Opinião

Linhas de transmissão e seus efeitos na Alta Mogiana (parte 2): instabilidade das decisões interlocutórias

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14 de março de 2024, 15h23

Em continuação ao artigo publicado no portal nesta ConJur em 28 de janeiro de 2024 [1], referente às recomendações pré-processuais e aos apontamentos sobre os efeitos negativos do avanço de linhas de transmissão de energia de grandes proporções na região da Alta Mogiana (interior do Estado de São Paulo), observa-se que, após o ajuizamento das ações de instituição de servidão administrativa, os diversos Juízos de 1ª instância paulistas, em apreciação dos pedidos de tutelas de urgência, proferiram decisões interlocutórias diferentes, ou seja, casos semelhantes — para não dizer idênticos — sendo decididos de modo distinto, em violação ao princípio da isonomia.

Pois bem, em sede cognição sumária, as mencionadas instâncias judiciais, ora deferiram a “urgente” imissão na posse em favor da concessionária de energia elétrica, ora, acertadamente, indeferiram, conforme será exposto abaixo.

Nos termos do verbete nº 30 da Súmula do Tribunal de Justiça de São Paulo, verifica-se que é “cabível sempre avaliação judicial prévia para imissão na posse nas desapropriações” [2], razão pela qual o indeferimento dos pedidos de tutela de urgência primo ictu oculi descortina-se de rigor, devendo ser antes determinada a realização da prévia avaliação judicial das áreas afetadas para fins de assegurar a “justa indenização” para imissão na posse da parte autora.

É notório, pois, que, com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, o legislador federal conclamou o intérprete a respeitar os precedentes judiciais e a força do direito jurisprudencial, conforme se extrai da norma processual insculpida no artigo 926, caput e parágrafo primeiro:

Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Ena forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.”

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Veja-se, portanto, que ao ensejo da apreciação do pedido de tutela provisória de urgência, formulado pela concessionária de energia autora, com o escopo de obter a imissão na posse, o ilustre julgador deveria, em tese, consultar a jurisprudência dominante do respectivo tribunal de justiça que se encontra vinculado, assim como dos tribunais superiores, para então decidir pela concessão ou não do pedido de tutela de urgência.

Não obstante, em simples pesquisa, verificou-se que houve notória divergência de entendimentos adotados entre os Juízos de 1ª instância paulistas sobre a concessão ou não dos pedidos de tutela de urgência para imissão na posse dos imóveis rurais, a título de amostragem é o que se extrai do quadro ilustrativo abaixo:

Concessão ou não do pedido de tutela de urgência Nº do processo Vara Judicial
não concedido 1000023-32.2024.8.26.0213 1ª Vara de Guará
não concedido 1000125-64.2024.8.26.0242 1ª Vara de Igarapava
concedido 1000157-28.2024.8.26.0288 2ª Vara de Ituverava
não concedido 1000138-22.2024.8.26.0288 1ª Vara de Ituverava
concedido 1000126-08.2024.8.26.0288 2ª Vara de Ituverava
não concedido 1000120-41.2024.8.26.0404 1ª Vara de Orlândia
não concedido 1000141-95.2024.8.26.0572 2ª Vara de São Joaquim da Barra
concedido 1000138-43.2024.8.26.0572 1ª Vara de São Joaquim da Barra
concedido 1000061-46.2024.8.26.0374 Vara Única de Morro Agudo
não concedido 1000308-37.2024.8.26.0597 2ª Vara de Sertãozinho

Infere-se, portanto, do quadro ilustrativo acima que, em algumas situações, a divergência de entendimentos ocorreu perante o foro judicial de uma única comarca, ou seja, a depender de onde tramita o processo, se é na 1ª ou 2ª Vara Judicial, o resultado prático ao jurisdicionado é totalmente distinto, obrigando-o a adotar medidas recursais — cujo valor do recolhimento das custas processuais do preparo recursal é  conhecidamente elevado — para então reformar a respectiva decisão perante o órgão judicial hierarquicamente superior.

Mudança cultural no Jucidiário
Com absoluto respeito, é justamente essa uma das mazelas negativas que o vigente Código de Processo Civil busca enfrentar nos dias de hoje, conforme se extrai da recente entrevista feita pela ConJur com a então ministra do Superior Tribunal de Justiça Assusete Magalhães, a qual integrou a Comissão Gestora de Precedentes, tendo enfatizado os principais desafios do Poder Judiciário com relação à mudança de uma cultura, textual:

ConJur — No fim das contas, o estabelecimento de uma cultura de precedentes mexe com o embate entre o livre convencimento motivado do juiz e a necessidade de uma jurisprudência íntegra e una. Como tem se resolvido esse dilema?

Assusete Magalhães — É preciso que haja uma mudança de cultura. É preciso que o Judiciário, em todas as suas instâncias, assimile essa cultura de formação de precedentes qualificados e procure implementá-la efetivamente, porque esse mesmo CPC que criou esse sistema de precedentes alargou a marcha processual e ampliou os prazos recursais, que passaram a ser computados em dias úteis. Ele ampliou o contraditório na fase recursal e passou a exigir impugnação. Se o Judiciário brasileiro não assimilar essa cultura, sem dúvida, haverá uma piora da situação.

Nós ainda temos magistrados, e são poucos, é verdade, mas ainda temos os que dizem: “Existe mesmo esse precedente qualificado, mas eu penso de modo diferente. Isso não traz benefício para ninguém porque o que vai exigir é o processo chegar ao STJ, que vai, na primeira assentada, reformar a decisão. Com isso, cria-se uma vã ilusão para o jurisdicionado. Não há nada mais injusto do que duas pessoas que procuram o Poder Judiciário com a mesma postulação receberem respostas judiciais distintas no mesmo espaço de tempo e perante a mesma ordem jurídica. Como o jurisdicionado pode aceitar uma coisa dessas? A cultura dos precedentes, com a formação dos precedentes qualificados, de observância obrigatória, permite esse tratamento isonômico. Isso conduz a um Judiciário eficiente e traz pacificação social.”

Sob outra perspectiva, pelo dever geral de cautela, inerente aos membros do Poder Judiciário, considerando que o valor do hectare paulista é considerado o mais “caro” do país, a teor de uma recente notícia divulgada pelo sítio eletrônico do Agrofy News[3], não há menor dúvida de que para concessão de medida liminar de imissão na posse, afigura-se absolutamente recomendável a prévia avaliação judicial do bem afetado para se alcançar uma “justa indenização”, mas não se basear apenas na prova unilateral produzida pela parte interessada.

Danos ao proprietário rural

Em se tratando de medida drástica (imissão na posse), o proprietário rural poderá sofrer danos irreparáveis ante o ingresso abrupto de máquinas e funcionários da concessionária de energia elétrica, a qual poderá danificar a cultura agrícola preexistente, não apenas na área destinada a servidão, mas em toda extensão daquele imóvel rural.

Spacca

Além disso, é necessário considerar, outrossim, os riscos de acidentes ocasionados pelo trânsito de máquinas agrícolas para pulverização, adubação e, até mesmo, colheita, simultaneamente, com as máquinas de construção, nas apertadas estradas rurais.

Daí porque, a prévia avaliação judicial do imóvel afetado permitirá uma maior segurança probatória sobre as características do imóvel rural, evitando, portanto, o perecimento de elementos fundamentais ao “direito à prova” do proprietário rural (cf. artigo 369 do Código de Processo Civil), o qual terá ônus de demonstrar em juízo os prejuízos sofridos para obter a respectiva indenização (“justa indenização”).

Com efeito, como bem apontado pela então ministra Assusete Magalhães, “…não há nada mais injusto do que duas pessoas que procuram o Poder Judiciário, com a mesma postulação, receberem respostas judiciais distintas no mesmo espaço de tempo e perante a mesma ordem jurídica…”. Nesse sentido, pergunta-se: como o advogado poderá explicar ao seu cliente que no caso do “fulano” foi indeferida a imissão na posse, mas, no seu caso, infelizmente, em trâmite na mesma comarca, será necessário interpor o respectivo recurso?

É exatamente essa a situação que recentemente, os ora articulistas, na condição de advogados, tiveram que explicar aos seus inconformados clientes na sala de atendimento do escritório de advocacia.

Conclui-se, portanto, que a instabilidade das decisões interlocutórias causa igualmente repulsa e gera uma sensação de insegurança jurídica ao jurisdicionado, na contramão do que preconiza a norma positivada no artigo 926 do CPC, principalmente, quando questões mais sensíveis ao ser humano estão em disputa, como, por exemplo, a propriedade, a qual, em muitos casos, foi conquistada mediante o hercúleo esforço do cidadão por anos a fio de trabalho e, para muitos, tal bem corresponde à única fonte renda para toda sua família.


[1] Disponível: https://www.conjur.com.br/2024-jan-28/linhas-de-transmissao-e-seus-efeitos-nefastos-na-alta-mogiana/). Acesso em: 29.2.2024.

[2] Disponível: https://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Biblioteca/Biblioteca/Legislacao/SumulasTJSP.pdf. Acesso: em 29.2.2024

[3] Disponível: https://news.agrofy.com.br/noticia/203055/qual-e-o-preco-do-hectare-terra-no-brasil . Acesso em: 29.2.2024.

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