Interesse Público

Fim do Tema 1.096/STJ determina superação da tese do dano in re ipsa nas ações de improbidade

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21 de março de 2024, 8h00

A Lei 14.230/21 (que alterou a Lei 8.429/92), mesmo que se reconheça diversas tentativas, aqui e acolá, de se isolarem os efeitos de suas modificações, continua a gerar importantes impactos no cenário jurídico nacional.

Os reflexos da nova lei, notadamente a partir do julgamento do Tema 1.199 pelo STF, vêm, pouco a pouco, colocando as coisas no seu devido lugar.

Primeiro, pelo reconhecimento da aplicação da lei nova aos processos em curso (ainda não transitados em julgado).

Segundo, pela extinção dos processos em que a condenação ou a imputação se perfizeram exclusivamente com base na modalidade culposa (que foi extinta); terceiro, pela extensão da respectiva ratio decidendi para outros casos, como o da condenação com base na inóspita figura do dolo genérico (ou dolo in re ipsa). [1]

Seguiram-se, ainda:

(a) o cancelamento do Tema 1.048 do STJ, que queria ver aplicável, por analogia, o reexame necessário às ações de improbidade administrativa;
(b) a revisão do tema 1018 (sobre a figura do dano in re ipsa ou do dano presumido na contratação de servidores temporários);
(c) o cancelamento do Tema 1096, mediante a decisão lavrada em 22 de fevereiro de 2024, nos autos do REsp nº 1.912.668/GO e do Resp nº 1.914.458/PI, rel. min. Afrânio Vilela.

Spacca

Convém obtemperar que o fundamento principal do STJ no último (e mais recente) caso, foi o de que o Tribunal havia criado, de forma pretoriana, sem lei, a modalidade de “dano presumido in re ipsa”, convindo, fazer coro ao relator, para, de uma vez por todas, se abolir essa figura, em especial com a vigência da Lei nº 14.230/2021. [2]

O tema cancelado respeita à conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente, o que não raro, costumava qualificar a prática de ato de improbidade administrativa in re ipsa (antes da Lei 14.230/21), punindo agentes públicos e privados.

Em 15 de julho de 2021 (antes, portanto, da Lei 14.230/21), eu já havia criticado, num texto publicado aqui nesta ConJur, aspectos incongruentes dessa tese do “dano in re ipsa”. A propósito, escrevi que:

“[A] disposição [artigo 10, VIII da Lei 8.429/92], é a mais utilizada para fundamentar ações de improbidade administrativa em matéria de licitações e contratos, muitas vezes movidas pela falsa impressão de que contratações diretas são ipso facto inválidas, e que contratações licitadas são da mesma forma válidas.”

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça chegou a se pacificar, em decisões da 1ª e da 2ª Turma, no sentido de que “as condutas descritas no artigo 10 da LIA demandam a comprovação de dano efetivo ao erário público, não sendo possível caracterizá-las por mera presunção . (ver: STJ, REsp 1.228.306/PB, rel. min. Castro Meira, j. 09.10.2012, REsp 621.415/MG, rel. min. Eliana Calmon, j. 16.02.2006; REsp 805.080/SP, 1ª Turma, DJe 06.08.2009; REsp 939.142/RJ, 1ª Turma, DJe 10.04.2008; REsp 678.115/RS, 1ª Turma, DJ 29.11.2007; REsp 285.305/DF, 1ª Turma; DJ 13.12.2007; REsp 714.935/PR, 2ª Turma, DJ 08.05.2006; REsp 1.038.777/SP, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, DJ 03.02.2011, Dp 16.03.2011).

Orientação ultrapassada

Mais recentemente [antes da lei nova], todavia, essa orientação tem [tinha] sido ultrapassada, dando lugar à invocação do dano in re ipsa, o qual decorreria, conforme a tese própria, da suposição de que a realização do certame encontraria inobjetavelmente preços menores para a contratação (ver: RESP 817921/SP, min. Castro Meira, j. 27.11.2012, Dje 06.12.2012 e do REsp AgRg nos EDcl no AREsp 419.769/SC, rel. min. Herman Benjamin, j. 18.10.2016, DJe 25.10.2016).

Duas questões merecem [mereciam] destaque. Primeiro não é real a afirmativa de que sempre que a Administração realiza uma licitação ela obtém os melhores preços existentes no mercado. Isso não é uma verdade. É uma presunção dentro da presunção.

Com efeito, seja porque ao laçar o edital a Administração não tem condições de saber quantos e quais os licitantes se apresentarão ao certame, seja porque antes da abertura das propostas comerciais é impossível saber qual será a proposta vencedora, qualquer presunção de que a contratação licitada se apresenta ipso facto como a mais vantajosa não passa de uma conjectura hipotética.

Segundo porque o artigo 10, caput da Lei 8.429/92 menciona condutas objetivas que constituem o núcleo tipológico da infração, a saber: “perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de bens ou haveres”, todas articuladas ao efeito de constatar a diferença patrimonial efetiva para menos antes e depois do resultado do ato hostilizado.

A boa hermenêutica recomenda [recomendaria] que os incisos de um dispositivo legal devam [devessem] ser interpretados de acordo com o caput. É esta uma conexão lógica que não abre espaço para uma desconexão interpretativa entre o inciso VIII e a cabeça do artigo 10 da Lei 8.429/92.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidira, em decisão monocrática, da lavra do ministro Alexandre de Morais (ARE 1.265.026/RJ, j. 13/05/2020), afastar a aplicação do dano presumido em matéria de contratação direta sem licitação, exatamente a tese que agora [ou antes da Lei 14.230/21] é objeto de discussão no Tema 1.096 do STJ.

Portanto, andou bem o STJ ao cancelar o Tema 1.096 da sua galeria de teses repetitivas, seja porque é um perigo que a repetição irrefletida de equívocos jurídicos, possa se tornar realidade (o que não é salutar para o bom direito), seja porque o regime jurídico das improbidades administrativas, carregado de caráter punitivo, deve ser encarado, em sistema probatório-acusador, como algo maior do que a mera presunção.

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[1] Nesse sentido, o Enunciado 2 do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) dispõe que: “2. O ato de improbidade administrativa exige para sua configuração, em todas as modalidades, dolo específico, não sendo cabível a aplicação de sanção em caso de dolo eventual e de dolo genérico.”

[2] Sobre esse apontamento, ver, bastante antes da vigência da Lei 14.230/21, a crítica de FERRAZ. Luciano. Dano in re ipsa cria, sem lei, novo tipo de improbidade (conjur.com.br), publicada aqui na Conjur em maio de 2017.

 

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