Opinião

Combate inconstitucional à pobreza e a sobretaxa de energia elétrica

Autores

  • Nathalia Lisboa

    é especialista em planejamento tributário advogada do escritório Fortes Nasar Advogados.

  • Gabriel Fortes

    é advogado na área de proteção de dados e segurança digital do escritório Fortes Nasar Advogados pós-graduado em Direito Digital e Compliance MBA em Liderança Estratégica e Gestão Financeira e mestre em Direito Constitucional.

12 de fevereiro de 2024, 19h15

Recentemente, o governo do Ceará anunciou mudanças que simplificam o cálculo do ICMS referente ao adicional destinado ao Fundo Estadual de Combate à Pobreza (ICMS-Fecop). Muitos setores do mercado festejaram a mudança — principalmente os seus contadores, responsáveis por fazer todo o malabarismo fiscal necessário para atender a legislação.

A notícia, porém, reacende uma questão peculiar sobre a própria lei do Fecop. Aliás, falar do Fecop nos dá sempre a oportunidade de resolver certas “implicâncias” com a legislação, que vão além da mera reclamação sobre carga tributária ou contra a burocracia fiscal.

Eis a polêmica: existe uma provável inconstitucionalidade na lei que instituiu o Fecop no estado do Ceará. Ou melhor, em parte dela. É que o problema não é o fundo em si, mas aquilo que ele tributa.

A Emenda nº 31 e a autorização aos fundos
Tudo começa no ano 2000. Através da Emenda nº 31 à Constituição Federal, o artigo 82 foi acrescentado ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, prevendo que estados, Distrito Federal e municípios instituíssem Fundos de Combate à Pobreza.

Para financiar esse fundo, os estados foram autorizados a instituir o adicional de até 2% na alíquota do ICMS, sobre “produtos e serviços supérfluos”, de acordo com o que se lê no artigo 82, § 1º, do ADCT. Esse era o cenário normativo da época.

Em território cearense, o fundo foi criado pela Lei Complementar nº 37, de 2003, justamente com intuito de auxiliar na subsistência da população pobre local. Sua finalidade era direcionar recursos para áreas cruciais da vida, como nutrição, habitação, educação, saúde, saneamento básico, e reforço de renda familiar.

Energia elétrica incluída no rol dos tributados
Trata-se de programação muito bem-vinda — aliás, no contexto brasileiro, até necessária. Acontece que, dentre vários itens que foram incluídos na lista dos produtos a receberem o adicional tributário, constava simplesmente o consumo de energia elétrica (artigo 2º, I, “f”).

Agora vem a questão: será que “energia elétrica” deveria estar mesmo no rol de produtos e serviços tributados no âmbito do Fecop? A título de comparação, na lista da lei constam itens como bebidas alcoólicas (artigo 2º, I, “a”), armas e munições (artigo 2º, I, “b”), aviões ultraleves (artigo 2º, I, “e”), dentre outros itens que, num país como o Brasil, especialmente num estado como o Ceará, podem facilmente ser considerados “supérfluos”. Mas energia elétrica?

Certamente, a legitimidade desse tipo de arrecadação adicional sobre eletricidade merece ser questionada. Não se trata, contudo, apenas de pôr em xeque o bom senso fiscal. A lei estadual parece, na verdade, confrontar princípios constitucionais, o que tornaria a cobrança questionável até do ponto de vista jurídico.

Supérfluo ou essencial?
Afinal de contas, poderia a energia elétrica ser considerada produto supérfluo? Bom, a própria jurisprudência nacional oferece uma pista para a resposta. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, o fornecimento de energia elétrica configura serviço público essencial [1]. Ora, como poderia a prestação do serviço ser essencial, sem que o produto fornecido não fosse também?

O mesmo diz a Lei federal nº 7.783/89, que, ao dispor sobre o exercício do direito de greve, define como atividade essencial — a qual não pode ser interrompida pelo movimento — a produção e distribuição de energia elétrica (art. 10, I).

Para complementar, se fizermos uma interpretação sistemática e teleológica da própria Constituição, encontraremos nela a previsão de que o poder público deve promover políticas de eletrificação junto à população rural (artigo 187, VII), ou seja, o consumo de energia elétrica é uma prioridade constitucional, que deve ser promovida pelo Estado em sua faceta executiva. Como então poderia a energia elétrica ser considerada mercadoria supérflua?

Cobrança revogada
Talvez por isso o próprio estado do Ceará finalmente revogou a cobrança do adicional de 2% sobre energia elétrica. O problema é que isso foi feito só em 2022 (LC 287/22). Ou seja, foram praticamente 20 anos de tributação inconstitucional. E o curioso é que houve oportunidade política para fazer essa mesma correção antes, ainda em 2016, quando a LC nº 161 alterou a redação do citado artigo 2º da Lei do Fecop (sem, contudo, mudar uma vírgula na lista tributária original).

De todo modo, a correção efetuada não apaga os 20 anos de sobretaxa indevida. O lado bom? Ainda dá tempo de tentar recuperar uma parte do que foi pago. O lado ruim é que não há muito tempo para pensar. É melhor se apressar, pois a prescrição está correndo.

 


Notas:

[1] A título de exemplo, os julgados em REsp 2019136/RS e REsp 952.760/RS.

 

 

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