Opinião

Reforma tributária, orçamento público e dívida ativa

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8 de abril de 2024, 6h42

Ministro e professor Fernando Haddad,

Creio estar nítido e acima de qualquer dúvida que o senhor está imbuído das melhores intenções ao enfrentar esse tema tão complexo e necessário, qual seja, o da reforma tributária, sobretudo ao desejar criar condições no sentido de que a economia brasileira siga superavitária, com controle da inflação e cumprindo as metas fiscais estabelecidas, com responsabilidade, coerência e firmeza de propósito.

Entretanto, permita-me abrir um diálogo franco e honesto com o senhor. A aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023 é, sim, digna de nota e merece também ser muito elogiada, já que é fruto de esforço concentrado e concertado, com vistas a melhorar o ambiente institucional tributário brasileiro, notadamente no que toca à tributação sobre o consumo, que trazia intrinsecamente graves distorções em ofensa clara à isonomia e ao princípio da capacidade contributiva.

Entretanto, sem buscar diminuir o feito, nem mesmo sequer lançar qualquer mácula aos anseios e propósitos que o senhor tem com essa reforma e o que ela com certeza trará de benéfico ao País, ainda há muito a ser debatido e modificado. E certamente o senhor já sabe disso, tanto que em funcionamento trabalho muitíssimo relevante, no Senado, visando ao aperfeiçoamento do processo administrativo e judicial tributário [1].

E por que trago à baila justamente esse tema? Não, por acaso. É que — e já me dirigindo e endereçando o primeiro dos temas relevantes desse diálogo — atualmente, encontra-se em discussão nos tribunais administrativos e tributários um estoque de R$ 5 trilhões [2], sendo R$ 2,6 trilhões, apenas de valores correspondentes à dívida ativa da União, o restante, intitulado por estados e municípios.

De acordo com a publicação “Justiça em Números 2023[3], pela primeira vez na série histórica, o volume de processos em tramitação superou 80 milhões. O Poder Judiciário finalizou o ano de 2022 com 81,4 milhões de processos em tramitação.

Apenas em 2022, a diferença entre o que ingressou (31,5 milhões) e o que foi baixado (30,3 milhões) é substancial e mostra que, em que pese ter havido aumento da produtividade, ainda assim o Poder Judiciário não foi capaz de reduzir processos, mas ao contrário, teve aumento dos que entraram em tramitação.

Taxa de contingenciamento

Isso faz com que a taxa de contingenciamento de processos aumente ainda mais. De acordo com o relatório “Justiça em Números 2022[4] A maior parte dos processos pendentes eram os de execução, compostos basicamente  pelas execuções fiscais, que representam 65% do estoque em execução. Esses processos são os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Poder Judiciário, representando aproximadamente 35% do total de casos pendentes e congestionamento de 90% em 2021.

Spacca

Entende-se, portanto, por taxa de congestionamento o indicador que mede o percentual de casos que permaneceram pendentes de solução até o final do ano-base, em relação ao que tramitou (soma dos pendentes e dos baixados).

Como bem destacado na publicação em exame, “chama atenção a diferença entre o volume de processos pendentes e o volume que ingressa a cada ano.

Na Justiça estadual, o estoque equivale a 2,8 vezes a demanda. Tal volume de acervo processual significa que, mesmo que não houvesse ingresso de novas demandas e fosse mantida a produtividade dos(as) magistrados(as) e dos(as) servidores(as), seriam necessários aproximadamente dois anos e oito meses de trabalho para zerar o estoque.

Esse indicador pode ser denominado como “tempo de giro do acervo”. O tempo de giro do acervo é calculado pela razão entre os pendentes e os baixados. À guisa de exemplo, na Justiça estadual, o resultado é de dois anos e 11 meses, em média. No TJ-SP é de quatro anos e cinco meses e, no TJ do RJ, de três anos e oito meses.

Já na Justiça federal, é de dois anos e 11 meses; na Justiça do Trabalho, é de um ano e sete meses; na Justiça Militar estadual, é de um ano; e nos tribunais superiores, é de um ano e dois meses.

No relatório “Justiça em Números 2021”, analisando o ano de 2020, portanto, as execuções fiscais respondiam por expressivos 87,3% de taxas de congestionamento em 1ª instância, bastante superior à média geral que era de 73%.

Litígios tributários

Percebe-se, portanto, malgrado o esforço de produtividade relatado, no ano de 2022, e com inúmeras alterações legislativas no processo civil, introdução de diversos filtros para qualificar o trabalho judicante nos tribunais superiores, nada disso foi capaz de alterar o Estado Inconstitucional de Coisas em matéria tributária [5].

Portanto, temos um sistema claramente ineficiente de gestão de litígios tributários, de elevadíssima monta, que não é capaz de atender razoavelmente à demanda da população e que é extremamente custoso: as despesas totais do Poder Judiciário em 2022 somaram R$ 116 bilhões.

Somado a isso, tenha-se em mente que a taxa de recuperabilidade dos créditos tributários nas três esferas da Federação é pífia: beira 1,0% a 1,5%, em média. [6] [7]

Nota-se, portanto, um claro esgotamento do modelo tradicional de recuperação de créditos tributários através do contencioso judicial e administrativo, de modo que insistir nesse modelo que produz uma captura irrisória e risível do imenso estoque de créditos tributários é sinal de insanidade, no mínimo[8].

Com isso, ministro, se eu pudesse, do alto da minha ousadia, lhe dar um conselho, investiria todas as minhas fichas no Projeto de Lei n° 2.486, de 2022, do senador e presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Ele dispõe sobre a arbitragem em matéria tributária e aduaneira e certamente traduz o mais relevante subsídio institucional que o senhor poderia dispor para obtenção de recursos ao Orçamento Federal e de maneira expedita, adequando-se, sobremaneira, aos mandamentos constitucionais tais como duração razoável do processo e justiça célere e eficaz.

O exemplo exitoso em Portugal deve e precisa ser replicado ao País, urgentemente, para alçarmos o Brasil também na vanguarda mundial quando o assunto é resolução de litígios tributários.

Acaso lograrmos repetir os feitos lusitanos teríamos conflitos tributários, que atualmente, duram por vezes, em média, duas décadas, até serem solucionados, em definitivo, pela Suprema Corte em menos de seis meses. E, o que é melhor, com a possibilidade real de os assuntos (leia-se, tributos, temas, teses) arbitráveis poderem ser objeto de planejamento prévio, por parte do titular da pasta executiva (finanças/ economia/fazenda).

Assim se deu em Portugal: o ministro das Finanças, por ato próprio, elegeu as matérias tributárias arbitráveis (Portaria nº 112-A/2011 de 22 de Março de 2011 c/c artigo 4º, do Decreto-lei nº 10/2011).

Segundo recentes estatísticas, [9] [10] é bem verdade que os contribuintes ganham mais processos de arbitragem tributária (63,3% dos casos decididos pelo Centro de Arbitragem Administrativa), em 2023, todavia, o Fisco viu o Caad lhe dar razão na maioria dos casos acima de milhão de euros, portanto, nos casos de maior volume envolvido (50,2% e 49,8%).

A aludida estatística divulgada pelo Caad revela a par do equilíbrio das decisões, quando envolvendo maior vulto em disputa, ligeira prevalência aos pleitos dos contribuintes, o que não desnatura nem descredibiliza em absoluto o órgão julgador, muito ao contrário, revela tão somente, uma ligeira tendência em favor dos contribuintes, como se estivesse a reconhecer, de fato, algo que é intrínseco: a administração tributária trabalha alavancada, pois necessita amealhar recursos para o orçamento. É natural que assim o seja.

E é mais natural ainda que a Corte Arbitral sopese tal ânimo de arrecadação, com vistas a assegurar justiça fiscal, rápida e de qualidade.

Apenas à guisa de comparação, em estudo publicado [11] recentemente, relativamente à amostra selecionada no Supremo Tribunal Administrativo, revelou que a probabilidade de o contribuinte ganhar neste tribunal é de 35%; a probabilidade de a Administração Tributária (AT) ganhar é de 46%, e outros resultados atingem 19%.

Por sua vez, nos acórdãos acima de 100 mil euros (2018 e 2019), a probabilidade de o contribuinte ganhar já é de 41%; e a probabilidade de a AT ganhar passa para 51%, e o provimento parcial ocorre em 6% dos casos.

Redução de processos

Como se vê, já não fosse bom o suficiente, os efeitos imediatos da adoção desse novo mecanismo institucional de resolução de controvérsias tributárias logrou, inclusive, reduzir o volume de contingenciamento de processos nos Tribunais [12].

O ministro Fernando Haddad (Fazenda)

A literatura especializada sobre o tema [13] é pródiga e profícua em apontar diversos outros ganhos reflexivos, tais como, correção de rumos, adequação e uniformização célere da Jurisprudência tributária, redução de processos, redução de litígios instaurados, rápida adequação de práticas por parte da Administração Tributária, mas sobretudo, redução drástica das incidências de juros e demais penalidades (indenizações), quando o Fisco perde, de até oito vezes menos do que o que se teria em julgados pelos tribunais judiciais.

Nas preciosas palavras do presidente do Caad “como as decisões são rápidas, o Estado vai a tempo de garantir a cobrança efetiva, ou seja, consegue reaver o dinheiro que lhe é devido. Isto é essencial se tivermos em conta que o valor das receitas fiscais incobráveis disparou para 6,4 mil milhões”.

Com efeito, se o processo demorar muito tempo a ser decidido, por exemplo, as garantias bancárias expiram, as empresas entram em insolvência, os contribuintes perdem patrimônio suscetível de ser alcançado e com isso se dificulta a satisfação dos créditos tributários devidos.

Portanto a Arbitragem Tributária ajuda, inclusive, na real possibilidade de o Estado reaver o montante que lhe é devido, com mais contemporaneidade, reduzindo assim a existência de vitórias ao Fisco, sem satisfação e liquidação consequente.

Por fim, cabe transcrever o arremate do presidente do Caad, doutor Nuno Villa-Lobos:

“E mesmo quando o Estado perde, aqui essa derrota custa-lhe menos. Vou dar um exemplo: perder ao fim de cinco anos um processo de 10 milhões implica o pagamento pelo Estado de uma taxa de juro de 4% ao ano, o que dá 400 mil euros só em juros anuais, isto é, um valor superior a 2 milhões em juros ao fim de cinco anos. No Caad, as decisões são tomadas em meses, não anos — os juros são infinitamente mais baixos.” [14]

Imagine-se, então, ministro que ao cabo de um ano, consiga o Tesouro Federal exterminar com 5% do estoque federal, nas mesmas proporções divulgadas pelo CAAD. Estamos falando de $ 1,4 bilhão de reais por ano a serem incorporados no orçamento federal, a serem somados aos outros 2 bilhões incorporados ao patrimônio dos contribuintes, com o natural giro de tais recursos na economia.

Em última análise, ministro, como diz a música de Milton, é preciso coragem. Coragem para ousar, para discernir, para tentar o diferente, contando sempre, com uma boa dose de sorte, sobretudo, quando premido pela urgência, muito embora, como visto, dotado de muita responsabilidade, seriedade e base empírica sólida.

Quem sabe, o senhor escuta o meu conselho…..

 


[1] < https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/02/05/comissao-debatera-modernizacao-de-processo-tributario-e-administrativo; > Acesso em 02/04/2024

[2] < https://www.poder360.com.br/opiniao/reforma-do-contencioso-tributario-e-urgente/ > Acesso em 02/04/2024

[3] < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf >Acesso em 02/04/2024;

[4] < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf >Acesso em 02/04/2024;

[5] <https://www.etco.org.br/projetos/palestra-de-heleno-torres-sobre-seguranca-juridica-e-processo-tributario/ > Acesso em 02/04/2024; “

[6] < https://www.tcmrio.tc.br/Noticias/16255/Relatorio_e_Projeto_de_Parecer_Previo_2021.pdf > Acesso em 02/04/2024; Ver item 7.6;

[7] “Não há um único estado, um único munícipio no país onde a dívida ativa tenha cobrança superior a 1% do volume acumulado.”, Torres, Professor Heleno Taveira in <https://www.etco.org.br/projetos/palestra-de-heleno-torres-sobre-seguranca-juridica-e-processo-tributario/ > Acesso em 02/04/2024;

[8] “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” Frase atribuída à Albert Einstein;

[9] < https://www.caad.org.pt/comunicacao/imprensa/litigios-de-baixo-valor-vencem-mais-arbitragem-fiscal > Acesso em 02/04/2024; Jornal Econômico, 16/02/2024: “Litígios de baixo valor, vencem mais arbitragem fiscal” por Nuno Villa-Lobos, Presidente do CAAD-PT;

[10] < https://expresso.pt/economia/impostos/2024-02-09-Contribuintes-ganham-mais-processos-de-arbitragem-fiscal-e-fisco-ganha-os-de-maior-valor-ab00b6b0 > Acesso em 02/04/2024;                                                                           < https://www.caad.org.pt/comunicacao/imprensa/contribuintes-ganham-mais-processos-de-arbitragem-fiscal-e-fisco-ganha-os-de-maior-valor .> Acesso em 02/04/2024;

[11] CIDEEFF (2022). Resultados sobre a litigância fiscal no STA. Acórdãos publicados de 2018 a 2019. Disponível em: < https://www.cideeff.pt/pt/publicacoes/outras-publicacoes/resultados-sobre-a-litigancia-fiscal-no-sta-acordaos-publicados-de-2018-a-2019-valor-do-litigio/5279/.> Acesso em 02/04/2024

[12] < https://www.caad.org.pt/comunicacao/imprensa/n%C3%BAmero-de-processos-parados-em-tribunais-tribut%C3%A1rios-recua-45-arbitragem-fiscal-ajudou-a-estes-n%C3%BAmeros > Acesso em 02/04/2024;                           < https://eco.sapo.pt/2024/03/20/numero-de-processos-parados-em-tribunais-tributarios-recua-45-arbitragem-fiscal-ajudou-a-estes-numeros/?trk=feed_main-feed-card_feed-article-content > Acesso em 02/04/2024;

[13] Tania Carvalhais Pereira, Nuno Villa-Lobos, e Jorge Lopes de Souza: “Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (Juiz Conselheiro Jubilado do Supremo Tribunal Administrativo – Secções do Contencioso Tributário e do Contencioso Administrativo) em Conferência na Associação Fiscal Portuguesa, em Lisboa, em 28/03/2019: “o Estado economiza até 8 vezes mais na arbitragem fiscal (…) Os juros indemnizatórios a pagar aos contribuintes quando a AT perde um processo nos Tribunais do Estado representam um encargo elevadíssimo para o erário público”. Lopes de Sousa apresentando as contas, comparando o impacto dos tempos de decisão: “os 5,4 anos de duração média dos processos de impugnação judicial e os 0,65 no CAAD mostra que fica 8,3 vezes mais caro à AT, em juros perder um processo nos tribunais tributários”. O Magistrado foi mais longe e apresentou valores concretos: “Perder um processo de 10 milhões de euros, implicando 400 mil euros em juros anuais, traduz-se no pagamento (do Estado ao Contribuinte) de 2,1 milhões de euros nos tribunais tributários; enquanto no CAAD o montante de juros seria de 260 mil euros. Ou seja, até oito vezes menos na arbitragem fiscal.”

[14] < https://www.dinheirovivo.pt/economia/nuno-villa-lobos-decisao-do-caad-leva-cinco-meses—e-vitorias-do-estado-nao-sao-so-morais-13604913.html/ > Acesso em 02/04/2024

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