Opinião

Transferência de pessoa condenada: espécie menos conhecida de cooperação internacional

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7 de março de 2024, 15h14

Com frequência, a condenação de pessoas em outros estados suscita questionamentos sobre as formas de cumprimento da pena, dependendo da nacionalidade e localização do condenado. O tema voltou recentemente à tona no caso do jogador Daniel Alves, embora a sua condenação ainda seja passível de recurso.

Quando a pessoa condenada não se encontra no Estado que proferiu a decisão, a efetividade no cumprimento da condenação depende da cooperação do local em que a pessoa está localizada.

A espécie de cooperação jurídica internacional mais conhecida aplicável nesses casos é a extradição, em que se requer o auxílio de outro Estado na captura da pessoa e no seu translado ao local onde foi condenada.

Se a extradição não é possível (por exemplo, nos estados que não extraditam nacionais), são alternativas a transferência de processo (se ainda não houver decisão definitiva) e a transferência de execução da pena (se já houver decisão definitiva), que propiciam o deslocamento da execução para o Estado em que a pessoa se encontra.

Quando a pessoa está no Estado em que foi condenada, em geral lá cumpre a pena e, quando finda, a depender das regras locais, pode ser expulsa daquele Estado (no caso brasileiro, a expulsão ocorre nas hipóteses do artigo 54 da Lei de Migração).

Transferência de pessoa condenada

Há ainda outra opção, menos conhecida, que permite que uma pessoa condenada em um Estado cumpra pena em outro: a transferência de pessoa condenada. Essa espécie cooperacional foi especulada como possível alternativa caso haja futuro cumprimento de pena pelo jogador Daniel Alves, tornando oportuno resumir a sua finalidade, requisitos e procedimento.

Os presos estrangeiros enfrentam dificuldades étnico-culturais e socioeconômicas distintas dos presos nacionais. Embora seja vedado tratamento discriminatório, o estigma social dificulta pedidos de saída temporária, livramento condicional e progressão de regime de cumprimento da pena de estrangeiros, que é associada à realização de trabalho lícito e à existência de vínculos com a comunidade [1].

Divulgação

Assim, há dúvidas se a função ressocializadora da pena, garantida, entre outros, no artigo 10.3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no artigo 5.6 da Convenção Americana de Direitos Humanos, pode ser atingida quando o condenado cumpre pena em Estado com o qual não possui vínculos sociais, culturais e familiares; e pior, ao qual, cumprida a pena, não será reintegrado, mas, ao contrário, expulso e proibido de reingressar (no caso brasileiro, por período delimitado) [2].

Visando maior ressocialização, a transferência de execução da pena é uma ferramenta de cooperação jurídica internacional em matéria penal de cunho humanitário que possibilita o translado de um indivíduo que cumpre pena em um Estado para que o faça no Estado de sua nacionalidade, residência habitual ou vínculo pessoal.

Regimes internacionais de transferência

Atualmente, coexistem vários regimes internacionais de transferência internacional de pessoa condenada em tratados dos quais o Brasil é parte.

Em nível global, a transferência de pessoas condenadas por crimes específicos é prevista no artigo 17 da Convenção de Palermo contra o crime organizado transnacional (internalizada pelo Decreto 5.015/2004), no artigo 12 da Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (internalizada no Decreto nº 154/1991) e no artigo 30 da Convenção de Mérida das Nações Unidas contra a Corrupção (internalizada no Decreto nº 5.687/2006).

Em nível regional, o tema é objeto de disciplina na Convenção Interamericana de Manágua sobre o Cumprimento de Sentenças Penais no Exterior (internalizada pelo Decreto 5.919/2006), na Convenção de Praia sobre a Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (internalizada no Decreto nº 8.049/2013) e no Acordo sobre Transferência de   Pessoas Condenadas entre os Estados Partes do Mercosul (internalizado no Decreto nº 8.315/2014). O Brasil também já ratificou 17 tratados bilaterais, sobre transferência de pessoa condenada.

Nos casos em que o Brasil não ratificou tratados, a transferência de pessoa condenada também pode ser solicitada com base no princípio da promessa de reciprocidade entre Estados.

Internamente, a Lei de Migração passou a disciplinar a transferência de pessoa condenada nos artigos 103 a 105, complementada pelo Decreto 9.199/2017, que a regulamenta e pela Portaria do Ministério da Justiça n. 89/2018, que estabelece os procedimentos relativos à tramitação dos pedidos ativos e passivos no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Requisitos

Pelo seu caráter humanitário, a transferência de pessoa condenada possui, teoricamente, ampla aplicabilidade e requisitos diferentes das demais espécies cooperacionais, previstos nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil e espelhados no artigo 104 da Lei de Migração.

Identificam-se três requisitos subjetivos: (1) nacionalidade, residência habitual ou até mesmo vínculo pessoal com o Estado para o qual pleiteia transferência, sendo este requisito amplo aplicável a Estados que adotam uma visão (corretamente) mais flexível, como é o caso do Brasil, conforme consta do inciso I, do artigo 104 da Lei de Migração; (2) manifestação expressa de vontade do condenado em ser transferido e (3) concordância de ambos os Estados na transferência, sendo esses dois últimos requisitos a tradução do princípio do tríplice consentimento [3].

Diferentemente do que ocorre nas demais espécies cooperacionais, na transferência de pessoa condenada há importante peso na vontade do indivíduo, que pode escolher se deseja ou não ser cumprir pena no seu Estado de origem [4]. Não há um direito subjetivo do preso à transferência, que fica condicionada também à concordância dos Estados remetente e recebedor conforme previsto no inciso IV do artigo 104, da Lei de Migração e em linha com o entendimento da Corte Europeia de Direitos Humanos (caso Serce vs. Romênia) [5]. Porém, a oposição do condenado à transferência encerra a discussão, não podendo existir a transferência compulsória contra sua vontade.

Já os requisitos objetivos são: (1) trânsito em julgado da sentença condenatória; (2) duração mínima da pena remanescente (em geral seis meses ou um ano, a depender do tratado), calculada na data do pedido de transferência; não havendo restrição expressa, a pena pode ser privativa de liberdade, restritiva de direitos, medida de segurança ou medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente; e (3) dupla tipicidade do fato que originou a condenação no Estado remetente e no Estado recebedor, podendo, em determinadas situações, ser afastada por questões humanitárias.

Face à força expansiva dos direitos humanos aos procedimentos cooperacionais, todo o processo deve, ainda, respeitar os direitos previstos em tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Procedimento

A legitimidade para requerer a transferência é ampla, podendo ser feita pelo próprio condenado, cônjuge, parente, advogado, defensor, ou outra pessoa que saiba do interesse da pessoa condenada em ser transferida para o seu Estado de origem.

No Brasil, o procedimento de transferência de pessoa condenada é preponderantemente administrativo. Nas transferências passivas, após receber o pedido, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) verifica o cumprimento dos requisitos e submete o pleito ao Secretário Nacional de Justiça que, decidindo favoravelmente, encaminha a documentação ao Estado recebedor e comunica a decisão à Polícia Federal, ao estrangeiro e ao juízo da execução penal. Com a concordância do Estado recebedor, o juiz da execução expede alvará de soltura para fins de transferência e realiza os demais procedimentos operacionais.

Spacca

Nas transferências ativas, o DRCI verifica o cumprimento dos requisitos e solicita ao juízo da execução penal manifestação sobre a obtenção de vaga no sistema prisional brasileiro e, a seguir, submete o pedido ao Secretário Nacional de Justiça para decisão sobre a transferência. Se a transferência for deferida é comunicado o Estado remetente e então designado local e hora para a assunção da custodia da pessoa transferida.

Assim, embora ainda sem a necessária discussão aprofundada na jurisprudência, prevalece a dispensa da homologação de sentença estrangeira para a transferência de pessoa condenada para o Brasil, sendo o tema atualmente apenas da alçada do Poder Executivo [6].

Sistema híbrido

Outra característica da transferência de pessoa condenada é o sistema híbrido na execução penal – a condenação e a duração da pena são impostas pelo Estado remetente, não podendo ser revisadas pelo Estado recebedor; já a execução da pena é regida pelas regras do Estado recebedor, inclusive quanto ao regime, liberdade condicional e formas de extinção de punibilidade – o que gera um receio de que essa espécie cooperacional contribua para a impunidade [7].

Por exemplo, no final dos anos 1980, dois dos condenados no Brasil pelo sequestro do empresário Abílio Diniz possuíam nacionalidade canadense e foram transferidos para o Canadá para cumprimento das penas, onde, após poucos meses foram beneficiados com livramento condicional, o que não teria acontecido caso cumprissem suas penas no Brasil. Mais recentemente, um oficial tenente do exército do Azerbaijão (Safarov) foi condenado a pena de prisão perpétua, sem a possibilidade de soltura antecipada durante os primeiros trinta anos, pelo homicídio confesso, por razões discriminatórias, de um oficial armênio ocorrido na Hungria. Transferido para o Azerbaijão, o condenado foi recebido como herói nacional e recebeu o perdão presidencial [8].

Conclusão

Apesar de situações pontuais, a transferência de pessoa condenada não deve ser desestimulada. As diferenças nas regras de execução da pena entre estados remetente e recebedor não devem obstar a cooperação jurídica internacional, pois a compatibilidade dos sistemas jurídicos deve ser analisada quando da ratificação de tratados de cooperação e, individualmente, quando o Estado consente individualmente com cada transferência.

Eventuais casos de abuso de boa-fé e do rule of law, caso violem regras de direito internacional, podem ser combatidos com medidas diplomáticas, retorsão e inclusive responsabilidade internacional do Estado recebedor, por violação de obrigações previstas em tratados de transferência de pessoa condenada ou de direitos humanos.

A transferência de pessoa condenada fortalece os laços interestatais de cooperação jurídica internacional, além de aproximar o condenado do seu seio familiar e cultural, propiciando maior possibilidade de ressocialização, sendo uma alternativa legítima para uma situação complexa contemporânea [9].

Voltando ao caso de Daniel Alves, em um exercício hipotético, caso sua condenação se torne definitiva, a transferência de pessoa condenada seria uma alternativa viável, fundamentada em tratado bilateral específico ratificado por Espanha e Brasil (internalizado pelo Decreto nº 2.576/1998).

Para ser efetivada, a transferência dependeria da concordância de Brasil e Espanha e do próprio condenado, que deverá ponderar, juntamente com seu advogado, além dos aspectos pessoais sobre o local de cumprimento de pena, também sobre as diferentes regras nacionais (espanholas ou brasileiras) de cumprimento de pena.

 


[1] MACHADO, Vitor Gonçalves; RIBEIRO NETO, Pedro Machado. Presos estrangeiros no Brasil e o problema da seletividade penal. In: Derecho y Cambio Social, ISSN-e 2224-4131, Año 11, No. 35, 2014, p. 15-16.

[2] CASTILHO, Henrique de Castro. Transferência internacional de presos: medida de cooperação entre Estados ou direito fundamental do sentenciado? In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 23, no 266, jan. 2015, pp. 12-13.

[3] RITZMANN TORRES, Paula. Transferência de Pessoa Condenada: Resistência à cooperação jurídica internacional na execução da pena. In: Antônio Alves Celso Pereira. (Org.). A expansão sistêmica do Direito Internacional: Liber Amicorum Professor Wagner Menezes. 1ed.Belo Horizonte: Arraes, 2023, p. 801-819, cit. p. 808-811.

[4] CASTILHO, Henrique de Castro. Transferência internacional de presos: medida de cooperação entre Estados ou direito fundamental do sentenciado? In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 23, no 266, jan. 2015, pp. 12-13.

[5] CEDH, Serce vs. Romenia (Application no. 35049/08), julgamento de 30 de junho de 2015. Sobre o tema, MUJUZI, Jamil Ddamulira. The Transfer of Sentenced Persons Between European Countries and the Protection of the Right to Family Life: A Comment on Serce v Romania (Application no. 35049/08) (30 June 2015). In: European Criminal Law Review, v. 6, 3/2016, pp. 308-320.

[6] STJ, HDE 002507, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em. 01.04.2019; STJ, HDE 002271, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em. 07.02.2019.STJ, SE 5269, Rel. Min. decisão de 15/02/2011; STJ, SE 4141, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. em 10/09/2009. Sobre a discussão, ver Wiecko Volkmer de Castilho, Ela. Cooperação internacional na execução da pena: a transferência de presos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 71, mar/abr 2008, pp. 233-249; PEREIRA, Marcela Harumi Takahashi. Dos casos em que é desnecessário homologar uma sentença estrangeira. Tese de Doutorado. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2009, 264p; ABADE, Denise Neves. Direitos Fundamentais na Cooperação Jurídica Internacional: extradição, assistência jurídica, execução de sentença estrangeira e transferência de presos. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 365-366; MADRUGA, Antenor. Transferência de condenados sem homologação. In: Conjur, 20/06/2011. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2011-jul-20/cooperacao-internacional-transferencia-condenado-homologacao. Acesso em: 30.04.2020.

[7] ABADE, Denise Neves. Direitos Fundamentais na Cooperação Jurídica Internacional: extradição, assistência jurídica, execução de sentença estrangeira e transferência de presos. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 363-364.

[8] O caso motivou a elaboração de uma Draft Resolution pela Assembleia do Conselho da Europa, alertando sobre a violação aos princípios da boa-fé́ e rule of law previstos no artigo 12 do Tratado Europeu de Transferência de Pessoa Condenada.

[9] SOUZA, Artur brito Gueiros. O instituto da transferência de presos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 41, jan/mar 2003, pp. 78-112.

Autores

  • Doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Relações Internacionais pela UniCuritiba. Advogada.

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