Justiça Tributária

É o Carf vinculado a decisões pró contribuinte da Cosit?

Autor

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

25 de março de 2024, 8h00

O processo de consulta é um dos mais importantes instrumentos de que pode lançar mão o contribuinte para superação de incertezas quanto à interpretação/aplicação da legislação tributária. Em âmbito federal, as soluções de consulta emitidas pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) são atos administrativos que unificam e uniformizam o entendimento da Receita Federal sobre a interpretação da legislação tributária e, por essa razão, devem vincular a Administração às interpretações ali vinculadas, sob pena de restar comprometida a sua função instrumental relativamente à segurança jurídica.

Ainda que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e seus conselheiros e conselheiras não estejam formalmente vinculados às manifestações formalizadas pela Cosit, há que se considerar os efeitos anti-isonômicos de decisões proferidas por este órgão administrativo de julgamento quando desalinhadas de posições firmadas pela Receita favoráveis aos contribuintes.

Esse aspecto fica ainda mais evidente, a partir de 2013, com a edição da Instrução Normativa nº 1.396/2013. Isso porque, a partir de então as decisões em processos de consulta passaram a ter efeitos vinculantes no âmbito da Receita, conforme previsto no artigo 9º da referida instrução normativa:

“Art. 9º A Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da RFB, respaldam o sujeito passivo que as aplicar, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento. (Redação dada pelo(a) Instrução Normativa RFB nº 1434, de 30 de dezembro de 2013)”

Atualmente, o efeito vinculante das soluções de consulta da Cosit está previsto no artigo 33 da Instrução Normativa nº 2.058/2021, cuja redação é a seguinte:

“Art. 33. As soluções de consulta proferidas pela Cosit, a partir da data de sua publicação:

I – têm efeito vinculante no âmbito da RFB; e

II – respaldam o sujeito passivo que as aplicar, ainda que não seja o respectivo consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo da verificação de seu efetivo enquadramento pela autoridade fiscal em procedimento de fiscalização.”

Operações equivalentes

Diante desse cenário, após a publicação de soluções de consulta emitidas pela Cosit que reconheçam a legalidade e a legitimidade de procedimentos fiscais adotados pelos contribuintes, as autoridades ficam impedidas de autuar operações equivalentes.

Assim sendo, por exemplo, se o entendimento da Cosit for no sentido de que determinada situação fática não se sujeita à incidência tributária, os auditores e auditoras que integrarem a Receita Federal do Brasil ficarão impedidos de sustentar posição distinta.

Spacca

Vejamos um exemplo simples e objetivo que vai servir de base concreta para estruturarmos nosso argumento. Em 2015, a Cosit editou a Solução de Consulta nº 153 (SC 153), segundo a qual “os rendimentos pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, por fonte situada no País, a pessoa física ou jurídica domiciliada na França, a título de contraprestação por serviço técnico ou de assistência técnica prestado, não se sujeitam à incidência do Imposto de Renda na fonte (IRRF)”.

De forma bastante simplificada, esta solução de consulta estabeleceu que o pagamento de serviços técnicos para a França não está sujeito à incidência do IRRF, desde que o beneficiário não tenha um estabelecimento permanente no Brasil.

Como consequência desta decisão, todos os auditores e auditoras que integrarem a Receita estarão vinculados a esta interpretação, de modo que, após a publicação da SC 153, não será legal nem legítima a constituição de créditos tributários relativos ao IRRF em relação a serviços técnicos prestados para residente na França que não tenha estabelecimento permanente em território nacional.

Imaginemos, agora, que exista um auto de infração lavrado pela Receita Federal constituindo crédito tributário de IRRF exatamente sobre o pagamento de um serviço técnico para beneficiário localizado na França que não tenha estabelecimento permanente no Brasil, estando tal auto de infração pendente de decisão no Carf.

Seria possível, neste caso, que o Conselho decidisse em sentido contrário à posição da Cosit? Como demonstraremos adiante, cremos que a resposta a esta questão só pode ser negativa.

Os debates sobre a proteção da confiança do contribuinte em relação aos atos praticados pela Administração Fazendária são razoavelmente recentes no Brasil.

Conforme já deixamos registrado “o princípio da proteção da confiança do cidadão perante os atos administrativos, legislativos e jurisdicionais do Estado, originado na Alemanha, vem cada vez mais ganhando expressão no Direito Público brasileiro, como forma de proteção das expectativas legítimas criadas por tais atos no cidadão”. [1]

Proteção da confiança

Heleno Taveira Torres, em tese dedicada à segurança jurídica, brinda-nos com os seguintes comentários sobre o princípio da proteção da confiança, que, em suas palavras, “é consequência dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da eficiência e da moralidade administrativa, manifestos pela obrigatoriedade da Administração Pública de agir com previsibilidade nas relações com os particulares.

O respeito ao princípio da confiança legítima, por conseguinte, integra-se ao princípio da boa Administração Pública, que se define a partir de uma atividade desenvolvida segundo critérios fundados em transparência, motivação, imparcialidade e probidade, ou seja, orientada à efetividade dos direitos fundamentais, em coerência com o estado de confiança relativo aos seus atos, comissivos ou omissivos”. [2]

O princípio da proteção da confiança vai exigir um dever de coerência da Administração Pública. Como observa Alexandre Aragão, “tem-se que o Princípio da Coerência da Administração Pública por si próprio já veda que a mesma pessoa jurídica administrativa considere, por um órgão ou ente seu, determinado fato como inexistente e, por outro de seus órgãos ou entes, como existente”. [3]

Reprodução

A posição de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari é categórica: “as decisões administrativas devem guardar um mínimo de coerência, não se admitindo, por isso, tratamento diferenciado para hipóteses idênticas ou muito assemelhadas”. [4]

Os princípios da proteção da confiança e da coerência são subprincípios da segurança jurídica, sendo que, como destacado por Carlos Roberto Siqueira Castro, “a segurança das relações jurídicas reclama um mínimo de coerência e firmeza nas decisões administrativas, que não podem transformar-se em marola de mandos e desmandos desinfluentes para o atingimento das superiores finalidades do serviço público”. [5] (Destaques nossos)

Assim, havendo situações fáticas equivalentes, [6] o princípio da segurança jurídica, juntamente com seus subprincípios de proteção da confiança e da coerência, exigirá igual tratamento dos contribuintes pela Administração Pública.

É importante ressaltar que ao sustentarmos a necessidade de observância, pelos julgadores e julgadoras do Carf, de interpretações favoráveis ao contribuinte emitidas pela Cosit não estamos aderindo a qualquer forma de aplicação de correntes interpretativas que defendem uma preferência/prevalência de posições interpretativas favoráveis aos contribuintes. Não!

Como vimos defendendo academicamente, o Direito Tributário não tem qualquer particularidade hermenêutica, [7] da mesma forma que certamente não está pautado por critérios apriorísticos pró ou contra o Fisco ou o contribuinte.

Assim sendo, as considerações acima são lastreadas apenas e tão somente por critérios de segurança, isonomia e coerência.

Afinal, como apontamos, as soluções de consulta da Cosit vinculam os auditores fiscais da Receita Federal. Logo, uma decisão favorável ao contribuinte resulta na consolidação daquela interpretação, que deve ser aplicada a todos os sujeitos passivos de deveres tributários de forma homogênea.

O mesmo não ocorre quando a decisão gera uma interpretação com a qual os contribuintes não concordem, uma vez que, neste caso, obviamente, os sujeitos passivos poderão seguir disputando a posição fazendária até mesmo diante do Poder Judiciário.

Voltemos ao nosso exemplo

Desde 2015 nenhum contribuinte foi autuado pela Receita por não ter recolhido o IRRF sobre a remessa de serviços técnicos para residente na França que não possuísse estabelecimento permanente no Brasil.

Pelo menos, nenhum contribuinte deveria ser autuado nesta situação. Um contribuinte autuado em 2014, cujo processo seja julgado pela Carf em 2024 poderia, então, ter o auto de infração mantido pelo Conselho, por entenderem os conselheiros e conselheiras que a Cosit errou? Temos convicção de que não.

Poder-se-ia argumentar que a Cosit pode mudar de interpretação. Sim, é verdade. Contudo, nessas situações a legislação já prevê, em homenagem aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima do contribuinte que a nova interpretação somente será aplicada a fatos geradores posteriores à sua publicação. É o que está previsto de forma explícita no § 12 do artigo 48 da Lei nº 9.430/1996.

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Reitere-se que não se trata, aqui, de uma imposição hierárquica. Obviamente os conselheiros e conselheiras do Carf não são vinculados, de uma perspectiva hierárquica, aos posicionamentos da Cosit. Da mesma maneira, nada do que estamos sustentando deve ser compreendido como uma restrição da livre convicção motivada que pauta o seu labor judicante.

Por outro lado, livre convicção não pode ser a origem de discriminação, da mesma forma que liberdade de convencimento não pode representar a quebra da isonomia, da segurança jurídica, da livre-concorrência e da coerência.

Este artigo se dedicou ao Carf e utilizou as soluções de consulta da Cosit como referência. Nada obstante, o mesmo raciocínio se aplicaria a qualquer outro ato administrativo da Receita Federal com eficácia vinculante para os seus auditores e auditoras, como uma Instrução Normativa ou um Ato Declaratório.

De outra parte, da mesma forma que o Carf deveria se pautar por posicionamentos da Cosit favoráveis ao contribuinte, o mesmo deve se passar no âmbito do Poder Judiciário. Portanto, havendo uma posição vinculante da Receita favorável ao contribuinte, eventual controvérsia judicial em andamento deve ser resolvida favoravelmente ao contribuinte, independentemente da posição pessoal do magistrado sobre o tema.

 

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[1] ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Almedina, 2018. p. 103.

[2] TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 221-222.

[3] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria das autolimitações administrativas: atos próprios, confiança legítima e contradição entre órgãos administrativos. Revista de Doutrina da 4a Região, n. 35, abr. 2010.

[4] FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo Fiscal. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 192.

[5] CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 336-337.

[6] Cf. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 598.

[7] ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Bitributação da Renda. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 190-192.

Autores

  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.

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