testemunhal” [2].

Exclua-se a prova testemunhal do juízo penal e a administração da justiça sofreria uma paralisia incurável. Daí a clássica frase de Bentham: “Witnesses are the eyes and the ears of justice” [3].

Deve-se indagar: o chamado testemunho de ouvir dizer ou testemunho indireto preenche essa qualidade de ser a testemunha “os olhos e os ouvidos da justiça”? Mais especificamente: pode a Justiça pronunciar o acusado e levá-lo a julgamento pelo Júri com base no testemunho de ouvir dizer? Vejamos.

Segundo Carmignani, a palavra “testemunha” na sua origem latina (antestes, antesto) indica uma pessoa que esteve diante de um fato e que por isso é a sua “imagem supérstite”: o que resta do fato é o que essa testemunha preserva dele na sua pessoa [4]. Logo, o testemunho propriamente dito é somente o direto.

El testigo indirecto o mediato”, afirma Gorphe, “que no puede afirmar más que un vago rumor o una frágil opinión, no es digno de este nombre[5].

Com isso em mente, dificilmente se poderia aceitar o testemunho indireto como uma fonte séria de convicção, pois se trata de um depoimento de uma pessoa que não presenciou o crime informando ter ouvido de uma outra pessoa — não identificada — detalhes sobre esse crime.

Conforme ensina o judicioso Bentham, o que é fundamental entender no testemunho de ouvir dizer é que apenas uma pessoa é certa, enquanto que a outra é sempre suposta. Diz o jusfilósofo inglês:

“A distinção entre estas duas pessoas é essencial; pois uma das testemunhas, aquela que depõe, é um personagem real e certo; enquanto que a suposta testemunha direta pode ser um personagem fictício ou, se sua existência for estabelecida, o que ela supostamente disse pode ser parcial ou totalmente falso. É necessário, portanto, fazer uma distinção entre esses dois narradores, aplicando àquele que não é ouvido o epíteto ‘supostamente’. Ele ‘supostamente’ existe; ele ‘supostamente’ falou; ele ‘supostamente’ falou aquilo que o outro afirma que ele falou; mas omitir a palavra ‘supostamente’ é resolver de antemão o que provavelmente é o ponto em discussão.” [6] (tradução livre).

Como se vê, tudo, rigorosamente tudo a respeito da testemunha direta é suposto. Não há como retirar do testemunho indireto esse epíteto: o juiz sempre deverá supor tudo a respeito dessa testemunha cuja existência e identidade ele inutilmente busca descobrir.

E este é precisamente o ponto central da questão: se a testemunha de ouvir dizer acabar por declinar o nome, sobrenome, CPF, RG, endereço etc. da outra testemunha, isto é, se o juiz realmente conseguir chegar à testemunha direta, tal questão já não se resolveria pela discussão do valor do próprio testemunho de ouvir dizer: bastaria colher o depoimento da testemunha direta, e já não estaríamos mais no terreno do testemunho indireto, mas no do testemunho direto, e tudo se resolveria incidindo sobre este testemunho os elementos de garantia do processo penal (contraditório, publicidade, imediação, direito ao confronto, cross-examination etc.) e a valoração do juiz sobre esse testemunho mesmo e produzido nessas condições.

Logo, a única utilidade que a testemunha indireta teria neste particular caso é o de ter fornecido a testemunha direta, que passaria a ser o verdadeiro e único testemunho em discussão e valoração; de resto, ela já não importaria mais.

Perigos do testemunho indireto

Portanto, a rigor, a noção de testemunho indireto postula sempre que a testemunha direta não seja identificada: se o for, de testemunho indireto já não se trata mais. Assim, tirando esta hipótese em que a identidade da testemunha direta é estabelecida, o testemunho indireto propriamente dito sempre permanecerá indireto, do que deriva a necessidade de se verificar se como tal ele pode servir de convencimento para decisões judiciais, em especial à decisão de pronúncia.

De plano, a regra de Bentham impõe a resposta negativa, pois, do contrário, a decisão do juiz estaria trabalhando sempre no plano do “supostamente”. Ainda que o juiz não decline essa expressão em sua decisão, ele estará sempre fundamentando-a com base em todas essas suposições que incidem sobre a testemunha indireta.

Spacca

Nesse contexto, o fator “incontrolabilidade” da origem do testemunho de ouvir dizer faz com que nenhuma diferença se possa estabelecer entre ele e a pura e simples… fofoca ou boataria. Como pode o juiz se assegurar que essa testemunha original — cuja existência, recorde-se, ele supõe — realmente falou aquilo e, se o falou, o fez com seriedade, sem interesse na causa etc.?

Por mais esforço que o juiz empreendesse em buscar essa origem, a própria natureza do testemunho de ouvi dizer — o de ser um testemunho cuja testemunha originária é inacessível — o impede de fazê-lo, e o deixa então com duas alternativas: ou negar qualquer valor para semelhante tipo de testemunho; ou decidir com base em suposições, vale dizer, todas as suposições incidentes sobre a testemunha direta: ser “supostamente” existente, ter “supostamente” visto o fato, ter “supostamente” falado, ser “supostamente” verdadeiro o que ela falou… Essa é a escolha que a Justiça deve fazer, e tertium non datur.

O “ouvi dizer” em cadeia

O testemunho indireto ainda tem outro perigo. Embora ele não se confunda com a “voz pública”, pode no entanto gerá-la, o que é um fator agravante desse tipo de testemunho.

O testemunho de ouvir dizer tratado no parágrafo anterior é aquele que Bentham chama de “hearsay evidence of the first degree”, no qual existe apenas uma testemunha de ouvi dizer e a testemunha direta suposta. Mas pode acontecer o chamado “hearsay transmitted through several intermediate persons”, onde o testemunho vai produzindo um “ouvi dizer” em cadeia:

The statement of the supposed direct witness may pass through an infinite number of mouths. A hearsay, which passes through only one medium, is hearsay of the first degree; that which passes through two media is hearsay of the second degree, and so on.[7]

E como explica Montaigne, essa cadeia do testemunho de ouvir dizer faz com que aquele que menos, rectius, nada soube dos fatos pelos próprios sentidos seja aquele que com mais convicção afirma a verdade dos acontecimentos:

“É assim que o erro particular produz primeiramente o erro público e, por sua vez, o erro público produz o erro particular, ampliando e fortalecendo ambos à medida que passam de boca em boca, de modo que a testemunha mais distante se encontra mais bem informada do que a mais próxima, e a última pessoa informada mais persuadida do que a testemunha primitiva” [8] (tradução livre).

O caso Jean Calas

Logo, o testemunho de ouvir dizer, longe de colocar o juiz diante da (suposta) testemunha primitiva, tende a colocá-lo diante desse tipo desprezível de pessoa: aquele que menos sabe e que com mais convicção diz saber.

O perigo maior dessa cadeia do testemunho indireto é que ela logo adquire, pela credulidade excessiva de cada circunstante, um vigor considerável, hipótese em que ela irá fatalmente desaguar, rectius, se converter na temível “voz pública”.

Neste caso, o testemunho de ouvi dizer continua sendo tão inescrutável quando o de “first degree”, mas com uma agravante: a voz pública passa a ostentar um valor de prova por si mesma. Para explicar esse fenômeno, Bentham recorre a um pertinente e elucidativo caso: o julgamento de Jean Calas, um homem falsamente acusado e condenado à morte por supostamente ter matado o próprio filho.

Neste tenebroso episódio, iniciou-se, por um testemunho de ouvir dizer, do qual se seguiu outro, e mais outro… uma versão de que o filho de Jean Calas, que fora encontrado morto no porão da casa da família, tinha sido assassinado pelo próprio pai. Avaliando tal caso, Bentham demonstra que aquele testemunho de ouvir dizer em cadeia produziu um eco generalizado na pequena cidade, eco este que afirmava a culpabilidade de Jean Calas.

O que Bentham bem elucida é que esta voz pública foi necessariamente formada por todo esse “ouvi dizer” que foi se alastrando pela cidade, mas quando se tratava de pegar “parcelas” dessa voz pública para serem ouvidas, isto é, quando se tratava de chamar cada uma dessas pessoas — que, enquanto componentes da voz pública, encarniçadamente afirmavam a culpa de Calas — para depor em Juízo, nenhuma delas tinha a coragem de afirmar em Juízo, como testemunhas, o que, enquanto voz pública e publicamente, afirmavam com tanta segurança e sem espaço para dúvidas. Vale a pena reproduzir novamente o jusfilósofo inglês:

“No famoso caso de Calas, houve não menos do que cinco testemunhas intermediárias entre a suposta testemunha direta e a testemunha depoente; e aquela testemunha, que teria ouvido o pai ameaçar o filho, nem sequer foi identificada; desconhecia-se quem ela era, e ninguém jamais poderia dar algum traço dela. Em circunstâncias que excitam fortemente as paixões, uma cidade enche-se de clamores; as histórias, a princípio inconsistentes, gradualmente adquirem alguma uniformidade; a história é organizada; a crença de um forma a crença de outro; é uma epidemia de testemunhos; a dúvida desaparece; e a união dos ecos adquire força de prova. Foi o que aconteceu em Toulouse; mas logo foi visto qual é o valor de um boato público. Quando, em meio a esta fermentação, os juízes quiseram proceder a uma investigação judicial, a vila, que ressoava em todos os cantos os gritos da mais viva indignação contra os Calas, não conseguiu encontrar dentro dos seus muros um único homem que aparecesse contra eles. Não havia uma única pessoa que se apresentasse como testemunha do fato, assim que perceberam que para afirmar como testemunha teria de ser apresentando-se no tribunal em seu próprio nome e expondo-se a pena de falso testemunho. Não havia ninguém que sustentasse, pelo seu testemunho, o que todos diziam e repetiam aos quatro cantos; e esse eco generalizado, que prometia provas conclusivas, não conseguiu forneceu um único vestígio” [9] (tradução livre).

É preciso reafirmar o entendimento do STJ

Fica fácil notar que o testemunho de ouvir dizer não pode satisfazer o juiz, de acordo com que o artigo 411 lhe impõe: pronunciar o acusado por estar “convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”.

Se qualquer juiz pudesse se afirmar convencido de indícios suficientes de autoria ou de participação a partir do testemunho indireto, a decisão de pronúncia, cuja razão de ser é a de evitar que esses julgamentos apressados e sumários influenciem negativamente a Justiça e o juízo ponderado e refletido que ela deve pronunciar, perderia por completo tal função: ela seria um mero carimbo à voz pública ou ao testemunho de ouvir dizer.

A rigor, bem analisado o fenômeno, o juiz estaria ele próprio se unindo a esse eco, tornando a sua decisão não mais do que um “elo” dessa longa cadeia de ouvir dizer. Ele próprio, com a sua decisão, estaria dizendo: “Ouvi dizer que o réu pode ter matado a vítima, logo, pronuncio ele para ser julgado pelo Tribunal do Júri”.

Testemunho indireto é algo que merece ser proscrito, não podendo passar nem perto da jurisprudência de qualquer tribunal, senão para negá-lo veementemente. Logo, cumpre aos tribunais reafirmarem o que o Superior Tribunal de Justiça vem dizendo a partir de seus julgados: o testemunho de ouvir dizer não pode por si só sustentar a decisão de pronúncia, sob pena de reproduzirmos inúmeros “Calas” brasileiros pelo país afora.

 


[1] HUGO, Victor. Os miseráveis, Vol. I, Trad. Regina Célia de Oliveira, São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 188.

[2] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Vols. 1, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Editora Bookseller, 2004, p. 292.

[3] BENTHAM, Jeremy. A treatise on judicial evidence, London: Published by Law Journal of Quality Court, 1825, p. 226.

[4] CARMIGNANI, Giovanni. Teoria delle leggi della sicurezza sociale, Tomo IV, Pisa, 1832, p. 150.

[5] GORPHE, François. La critica del testimonio, Trad. Mariano, Ruiz-Funes, 2ª Edição, Editora Reus, Madrid, 1949, p. 12.

[6]The distinction between these two persons is essential; for, one of the witnesses, he who deposes, is a real and certain personage; while the supposed direct witness may be a fictitious personage, or, if his existence is established, what he is represented to have said, may be partly or totally false. It is necessary, therefore, to make a distinction between these two narrators, by applying to that one of them who is not heard, the epithet supposed. He is supposed to exist; he is supposed to have spoken; it is supposed that he may have said what the other affirms; but to omit the word supposed, is to grant beforehand what is probably the very point in dispute.” (A treatise…, p. 202)

[7] BENTHAM, Jeremy. Op. cit., p. 205.

[8] “C’est ainsi que l’erreur particulière fait premièrement l’erreur publique, et qu’à son tour l’erreur publique fait l’erreur particulière, s’étendant et se fortifiant toutes deux en passant de bouche en bouche, de manière que le plus éloigné témoin est mieux instruit que le plus voisin, et le dernier informé mieux persuadé que le premier.” (Pensées, maximes et sentences tirées des oeuvres de Michel Montaigne, Typographie L. Favre, 1888, p. 237)

[9] “In the famous case of Calas, there were no fewer than five intermediate witnesses between the supposed direct witness, and the deposing witness; and he, who was declared to have heard the father threaten his son, was not even named; he was some unknown person, and nobody could ever recollect him. In circumstances which strongly excite the passions, a town is filled with clamours; the stories, at first inconsistent, gradually acquire some uniformity; the history is arranged; the belief of one forms the belief of another; it is an epidemic of testimony; doubt disappears; and the union of the echoes acquires the force of evidence. This is what happened at Thoulouse; but it was soon seen what is the value of a public rumour. When, in the midst of this fermentation, the judges wished to proceed with a judicial investigation, the town, which resounded in every corner with cries of the most lively indignation against the Calas, could not find within its walls a single man who would appear against them. Not a single witness presented himself, so soon as he could do so only by coming forward in court in his own name, and exposing himself to the punishment of perjury. There was nobody who would support by his testimony what every body confidently said and repeated; and a universal report, which promised conclusive evidence, did not furnish a single trace.” (A treatise…, p. 205)

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