Opinião

A segurança jurídica sob a ótica do consumidor de energia

Autor

  • Aline Bagesteiro

    é diretora jurídica e de gestão da Abrace Energia advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com pós-graduação em Gerenciamento de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas.

21 de março de 2024, 7h09

O Direito colima a paz social e um dos meios para alcançá-la é a segurança, a estabilidade que o sistema jurídico oferece conservando situações no tempo ao lado da previsibilidade dos comportamentos.

É assim que Maria Sylvia Zanella Di Pietro inicia o capítulo sobre o princípio da segurança jurídica em seu Tratado de Direito Administrativo — Teoria Geral e Princípios do Direito Administrativo.

Segurança. Estabilidade. Previsibilidade. Do ordenamento jurídico, de forma que ele seja objetivo, claro, preciso, que indique de forma explícita o que é permitido e o que é proibido, e as consequências impostas para eventuais violações. E mais, previsibilidade do comportamento daqueles que têm o poder de tomar decisões que afetem aos demais.

O princípio da segurança jurídica é a garantia fundamental dos cidadãos, um limite à atuação estatal, a proteção às situações jurídicas consolidadas, a relativa certeza de que o que foi pactuado vai perdurar. Se traduz em proteção, confiança, boa-fé.

Como muito bem abordado na doutrina de Di Pietro, “valores como irretroatividade das normas, proteção de direito adquirido, previsibilidade da ação estatal, estabilidade das relações jurídicas, boa-fé, confiança legítima, se impõem à administração pública”. São valores a serem perseguidos.

Embora não expressa tacitamente no texto constitucional, a proteção da segurança jurídica pode ser observada em inúmeros dispositivos constitucionais e legais, dentre eles encontra-se arrolada como uma das garantias fundamentais previstas no artigo 5°, XXXVI, da Constituição, que rege que a norma não poderá prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Fica proibida a retroatividade da norma, salvo situações excepcionalíssimas.

O princípio da segurança jurídica sempre fundamentou decisões no setor elétrico brasileiro, mas ficou em evidência na pandemia, em 2020.

Spacca

A Nota Técnica nº 01/2020-GMSE/Aneel, emitida pelo Gabinete de Monitoramento da Situação Elétrica (GMSE), coordenado diretamente pela diretoria colegiada da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e que apresentava uma avaliação inicial dos efeitos da Covid-19 no setor elétrico brasileiro, instituiu a “estabilidade regulatória e segurança jurídica” dentre os princípios a serem considerados, destacando a importância de “buscar a preservação econômica de todos os contratos firmados”.

Mudança durante a pandemia

E assim foi feito, pelo menos para os consumidores. Em virtude da situação excepcionalíssima que se estava vivenciando, grandes consumidores, indústrias, shopping centers buscaram a agência reguladora visando à flexibilização no faturamento da demanda por meio da cobrança apenas dos valores medidos e não dos valores contratados.

Isto porque, como se sabe, à época, diversas empresas reduziram o consumo de energia elétrica, com fábricas e lojas temporariamente fechadas em razão das determinações de isolamento, não atingindo os montantes de demanda que haviam sido contratados.

O entendimento do diretor da Aneel que relatou o processo que consolidou o pleito dos consumidores [1] foi no sentido de necessidade de observância do dispositivo legal que estabelecia a forma de faturamento.

Fundamenta o relator, em clara observância ao princípio da segurança jurídica:

Assim, apesar de entender a motivação dos setores atingidos pela crise para solicitar alterações na forma de faturamento da demanda, a Aneel não poderia atender os pleitos, pois caso mudássemos a forma de faturamento da demanda, haveria ilegalidade nessas decisões, tendo em vista que o Regulador não poderia alterar o arcabouço regulatório de maneira que contrariasse o decreto.”

O colegiado da agência, ao julgar o pleito, manteve o entendimento do relator, embora tenha recomendado uma livre negociação entre as partes sobre o diferimento e o parcelamento dos valores referentes ao faturamento da demanda contratada que superem a demanda medida, frise-se, nos termos da regulamentação vigente.

Desde então, muito se tem ouvido falar em segurança jurídica no setor elétrico. O que surpreende é que esta segurança jurídica parece ser unilateral, resguardando direitos apenas dos agentes considerados investidores da cadeia do setor de energia. Quando direitos dos consumidores deveriam ser resguardados sob a égide do princípio da segurança jurídica não se observa o mesmo comportamento.

Explica-se

Em 2021, quando o país atravessava um momento de escassez hídrica, foi realizado o PCS (Procedimento Competitivo Simplificado), com o objetivo de contratar geração de energia elétrica por meio de usinas termelétricas novas, de forma a resguardar os reservatórios das usinas hidrelétricas.

O leilão, justamente por ser um procedimento que visava, em regime de urgência, evitar uma crise hídrica severa, por um lado, previa prazos rígidos para a entrada em operação das usinas, de forma a agregar nova geração de energia ao sistema em um prazo curto, e por outro, fazendo jus ao esforço dos agentes para implementação de usinas novas em tão curto espaço de tempo, previa um pagamento pela energia gerada muito superior ao contratado nos demais leilões.

As regras do leilão sempre foram muito claras. Os agentes que não entrassem em operação até a data estabelecida tanto na portaria do Ministério de Minas e Energia (MME), que instituiu o PCS [2], como nas regras do próprio PCS e nos contratos firmados pelos agentes que venceram o certame, não apenas teriam os contratos rescindidos, mas incorreriam no pagamento de multas altíssimas a serem revertidas à modicidade das tarifas dos consumidores.

Reprodução

Os consumidores sempre acompanharam de perto o progresso na entrada em operação das usinas contratadas por meio do PCS. E a razão é simples: a escassez hídrica foi superada antes da entrada em operação das usinas, e a geração contratada pelo PCS não mais se fazia necessária.

Havia, por parte dos consumidores, uma expectativa legítima de cumprimento estrito das regras estabelecidas: os agentes que cumprissem com as obrigações acordadas fariam jus ao pagamento altíssimo pela energia gerada — ainda que ela não fosse mais necessária, enquanto os agentes que não cumprissem com as obrigações assumidas nos prazos acordados deveriam ter os contratos rescindidos e pagar as correspondentes multas.

Ocorre que, à medida que os prazos foram vencendo, a almejada segurança jurídica não foi alcançada pelos consumidores. Contratos não foram cumpridos, normas foram ignoradas e acordos foram firmados. O que se esperava era apenas que os atos jurídicos consumados fossem cumpridos exatamente de acordo com as regras vigentes. Mas não foi o que ocorreu.

Portaria para solução amigável

Inicialmente, o Ministério de Minas e Energia, em dezembro de 2022, editou uma portaria [3] contendo diretrizes e condições para a resolução amigável dos contratos firmados no âmbito do PCS pelos agentes que não estivessem incorrendo em nenhuma das hipóteses que justificavam a rescisão dos contratos firmados.

O problema é que, naquele momento, a quase totalidade dos empreendimentos já não havia cumprido o prazo para a entrada em operação, que era de 1º de maio de 2022 (podendo ser postergado até 1º de agosto de 2022, mediante o pagamento de multa pelo atraso), e, por isso, não eram elegíveis à solução amigável.

Além de, obviamente, não ser de interesse dos empreendedores rescindir contratos que pagavam pela energia montantes quase dez vezes maior do que os contratos decorrentes de leilões ordinários.

Embora as excludentes de responsabilidade pleiteadas pelos agentes em razão do atraso na entrada em operação das usinas estivessem sendo julgadas improcedentes pela Aneel, com respaldo na devida fundamentação da área técnica da agência, entendeu o Ministério de Minas e Energia por encaminhar ao Tribunal de Contas da União (TCU), conforme prevê a IN-TCU 91/2022, solicitação de solução consensual para as controvérsias supostamente existentes nos contratos firmados em decorrência do PCS.

E no âmbito do TCU, com a chancela do Ministério de Minas e Energia e da Agência Nacional de Energia Elétrica, acordos foram firmados em detrimento das cláusulas contratuais do disposto nas normas vigentes, dentre elas a própria Portaria Normativa nº 24/GM/MME, que instituiu o PCS.

Prazos descumpridos foram perdoados, regras foram ignoradas, novas regras e novos prazos, totalmente diversos dos previstos no PCS foram fixados em acordos que nem sequer contaram com a participação dos consumidores, grandes interessados no tema.

O cumprimento ou não das regras previstas no PCS significaria, de um lado, um pagamento e, de outro, um recebimento, de montantes extremamente elevados pelos consumidores, inclusive para o setor elétrico, tão acostumado a pagar contas milionárias.

Ficou no ar a sensação de que a decisão considerou ser “melhor um acordo ruim do que enfrentar o judiciário sem a certeza de qual será o resultado”.

É preciso registrar que, sob a ótica do consumidor, seria preferível levar ao judiciário os sólidos argumentos jurídicos, explorar todas as alternativas existentes, mesmo correndo o risco de, ao final, termos uma decisão ser contrária aos nossos interesses, do que, de antemão, firmar um acordo em completo “desacordo” com as regras. Inclusive, porque a prática de evitar o confronto por temer a derrota, mesmo que haja o intuito de proteger o consumidor, apenas estimula os agentes do mercado a investirem cada vez mais na judicialização de tudo o que seja contra seus interesses.

Por fim, o que mais surpreende neste contexto todo é que os acordos realizados tiveram como uma de suas principais fundamentações o aumento da tão almejada segurança jurídica, conforme consta nos acórdãos [4] das decisões tomadas no âmbito do TCU.


[1] Processo nº 48500.001841/2020‐81.

[2] Portaria Normativa nº 24/GM/MME, de 17 de setembro de 2021.

[3] Portaria Normativa nº 55/GM/MME, de 19 de dezembro de 2022.

[4] Como, por exemplo, no TC 006.252/2023-0.

Autores

  • é diretora jurídica e de gestão da Abrace Energia, advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com pós-graduação em Gerenciamento de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas.

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