Opinião

Direito Urbanístico e o desenvolvimento das cidades no litoral de SC

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11 de janeiro de 2024, 7h02

O atual momento das cidades do litoral de Santa Catarina, sobretudo no que se refere ao novo ciclo de explosão imobiliária com alta valorização (Costa, 2024), produze uma questão importante para quem vive nestas cidades e para quem deseja um lugar agradável e bom para morar e visitar: como será o futuro delas e como está sendo a sua projeção para acomodar as milhares de pessoas que passam todos os anos a habitá-las?

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Este questionamento faz recordar um artigo de Slovij Zizek (2023), publicado orginalmente na Jacobin, e no Brasil em Outras Palavras, neste último sob o título de “Zizek propõe um curto circuito temporal”. Nesse texto, o autor separa o futuro do porvir, designando o primeiro como “[..] continuação do presente, como a plena atualização das tendências que já estão presentes, enquanto porvir aponta para uma ruptura radical, uma descontinuidade com o presente — porvir é o que está por chegar (por vir), não apenas o que será” (Zizek, 2023).

Nesse artigo, Zizek (2023) afirma que “[…] o passado está aberto a reinterpretações retroativas, enquanto o futuro está fechado, pois vivemos em um universo determinista”. Ao mencionar isso, o autor não quer dizer que o futuro não possa ser alterado. Ele apenas explica que isso quer dizer “[…] que, para mudar o nosso futuro, devemos primeiro (não “entender”, mas) mudar o nosso passado, reinterpretá-lo de modo que ele se abra para um futuro diferente daquele implícito na visão predominante do passado” (Zizek, 2023).

Essa referência pode colaborar para entendermos o atual crescimento (sobretudo imobiliário e populacional) das cidades do litoral de Santa Catarina. O Censo de 2022 demonstrou que cidades como Florianópolis, Palhoça, São José, Itajaí, Balneário Camboriú, Camboriú e Itapema estão crescendo em população acima da média nacional (Santanella, 2023). Quem está por aqui, no cotidiano destas cidades, já percebe o impacto desse crescimento, que se amplia em muito nos períodos de temporada de verão, podendo ser observado como aquilo que é no presente mas também será no futuro.

O efeito da temporada de verão é apenas um laboratório que antecipa efeitos que serão permanentes nesse futuro praticamente determinado. É nesse ponto que o sentido proposto por Zizek se realiza nesta realidade. O futuro do litoral de Santa Catarina e de suas cidades é certo, o que já se pode sentir nas temporadas de verão, e também em avaliações reflexivas das maiores em relação as menores. Mantida a atual forma de observar e entender o desenvolvimento (sobretudo econômico), o futuro destas cidades é mais do que certo.

A visão de Zizek estabelece a necessidade de mudar o passado, que no padrão de cidades no litoral de Santa Catarina deve ser compreendido em tudo que se fez até agora e que, por consequência, produziram os atuais efeitos, positivos e/ou negativos. Nessa análise, com certeza se encontrariam dados que refletiriam o aumento do PIB  (Produto Interno Bruto), a melhora de alguns padrões estéticos, o surgimento de uma variedade de equipamentos e serviços, a ampliação de acessibilidade em determinados lugares das cidades, bem como a melhoria de algumas infraestruturas. Mas também é certo que muitos problemas surgiram ou se ampliaram como congestionamentos, a dificuldade de morar, ocupações em áreas de risco e de proteção, aumento da desigualdade social, problemas no abastecimento de água e energia elétrica, ausência de balneabilidade em diversas praias, etc.

Essa razão hipotética de um futuro certo, aqui no litoral de Santa Catarina, não é necessária para se avaliar o atual modelo de desenvolvimento. Ele já ocorre nas temporadas de verão, apresentando seus gargalos que só poderão ser superamos com planejamentos que devem ser feitos agora em todos os níveis, desde os marcos legais, passando por processos pedagógicos e de sensibilização da população, até a garantia dos recursos financeiros para a realização das políticas públicas que deverão cumprir o que rege a Constituição Federal, em seu artigo 182, ou seja, o fato de que a política urbana tem por objetivo o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem estar de seus habitantes (Brasil, 1988).

Esse problema é da essência do Direito Urbanístico, que talvez mais do que outros ramos do Direito, por sua por função conformativa da realidade, constitui em seu dever-ser uma missão para além da regulação de atividades e conflitos atuais, tendo como objetivo a conformação da realidade da cidade, preparando-a para novas demandas ou para o seu aumento, corrigindo carências históricas e alcançando o objetivo de quem vive nas cidades, elevado ao patamar constitucional no signo do “bem-estar de seus habitantes”.

Esse bem estar está diretamente relacionado, do ponto de vista jurídico, à garantia dos direitos fundamentais que cada pessoa necessita para atingi-lo. Por sua vez, isso também está relacionado às perspectivas que ultrapassam a seara individual, ganhando conteúdo intersubjetivo, de ordem coletiva e difusa, superando em muito as fronteiras das próprias cidades, devendo ser pensado em âmbito planetário.

Para encarar esse fenômeno de aumento populacional e crescimento econômico por meio do incremento imobiliário, é fundamental se refletir sobre o que vem sendo feito e o que pode ser alterado para que o amanhã das cidades do litoral catarinense seja melhor que hoje ou mesmo para que não venha a piorar o “bem-estar de seus habitantes”. Essa dimensão jurídica do Direito Urbanístico conceitualmente está bastante próxima daquilo que Zizek (2023) chama de porvir, o que significa que não basta querer mudar, é necessário antes mudar o passado, romper com a razão da realidade que forjou ela do jeito que se encontra.

O fato é que a dimensão destas cidades, segundo Peres, Abreu e Calheiros (2023, p.1145), em estudo sobre Florianópolis, mas que se replica em várias outras cidades do litoral de Santa Catarina, é de uma cidade com três dimensões dominantes, a cidade mercadoria, a cidade empresa e a cidade pátria. Segundo os autores, a cidade é dominada pelo capital privado, sobretudo imobiliário. Esse fenômeno permite se observar que sua conformação ocorre a partir de uma visão única de desenvolvimento (o econômico), que produz uma relação direta e aberta entre o poder público e os empresários, deixando-se a população uma participação meramente formal (Rizzo, 2013).

Desta forma, o que se observa em quase todas as cidades do litoral catarinense no incremento de benfeitorias públicas, nas regulações legais, sobretudo relacionadas ao Plano Diretor, na tentativa de manter a excelência em determinados serviços (que muitas vezes ainda falham, como abastecimento de água e coleta de lixo) e na manutenção de certos padrões de beleza e estética, é que eles são garantidos para o crescimento econômico, sob a cumplicidade da opinião pública [1].

O fato é que todas essas condutas e modelos de desenvolvimento, tanto público quanto privados, são realizados para uma parcela da população, não visando a universalidade da sociedade. A quase totalidade destes empreendimentos privados e destas ações públicas não conseguem ou não alcançam o todo da população, fazendo com que haja fortes processos de segmentação social e exclusão, rompendo a lógica universalizante da cidadania.

A tendência do Direito e do Estado de Direito, como produto das revoluções liberais e de um aprimoramento em um Estado Social e Democrático, é a universalização e o equilíbrio de circunstâncias sociais que produzam certa igualdade de oportunidades, que permitam os mesmos acessos a todas as pessoas, garantindo-lhes direitos fundamentais constitucionalmente previstos para uma vida digna. No campo do Direito Urbanístico isso significa modular o desenvolvimento da política urbana para que a cidade como um bem seja acessada por meio de sua conversão em direitos coletivos e difusos acessíveis para todos e, principalmente, por meio de suas funções sociais voltadas para garantir direitos fundamentais.

Esse processo, como ordena o Estatuto da Cidade, apenas se torna possível por meio de ampla e fomentada participação popular. No entanto, até essa participação, quando ocorre, demanda um porvir, que precisa, para ocorrer, de informação, tempo de reflexão, opinião pública crítica, oportunidades de participação reais, debates públicos etc. Pensar as cidades do litoral de Santa Catarina e planejá-las com os mesmos fundamentos atuais, voltada para um único segmento econômico, apenas tende a determinar uma realidade que todos os anos, sobretudo entre o natal e o ano novo já são sentidas, pelo menos pela maioria da população.

Da mesma forma, a não mudança do passado, como uma ruptura com o atual modelo de cidade que vem se desenvolvendo no litoral de Santa Catarina, para se planejar um futuro diferente, no qual todos possam morar, viver bem e com dignidade, sem amplos congestionamentos, falta de água e serviços básicos, é retirar do Direito Urbanístico grande parte de seu potencial transformador e parte essencial de sua função conformadora na realidade das cidades, realizada para garantir direitos fundamentais e o bem-estar de seus cidadãos.

 


[1] Ao se procurar no Google pela expressão “matérias da NSC sobre o setor imobiliário no litoral de Santa Catarina no ano de 2023” constata-se que foi publicado em seu portal de notícias, em média, uma matéria por semana sobre o setor, sendo que apenas quatro aparecem com elementos negativos ou algum tipo de contrapondo às virtudes do setor imobiliário.

Referências bibliográficas

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em 6.1.2024.

COSTA, Vitor da. Por que o litoral de Santa Catarina tem os imóveis que mais se valorizam? OGLOBO. Economia, Rio de Janeiro, 2024. Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/01/02/litoral-de-santa-catarina-tem-boom-imobiliario.ghtml. Acessado em 5.1.2024.

PERES, L.F.B., ABREU, M.S. e CALHEIROS, F.V. Cidade à venda: inflexão ultraliberal na produção do espaço em Florianópolis. Caderno Metrópole, São Paulo, v. 25, n. 58, pp. 1143-1169, set/dez 2023. Disponível em https://www.scielo.br/j/cm/a/TtcyGp47LqVBTyTSy8tLxWd/?format=pdf&lang=pt. Acessado em 6.1.2024.

RIZZO, P. M. B. O planejamento urbano no contexto da globalização: caso do plano diretor do Campeche em Florianópolis, SC. Tese de doutorado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/101054/317524.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acessado em 6.1.2024.

SANTANELLA, Thiago. Destaques nacionais, Itajaí e Palhoça sobem posições no ranking estadual das cidades mais populosas. Agência Catarinense de Notícias, Secom, 2023. Disponível em https://estado.sc.gov.br/noticias/destaques-nacionais-itajai-e-palhoca-sobem-posicoes-no-ranking-estadual-das-cidades-mais-populosas/. Acessado em 5.1.2024.

ZIZEV, Slavoj. Žižek propõe um curto-circuito temporal. Outraspalavras. Descolonizações, 2023. Disponível em https://outraspalavras.net/descolonizacoes/zizek-propoe-curto-circuito-temporal/. Acessado em 5.1.2024.

 

 

Autores

  • éadvogado, mestre em direito pela UFSC, professor da Faculdade de Direito Uniavan e da Escola Superior de Advocacia (ESA-SC), membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SC, procurador e secretário de Governo e Planejamento Estratégico de Itapema-SC (2006-2011), prefeito de Porto Belo-SC (2013-2016), assessor jurídico-parlamentar na Assembleia Legislativa de SC (2017-2018).

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