Público & Pragmático

Homofobia no Direito Administrativo da UFPR: por quê?

Autor

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

7 de março de 2024, 17h21

Ainda estarrecido com os ataques homofóbicos gratuita e recreativamente desferidos no Salão Nobre do Direito UFPR (Universidade Federal do Paraná) na noite do último dia 29 de fevereiro, de autoria de dois conhecidos professores de Direito Administrativo contra dois outros professores de Direito Administrativo da própria universidade, resolvi contribuir para que a comunidade jurídica possa compreender um pouco melhor não somente a gravidade dos fatos em si, mas por quais razões os impropérios teriam sido proferidos por quem os proferiu e visivelmente se divertiu com o que estava fazendo.

Para rememorar o triste acontecimento, em rápido diálogo preparatório de lançamento de livro de Direito Administrativo, dois dos autores — ladeados à mesa por vários outros autores e autora — em tom jocoso e criminoso, aduzem que a ausência no evento de dois dos mais renomados e queridos professores da UFPR decorreria do fato de ambos provavelmente “estarem queimando a rosca”.

Por essas ironias do destino, o evento estava sendo gravado e transmitido ao vivo, e nele é possível ouvir as risadas de ambos os professores ecoando regiamente, numa diversão danada, em vista da “piada” feita.

Esta cena expressa o que? Preconceito, discriminação, discurso de ódio e, indubitavelmente, homofobia no seu estado mais bruto e grotesco.

Para o Direito, esta conduta abominável e torpe configura, em termos de enquadramento jurídico-normativo (sem adentrar nas possibilidades concretas de pleito indenizatório por danos pessoais e morais individuais e coletivos):

  1. infração administrativo-disciplinar e ofensa à integridade acadêmica — a serem apuradas pela UFPR;

  2. infração ao Estatuto dos Advogados e ao seu Código de Ética — a ser apurado pela OAB; e

  3. ao que tudo indica, é também passível de enquadramento e punição por crime de homofobia, incluído aí a sua espécie “injúria homofóbica”, a ser apurado pelo Ministério Público Federal, em ação pública incondicionada, nos termos dos seguintes precedentes do STF: ADO 26/MI 4733/DF (j. em 2019) e MI 4733 ED/DF (j. em 2023).

Em si apavorante e sórdida — as vítimas foram deliberadamente expostas e sequer estavam ali presentes! — o inexcusável desta prática (que certamente ocorre cotidianamente e aos milhares no Brasil afora) é que teve lugar nas dependências do Salão Nobre do Curso de Direito da UFPR, “a mais antiga do país”, tendo sido perpetrada por dois conhecidos professores de Direito Administrativo.

Spacca

Pela severidade e teor abjeto do “diálogo em tom de chacota”, o fato escalou e foi rapidamente ganhando redes sociais, grupos de WhatsApp, imprensa e opinião pública, tornando necessário um comunicado oficial da UFPR no qual, reiterando “seu compromisso inflexível e inabalável com a inclusão, a igualdade e o respeito à diversidade”, indica que “está agindo prontamente, fazendo encaminhamentos à diretoria disciplinar da instituição, que tomará as providências regimentais, seguindo o devido processo legal e garantindo um processo justo a todos os envolvidos” (3/3/24).

Fiquei me perguntando por dias sobre as possíveis intenções de ambos para deliberadamente ofenderem as vítimas desse modo infame e ignóbil, com requintes de crueldade, em um espaço acadêmico — daqui para frente maculado pela mancha do episódio homofóbico, que pena, UFPR! — em dia de lançamento de festejada obra jurídica para público formado preponderantemente por outros professores, acadêmicos de Direito e advogados.

A resposta é realmente difícil, mas para quem conhece o ideário acadêmico do Direito — mas não somente do Direito —, há competições cotidianas e infinitas, veladas e explícitas, de grupos e de indivíduos entre si, no intuito de ocuparem — como se isso fosse realmente possível — de modo soberano e indiscutível — o lugar de um  “Olimpo dos Acadêmicos”, povoado pelos poucos escolhidos e poucas escolhidas de Zeus, como aquelas figuras que seriam unânimes e únicas no imaginário de um dado ramo do Direito, uma casta superior dos melhores e mais perfeitos, excludentes de todos e de todas as demais companhias.

Esta meta — diga-se de passagem inatingível e inverossímil — até pode ser perseguida por muitos e muitas, dependendo da psique, higidez mental e vida pregressa de cada um ou uma. Particularmente, não a tomo como tarefa saudável, porque sou mais partidário da ocupação democrática de espaços por meio do trabalho árduo, interações com diferentes grupos e audiências, contribuições ao longo do tempo, da permanência no debate ao longo dos anos, na sua área de atuação do Direito.

Ocorre que esta “corrida pelo ouro” na Academia e no Direito — entenda ouro como ego, ascendência, proeminência, status elevado, soberba, vaidade etc., pode até ser  e muitas vezes é — a meta da vida de um Professor ou Professora. Mas que seja realizada a partir de princípios éticos, sem a necessidade de desqualificar ou depreciar o outro, aquele colega, parceiro, atuante na área daquele específico domínio do conhecimento jurídico.

Para mim, ao desdenharem de dois dos melhores professores de nova geração — altamente engajados e de qualidade técnica indiscutível no Direito Administrativo — os professores que cometeram homofobia na UFPR no dia 29 de fevereiro passado tiveram sim a intenção de rebaixá-los e de inviabilizá-los pelo fato de não integrarem aquele seleto grupo de professores, que estava ali lançando aquela obra jurídica, a fim de deixar claro o recado de que não tinham assento naquela mesa daquele evento. E o que foi pior, utilizando-se de linguajar chulo, sexualizado, repugnante e abertamente homofóbico.

Sei que é difícil falar sobre isso abertamente, como estou fazendo, mas para mim o que expresso aqui justificaria plenamente a intenção perseguida por ambos os detratores desse ataque homofóbico, que se utilizaram da homofobia para diminuir e desvalorizar dois grandes talentos e colegas especialíssimos do nosso Direito Administrativo.

Pessoalmente, penso ser uma lástima esta polarização, este antagonismo, este Fla-Flu acadêmico que tanto mal faz para o Direito e para a Academia no Brasil. Em nome dessa “supremacia acadêmica”, no caso aqui analisado, cometeram-se infrações e crimes de toda ordem, que vão do grave ao hediondo, imprescritível, inafiançável, como de fato e de direito é a homofobia. Que legado melancólico para as novas gerações…

Faculdade de Direito/UFPR

Por outro lado, a gravidade do ocorrido nas dependências de uma universidade pública revela que, se nem mesmo o ensino superior brasileiro está imune a estas práticas criminosas, temos ainda de fazer muito, mas muito mais mesmo, em relação ao combate à homofobia no país.

Neste ataque homofóbico, quais serão as justificativas dos professores detratores em relação aos seus atos? Que não tinham conhecimento da gravidade das suas falas preconceituosas? Que conhecem a “doutrina Chevron”, mas desconheciam as leis aplicáveis e a decisão do STF que criminalizou a homofobia…  em 2019? Que não sabiam que estavam sendo gravados e transmitidos publicamente? Que não tiveram intenção de ofender (escute as risadas no vídeo!)? Que a culpa e responsabilidade de seus atos são, na verdade, das vítimas?

Que a apuração deste episódio explícito de homofobia, ocorrido no meio acadêmico-universitário, receba apuração e punição exemplares, não somente pela UFPR — minha Alma Mater —, mas pela CGU, AGU — quiçá pela Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia — MPF, Polícia Federal e OAB.

É imperioso que o desfecho deste caso configure em si um divisor de águas, que traga em todas as dimensões possíveis mais respeito, integridade, tolerância e solidariedade para o Direito e para a Academia.

A retratação e a imposição das devidas sanções em face dos detratores certamente servirão como exemplo determinante para todo o país, se realmente queremos vivenciar uma sociedade mais intolerante com os intolerantes e um Brasil menos homofóbico.

Estamos, LGBTQIA+, negros, homens, mulheres, heterossexuais, brancos, pardos, jovens, idosos, sulistas, nordestinos etc, todos e todas e todes, invariavelmente juntos no mesmo barco do Direito e da Academia.

Toda forma de discriminação, preconceito e discurso de ódio, sobretudo nos espaços universitário e acadêmico — mas não somente — devem ser combatidos por todos, seja no âmbito público, seja no privado.

E para quem pratica homofobia, este lembrete nunca é demais: homofobia mata, e justamente por isso, homofobia é crime. E pode “dar cadeia” sim.

 

Assista abaixo ao momento do diálogo

 

Autores

  • é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor e advogado especialista em Direito Público, membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

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