Opinião

Concessão do Habeas Corpus de ofício e a inserção do artigo 647-a do CPP

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24 de abril de 2024, 7h03

Para compreender a inclusão ao Código de Processo Penal do artigo 647-A e seu parágrafo único, promovida pela recém-publicada Lei Federal nº 14.836/2024, é imprescindível um breve retrospecto jurisprudencial que culminou com essa disposição legislativa.

De fato, ao longo de dois séculos o Supremo Tribunal Federal consolidou uma história em torno do Habeas Corpus que o privilegia, dentre as garantias constitucionais, como um robusto e amplo instrumento no exercício da liberdade de locomoção e salvaguarda a direitos fundamentais – especialmente, contra decisões judiciais flagrantemente ilegais ou teratológicas.

Em primeiro lugar, houve o voto vencido (e único, em oposição a outros nove votos que acompanharam o voto do ministro Costa Barrada, relator) proferido pelo ministro Pisa e Almeida no julgamento da primeira impetração com cunho político (HC 300) [1], no qual divergia para conceder a ordem por, sob a sua perspectiva, tratar-se de julgamento afeto à Suprema Corte.

Segundo o que apontou o ministro Aliomar Baleeiro [2], no início do século 20 houve dicotomia bem consolidada entre as doutrinas do Habeas Corpus postuladas por Rui Barbosa e o ministro Pedro Lessa: enquanto o primeiro traçou os contornos da hipertrofia do instituto, com a ampliação de casos que comportavam a sua concessão, o segundo vinculou sempre o Habeas Corpus à liberdade de locomoção, ao enunciar que “além da liberdade de locomoção, nenhuma outra há defensável pelo habeas corpus”, compreendendo como “exclusiva missão do habeas corpus garantir a liberdade individual na acepção restrita, a liberdade física, a liberdade de locomoção[3].

É digna de nota, ainda, a posição adotada pelo ministro Nelson Hungria, penalista e ávido defensor do resguardo aos direitos fundamentais que orbitam a liberdade de locomoção.

Em célebre pronunciamento, enunciou que “um dia de privação de liberdade jamais poderá ser restituído”, ao proferir a célebre expressão de que “para os casos anômalos, o remédio deve ser heroico” (HC 36.801) [4], adotando o entendimento pelo cabimento do Habeas Corpus para concessão de efeito suspensivo a recurso.

De acordo com o ministro Evandro Lins, a posição de Nelson Hungria assegurava ao Habeas Corpus “um sentido democrático e dinâmico”.

O incomparável papel do HC

Sobreveio, portanto, a posição capitaneada pelo ministro Evandro Lins durante a Corte Nunes Leal, penalista responsável por moderar o cabimento do Habeas Corpus, enquadrando-o para comportar o reconhecimento da irretroatividade de norma penal mais gravosa (HC 43.055 e HC 43.062) e o rechaçando, denegando a ordem postulada em favor de paciente que já cumprira integralmente a pena fixada por sentença transitada em julgado (HC 42.030).

Com a sua aposentadoria compulsória decorrente do Ato Institucional nº 5 de 1968, entretanto, tornou-se ferrenho defensor do restabelecimento do Habeas Corpus para prisões por motivo político (instituto que, além de outros direitos individuais, havia sido suprimido). É notável esclarecer, diante da oportunidade, que a ruptura democrática que se sucedeu revelou aos cidadãos o incomparável e excepcional papel exercido pelo instrumento do Habeas Corpus na salvaguarda de direitos individuais.

Na atual composição da Suprema Corte, porventura em virtude de sua matriz germânica partilhada com o ministro Moreira Alves, ao conceder a ordem no HC 157.627 o ministro Gilmar Mendes assinala que “toda vez que houver a possibilidade de uma condenação, portanto, que envolva a liberdade de ir e vir, cabe, sim, o habeas corpus[5].

Discorrendo acerca do controle difuso de constitucionalidade, o Decano defende que a liberdade de locomoção deve ser “entendida de forma ampla, afetando toda e qualquer medida de autoridade que possa em tese acarretar constrangimento para a liberdade de ir e vir[6].

Spacca

Diante deste turbulento e controverso cenário quanto ao cabimento do Habeas Corpus, consolidou-se a posição que compreende o writ como sendo uma via estreita que comporta a alegação direta de violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, segundo previsão do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República.

HC de ofício e a inclusão do artigo 647-A no CPP

Entretanto, para solucionar um conflito aparente entre a estreita via do writ e o direito de proteção judiciária, ainda nos casos em que o Habeas Corpus não mereça conhecimento, convencionaram os tribunais e julgadores em conceder a ordem de ofício, diante de flagrante ilegalidade ou teratologia.

Não se trata de desfigurar a finalidade do Habeas Corpus, mas sim de consagrar a sua índole mandamental e estatura constitucional, interpretando-o sistematicamente em relação ao teor do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Por fidelidade incondicional à Lei não pode o Poder Judiciário, ao deixar de conhecer o Habeas Corpus, deixar de suprimir os efeitos de ato ilegal ou teratológico: esta é a finalidade da concessão da ordem de HC de ofício.

Inclusive, rememora-se a possibilidade da expedição de Habeas Corpus de ofício não só no âmbito dos autos de ação mandamental, mas também em recursos criminais e excepcionais, como nos recursos especial e extraordinário, os agravos (artigo 1.042 do CPC) e agravos regimentais neles interpostos (artigo 1.030, §2º, do CPC) e dirigidos aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.

Com a inclusão do artigo 647-A ao Código de Processo Penal pela Lei Federal nº 14.836/2024, legalizou-se o procedimento já adotado pelo Poder Judiciário, contemplando a noção de que será expedida a ordem de ofício no âmbito de ações autônomas de impugnação ou recursos, acrescentando-se a ressalva de que a autoridade interessada na expedição da ordem de ofício deve atentar-se aos limites de sua competência jurisdicional — porque o artigo 654, §2º, do CPP já disciplinava acerca da expedição do Habeas Corpus de ofício.

Preliminarmente, considerando que “não se presumem na lei palavras inúteis” [7], constata-se que a frase “no âmbito de sua competência jurisdicional” constante no “caput” do artigo 647-A do CPP pode resultar ao intérprete dois significados distintos: o primeiro, de que a autoridade não pode se julgar incompetente para conhecer do writ ou recurso e, posteriormente, conceder a ordem de Habeas Corpus de ofício; o segundo, de que é apenas defeso à autoridade judicial a expedição de ordem de ofício em processo que não tenha sido distribuído sob a sua competência jurisdicional (ainda que deixe de conhecer, por incompetência jurisdicional para tanto, a ação autônoma ou recurso em que esteja veiculado o pedido).

Em breve exemplo dos efeitos da primeira interpretação, excetuando-se os casos em que cabível a reclamação constitucional, não pode o jurisdicionado impetrar Habeas Corpus ou recurso ordinário em HC no Superior Tribunal de Justiça e almejar a expedição da ordem de ofício contra ato praticado por autoridade que não esteja prevista no rol do artigo 105, inciso I, alínea “c” e inciso II, alínea “a”, da Constituição.

Por outro lado, exemplifica-se o efeito da segunda interpretação, sob a luz da atual redação do artigo 647-A, “caput”, do CPP: uma vez admitido no Tribunal de origem e recebido no STF, não seja conhecido recurso extraordinário interposto com fulcro no artigo 102, inciso III, alínea “a”, da Constituição da República sob o argumento de que é reflexa a ofensa à Constituição alegada pelo recorrente não vedaria a expedição da ordem de HC de ofício pela Suprema Corte, simplesmente por ser incompetente para conhecer do recurso que aportou em seu âmbito.

HC concedido de ofício por autoridade incompetente

Em verdade, isso consubstancia um debate a respeito da legalidade da concessão do Habeas Corpus de ofício por autoridade incompetente para conhecer da impetração. Recentemente, debruçou-se a Suprema Corte sobre a controvérsia no julgamento do HC 134.240/MT [8], embora tenha a solucionado muito antes: no julgamento do HC 85.185/SP [9], o acórdão relatado pelo ministro Cezar Peluso subscrito pela unanimidade do Tribunal Pleno, determina-se que a aplicação da Súmula nº 691 do STF [10] não afasta do Supremo Tribunal Federal o poder de expedir de ofício a ordem de Habeas Corpus, caso atendidos os requisitos legais.

Com efeito, a amplitude do Habeas Corpus para cessar coação ou constrangimento ilegais, enquanto provimento concedido de ofício pelo Poder Judiciário e antes de eventualmente importar em menosprezo à finalidade da ação mandamental, representa a verdadeira literalidade do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República.

Dentre as duas interpretações aventadas, a segunda se revela mais correta não somente por este ângulo, mas também por uma perspectiva teleológica: ao justificar o Projeto de Lei 3.453/2021 que resultou na Lei Federal nº 14.836/2024, o deputado federal Rubens Pereira Júnior nada menciona acerca de qualquer intenção direcionada ao controle do Habeas Corpus ou, ainda, o posicionamento da competência jurisdicional como pressuposto para a expedição da ordem de ofício.

No plano semântico, ainda, a expressão “no âmbito de sua competência jurisdicional” recebe os contornos democráticos quando contraposta com o parágrafo único instituído pelo artigo em comento, segundo o qual conceder-se-á o HC de ofício “ainda que não conhecidos a ação ou o recurso em que veiculado o pedido de cessação de coação ilegal”.

Em outras palavras, caso o writ (ou o recurso) não seja conhecido em razão da incompetência do julgador ou do colegiado e nele o paciente (ou recorrente) alegue contrariedade ao ordenamento jurídico da qual decorra violência ou coação ilegal em sua liberdade de locomoção, ainda se aventa a hipótese de se expedir a ordem de ofício.

Conclusão

Por fim, é notável que o Habeas Corpus sofreu interpretações diversas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o século 19, sendo a contemporaneidade reveladora de um amadurecimento na compreensão dos Ministros acerca da amplitude do instrumento.

Dito isso, a interpretação teleológica do artigo 647-A, “caput” e parágrafo único, do Código de Processo Penal não deve enveredar para a atribuição de efeitos restritivos à envergadura do Habeas Corpus, que deve ser ampla e mais favorável ao paciente ou recorrente, admitindo-se a expedição da ordem de ofício por qualquer autoridade judicial que se debruce em  exercício de sua competência sobre processo judicial e no qual se retrate decisão ilegal ou teratológica da qual resulte coação ou constrangimento ilegal.

 


[1] Impetrado em abril de 1892 por Rui Barbosa em que contestava atos do marechal Floriano Peixoto. STF – HC 300. Relator Ministro Costa Barrada. Voto Vencido do Ministro Pisa e Almeida. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 23/04/1892. COSTA, Edgard. Os Grandes Julgamentos. RJ. v. 1, Ed. Civilização Brasileira, 1964, p. 26-33.

[2] BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro, Forense, 1968. p. 63.

[3] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário / Pedro Lessa; apresentação: Lenio Luiz Streck. Rio de Janeiro, Forense, 2022. p. 288.

[4] STF – HC 36.801/DF. Relator Ministro Convocado Candido Lôbo. Voto do Ministro Nelson Hungria. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 12/05/1959.

[5] STF – HC 157.627 AgR/PR. Relator Min. Edson Fachin. Redator do acórdão Min. Ricardo Lewandowski. T2 – Segunda Turma. Julgado em 27/08/2019. Publicado em 17/03/2020.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. O Controle da Constitucionalidade no Brasil.

[7] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito / Carlos Maximiliano. Rio de Janeiro, Forense, 2005. p. 204.

[8] STF – HC 134.240/MT. Relator Min. Edson Fachin. T1 – Primeira Turma. Julgado em 28/06/2016. Publicado no DJe-197 de 15/09/2016.

[9] STF – HC 85.185/SP. Relator Ministro Cezar Peluso. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 10/08/2005. Publicado no DJ em 01º/09/2005.

[10] Súmula nº 691 do STF: Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.

Autores

  • é sócio da Accioly, Laufer Sociedade de Advogados, mestre em Direito pela PUCPR, doutor em Direito pela PUC-SP, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto de Direito Tributário do Paraná (IDT-PR) e do Instituto dos Advogados do Paraná (IAPR).

  • é sócia da Accioly, Laufer Sociedade de Advogados, mestre em Direito pela UFPR, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e do Instituto dos Advogados do Paraná (IAPPR).

  • é acadêmico de Direito na FAE, certificado em prevenção à lavagem de dinheiro (CPLD-10) pelo IBPLD, em compliance e anticorrupção pela PUC-Rio e em colaboração premiada pela PUC-RS.

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