Opinião

Instrumentalização do processo como forma de retaliação em casos de crimes sexuais

Autores

1 de abril de 2024, 6h32

Com o início do processo de civilização das sociedades, as disputas entre indivíduos deixaram de ser resolvidas no campo de batalha para darem lugar aos tribunais, a partir da incorporação de leis que regem o cotidiano e buscam solucionar, dentro dos limites legais, os conflitos existentes entre os particulares.

Ocorre que, com a mudança na forma de resolução de litígios, observou-se a instrumentalização do Direito como uma espécie de arma, a fim de adequá-lo às necessidades de quem se encontrava no poder (Silva e Macedo, 2021).

A judicialização de demandas como forma de coação moral caracteriza o conceito de lawfare. Em uma tradução literal o conceito em apreço significa “guerra pela lei” ou “guerra jurídica”, de modo que é utilizado como “uma estratégia de usar — ou abusar — da lei como um substituto aos meios militares tradicionais para alcançar um objetivo operacional” (Dunlap Jr, 2008 apud Zanin, 2019).

Os primeiros estudiosos a utilizarem esse conceito de modo formal para explicar tal fenômeno foram John Carlson e Neville Yeomans. No entanto, no Brasil, o termo recebeu popularidade em meio às disputas judiciais da operação “lava jato”, quando os advogados de Lula denunciaram as condutas dos responsáveis pela operação, a partir de um possível viés político externalizado por meio de uma aparente perseguição aos partidos de esquerda, fato este que subsidiou as medidas tomadas ao longo do processo.

Em suma, o termo mencionado consiste no esvaziamento da finalidade do Direito, transformando-o em uma arma para ser utilizada como mecanismo de destruição, seja política ou moral (Costa, 2023).

Direito instrumentalizado para retaliar

Para o presente artigo, a forma de aplicação do Direito como arma possuirá o enfoque na descredibilização das vítimas de crimes sexuais que, pelas razões a serem citadas, possuem grande dificuldade em produzir provas contra seus agressores e se veem, por diversas vezes, na posição de investigada por um crime contra honra, como modo de retaliação pela denúncia.

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Além disso, as mulheres, por muitos anos, foram excluídas do debate público, não obtendo seus direitos protegidos por muitos diplomas legais vigentes, bem como por não serem devidamente representadas pelos ocupantes dos três Poderes.

A história do patriarcado e da submissão feminina pode ensejar inúmeras discussões a respeito de sua origem, porém, independentemente do marco inicial, fato é que esses fenômenos possuem diferentes formas de se externalizar no dia a dia feminino, seja por meio da insegurança ao se utilizar transportes públicos, seja na desigualdade salarial ou até na falta de representatividade feminina política, além da dupla jornada exercida ou, por sua vez, frente aos órgãos públicos quando buscam amparo e meios efetivos para efetuar denúncias.

Considerando que o Poder Judiciário brasileiro é composto por uma maioria de homens, os quais ocupam 59,6% dos cargos magistrais (CNJ, 2023), atrelada à baixa capacitação que os funcionários do poder público possuem para lidar com crimes envolvendo questões de gênero sejam homens ou mulheres valendo-se de um viés de confirmação para externalizar premissas patriarcais, muitos casos de vitimização secundária podem ocorrer, tornando-se, inclusive, a instrumentalização do Direito para coagir ou retaliar a vítima, um dos métodos utilizados pelos réus.

Para fins de conceituação, o viés acima destacado é um campo de estudo da psicologia analisada e ocorre quando um sujeito possui uma ideia pré-concebida e, para sustentar sua tese, busca elementos que a reforcem, ao tempo que ignora os fatos que possam refutá-la (CATALOGUE OF BIAS, 2018).

Culpabilização da vítima e estereótipos

Nesse sentido, diante das raízes patriarcais que alicerçam nossa sociedade, não é preciso um grande entendimento acerca da disparidade de gênero para perceber que “o estupro é o único crime no mundo em que a vítima é acusada e considerada culpada da violência praticada contra ela” (PIMENTEL, SCHRITZMEYER, PANDJIARJIAN, 1998, p. 57). Além das bases misóginas que explicitam tal constatação, entende-se que as razões por trás da culpabilização da vítima também encontram fundamentos em virtude de uma estereotipização do corpo feminino.

Spacca

Segundo Rebecca Cook e Simone Cusack (2010, p. 37-39), é possível dividir os estereótipos em  três classes: (1) individual, sendo basicamente aqueles intrínsecos ao nosso inconsciente; (2) coletivo, o qual se refere àqueles socialmente enraizados e sustentados pelas relações cotidianas (3) mais geral, consistindo em fatores históricos, culturais, religiosos, legais e econômicos.

Para fins do presente artigo, será utilizado o estereótipo da mulher vingativa para exemplificar a aplicação do lawfare nos crimes sexuais praticados em desfavor do corpo feminino, o qual, inclusive, pode ser englobado nas três categorias supramencionadas, a depender do contexto em que está inserido.

Inserir a etiqueta de mulher vingativa ou mulher fatal em vítimas de crimes sexuais remonta aos tempos do faraó com a história da mulher de Potifar. A mencionada narrativa pode ser encontrada no Livro de Gênesis, Capítulo 37, Versículo 3º, no Antigo Testamento da Bíblia, que relata a história de um oficial do Faraó do Egito que adquiriu José, um homem vendido por seus irmãos por causa de seu favoritismo paterno.

Potifar reconheceu que Deus estava com José, abençoando todas as suas empreitadas, e confiou-lhe a administração de seus bens. Contudo, a esposa de Potifar se interessou por José e, após ser rejeitada, acusou-o falsamente de tentativa de estupro, valendo-se como evidência da capa que este utilizava e havia esquecido, levando à prisão injusta do jovem (Júnior  e Xavier, 2020, p. 77).

Estereótipos misóginos no Judiciário

Ora, se por um lado os estereótipos suportados pelas vítimas de crimes figuram justamente o motivo que as afasta do acesso à justiça, as mulheres que optam pela coragem de denunciar não escapam de serem inseridas nos mesmos rótulos machistas por aqueles que deveriam garantir a isonomia e imparcialidade no processo.

A partir disso, Deborah Round (1998) observa uma tendência da sociedade em considerar o viés de gênero como fundamento para formação de convicções sobre determinados assuntos, determinando que a concepção social sobre um tema varia se o sujeito em análise é homem ou mulher.

Além disso, um dos grandes fatores que inibem as denúncias por crimes sexuais, além do desconhecimento sobre o tema e a vergonha, é o medo da retaliação. Leia-se uma entrevista coletada em uma pesquisa empírica com uma vítima de estupro:

“Uma vez, fiz o boletim de ocorrência no dia seguinte que fui estuprada, mas só marcaram o exame de corpo de delito cinco dias depois, então as marcas já estavam sumindo.

(…)

Passado um tempo, o fórum me ligou falando que ele tinha aberto uma queixa de calúnia contra mim… ele propôs um acordo falando para eu retirar a queixa que eu fiz de estupro que ele tirava a que ele tinha feito. Eu me recusei a fazer isso, eu tinha as fotos do meu corpo, tinha print dele me mandando mensagem pedindo desculpas porque sabia que tinha feito coisa errada. Já se passaram 02 (dois) anos e eu nunca mais tive qualquer notícia do andamento desses processos. (sic)” (Fernandes, 2022, p.71)

Nesse sentido, importa destacar que embora o corpo social muitas vezes visualize o Poder Judiciário como uma entidade subjetiva quase como um ente onipotente e onisciente , é fundamental evidenciar que esse órgão é formado por indivíduos que vivem e se sustentam na sociedade entranhada pelo viés de gênero, o que resulta no seguinte cenário: a propagação dos estereótipos misóginos dentro do sistema de Justiça.

Sendo assim, faz-se imprescindível que o Estado capacite seus funcionários, a fim de inibir tentativas de subversão do Direito para vinganças particulares, especialmente no que tange os crimes envolvendo violência de gênero. Nesse sentido:

“A qualificação e capacitação dos profissionais da área auxilia para que a violência contra a mulher seja cada vez mais rápida identificada prevenida, atuante de acordo com a Lei Maria da Penha, a qual possui o intuito de prevenir ou fazer cessar violências praticadas contras mulheres em todo e qualquer âmbito (Costa, 2021)”

Cita-se, como exemplo, a edição da Resolução nº 492 do CNJ (Protocolo para Julgamento sob a Perspectiva de Gênero), obrigando que os magistrados, ao se depararem com casos que envolvam particularidades de crimes de gênero, deverão interpretar a lei e o caso concreto sob tais diretrizes que serão ensinadas em cursos de capacitação, mitigando o cenário de revitimização (Costa, 2021).

Diante disso, é indubitável que já foram percorridos árduos caminhos em direção à igualdade de gênero, todavia não há como negar que ainda há um longo trajeto a se enfrentar. Por esse motivo, é fundamental refletirmos acerca da efetividade dos projetos que visam erradicar a violência contra a mulher para além de meros remendos. Embora o Brasil conte com uma das mais completas leis no tocante aos crimes sexuais, é inegável que a aplicação da norma não esteja surtindo o efeito planejado, escarrando o fato de que não há como progredir para qualquer mudança significativa sem transformar as estruturas sociais.

 


Referências bibliográficas

ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; NOJIRI, Sérgio. Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, nº 2, 2018 p.825-853.

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resultados parciais do censo do Poder Judiciário 2023 : relatório / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2023

COSTA, Amanda Moura da. LAWFARE E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 4, n. 2, p. 79–98, 2023. DOI: 10.9771/rds.v4i2.54373. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revdirsex/article/view/54373. Acesso em: 23 mar. 2024.

COOK, Rebecca; CUSACK, Simone. Estereotipos de género: perspectivas legales transnacionales. Bogotá: Profamilia, 2010. p. 37-39

FERNANDES, Clara Duarte. O valor probatório das declarações da vítima no crime de estupro: reflexões a respeito do procedimento penal sob a ótica da cultura do estupro e um cenário de violência institucional. 2022. 118 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2022.

HENEGHAN, Carl; SPENCER, Elizabeth. Confirmation Bias. In: Catalogue of Bias 2018. University of Oxford, 2018. Disponível em: https://catalogofbias.org/biases/confirmation-bias/. Acesso em: 05 março 2023.

PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou “cortesia”?: abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Fabris, 1998.

ROUND, Deborah Ruble. Gender bias in the judicial system. Southern California Law Review, v. 61, n. 6, p. 2193–2220, 1998. p. 2193

SILVA, Simone Augusta da; MACEDO, Semíramis Regina Moreira de Carvalho. LAWFARE: aliado ou inimigo do estado democrático de direito?. Intr@Ciencia, Guarujá, n. 22, p. 1-18, 2021.

Autores

  • é advogada criminalista, especializada em Processo Penal e mestranda em Direito Político e Econômico (bolsista Capes) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, autora de livros e artigos científicos, seminarista, e integrante do Instituto de Liberdade Digital e do Grupo de Pesquisa Mulher, Sociedade e Direito.

  • é advogada criminalista, pós-graduanda em Direitos Humanos pelo CEI Acadêmico e autora de livros e artigos científicos, especialmente na temática de recorte de gênero e direito das minorias.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!