Direito do Agronegócio

PIS/Cofins, animas vivos e o crédito presumido

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP ex-Membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV Direito SP e Ibet sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

1 de março de 2024, 10h15

Tivemos notícia de que a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça irá julgar, segundo informação, pela primeira vez, a possibilidade do crédito presumido na aquisição de animais vivos como insumo nos termos da Lei n. 10.925/2004.

Trata-se do AREsp n. 1320972/SP, de relatoria do ministro Benedito Gonçalves, que negou provimento ao recurso do contribuinte, havendo pedido de vista da ministra Regina Helena Costa.

Em verdade, o tema não é completamente novo, pois a interpretação do artigo 8º, § 3º, I, da Lei n. 10.925/2004, já havia sido analisado em outra ocasião em decisão isolada da turma. [1]

Nos parece, todavia, que inexistiu uma análise sistemática e pragmática de toda a legislação, merecendo referido julgamento muita cautela e atenção.

O cerne da discussão envolve o artigo 8º da Lei nº 10.925/2004, ao dispor que:

“Art. 8º As pessoas jurídicas, inclusive cooperativas, que produzam mercadorias de origem animal ou vegetal, classificadas nos Capítulos 2 a 4, 8 a 12, 15, 16 e 23, e nos códigos 01.03, 01.05, 0504.00, 0701.90.00, 0702.00.00, 0706.10.00, 07.08, 0709.90, 07.10, 07.12 a 07.14, exceto os códigos 0713.33.19, 0713.33.29 e 0713.33.99, 09.01, 1701.11.00, 1701.99.00, 1702.90.00, 18.01, 18.03, 1804.00.00, 1805.00.00, 20.09, 2101.11.10 e 2209.00.00, todos da NCM, destinadas à alimentação humana ou animal, poderão deduzir da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS, devidas em cada período de apuração, crédito presumido, calculado sobre o valor dos bens referidos no inciso II do caput do art. 3o das Leis nos 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, adquiridos de pessoa física ou recebidos de cooperado pessoa física.
(…)
3o O montante do crédito a que se referem o caput e o § 1o deste artigo será determinado mediante aplicação, sobre o valor das mencionadas aquisições, de alíquota correspondente a:
I – 60% (sessenta por cento) daquela prevista no art. 2o das Leis nos 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, para os produtos de origem animal classificados nos Capítulos 2 a 4, 16, e nos códigos 15.01 a 15.06, 1516.10, e as misturas ou preparações de gorduras ou de óleos animais dos códigos 15.17 e 15.18; e
(…)
10. Para efeito de interpretação do inciso I do § 3º, o direito ao crédito na alíquota de 60% (sessenta por cento) abrange todos os insumos utilizados nos produtos ali referidos. (Incluído pela Lei nº 12.865, de 2013)”

Segundo entendimento do ministro Benedito Gonçalves, a alíquota aplicada ao crédito de PIS e Cofins, no regime não cumulativo, nos moldes de referida legislação, seria levando em consideração os produtos adquiridos pela contribuinte, um frigorífico, no caso, animais vivos, e não o produto elaborado a partir deste insumo, a fim de reconhecer qual o percentual do crédito presumido a ser concedido.

Assim, em interpretação literal do texto normativo, firma entendimento de que o cômputo do percentual que se aplicará ao crédito presumido está vinculado ao insumo adquirido e não em face do produto fabricado.

Spacca

Lembramos sempre, como ponto de partida, de que a interpretação das leis relacionadas ao setor do agronegócio, especialmente, quando da produção de alimentos, há de ser concretiza de forma a reconhecer um tratamento diferenciado e favorecido [2], sendo relevante uma interpretação sistemática e finalística.

Mais do que isso, estamos a tratar do crédito presumido, instrumento normativo que busca cumprir a determinação constitucional e legal de não cumulatividade, não se cuidando, assim, de puro incentivo fiscal [3].

Ocorre, porém, que o cômputo quanto à alíquota há de ser feito em face do produto fabricado e não em decorrência da aquisição, nesta hipótese.

O posicionamento do Fisco e voto proferido leva à incongruência e inaplicabilidade da lei.

Como sabido, este crédito foi outorgado por lei com a finalidade de reduzir o impacto tributário, com o aumento da alíquota e a vedação legal de apropriação de crédito quanto aos produtos decorrentes de pessoas físicas.

Assim, o crédito presumido se destina ao setor da agroindústria.

Diante disso, ao se analisar o artigo 8º, § 3º, I, da Lei n. 10.925/2004, percebe-se que a verdadeira destinatária deste crédito presumido ficou tolhida de seu emprego.

Isto porque, dentro da cadeia produtiva deste setor, os produtos dos Capítulos 2 a 4, 16, e nos códigos 15.01 a 15.06, 1516.10, e as misturas ou preparações de gorduras ou de óleos animais dos códigos 15.17 e 15.18, que permitem a alíquota de 60% para apuração do crédito presumido, são os produzidos por esta e não adquiridos. Daí porque, sustentar a interpretação literal sobre a aquisição torna, em geral, o dispositivo inaplicável ao caso concreto em favor dos contribuintes que a lei objetivava proteger diminuindo o impacto fiscal do regime não-cumulativo de PIS e Cofins.

Seguindo este raciocínio, para se calcular o crédito presumido no percentual de 60%, teríamos que encontrar uma pessoa jurídica que industrialize produtos destinados à alimentação humana e adquira como insumo linguiça, mortadela, salsicha, nugget, o que, além de soar estranho e impraticável para o setor, nem mesmo daria direito ao crédito [4].

Vê-se, portanto, que a interpretação da lei deste modo seria totalmente incongruente e desconexa com a realidade e atividade que pretendeu proteger. Recordemos a importância do caso concreto e das peculiaridades de cada setor e atividade econômica.

Daí porque, não se deve apegar a literalidade do texto normativo, uma vez que a interpretação também exige uma análise histórica, teleológica e sistemática, como já dito.

Cabe ao intérprete, dentro dos limites do texto normativo, analisar e aplicar a lei de maneira lógica, sistemática e finalística.

Isto significa dizer, sobretudo, conforme Tercio Sampaio Ferraz Jur, que “qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, para que se preserve a coerência do todo”, assim, “nunca deve isolar preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil, etc) e muito menos em sua concatenação imediata (nunca leia só um artigo, lei também os parágrafos e demais artigos””. [5]

Partindo de tais premissas, nos parece que o único entendimento razoável da lei seria compreender que aqueles produtos descritos no artigo 8º, § 3º, I, da Lei n. 10.925/2004 para se apurar a alíquota do crédito são em função da saída (produto que a pessoa jurídica elabora) e não da aquisição, neta hipótese específica.

Assim, restaria cumprido desígnio da legislação sob todas as perspectivas:

(i) – histórica: o crédito surgiu como uma alternativa de atenuar o alto impacto tributário decorrente do aumento da alíquota de PIS e Cofins no regime não-cumulativo, já que seus insumos, em sua maior parte, não permitiriam crédito;

(ii) – teleológica: a finalidade normativa prevista no artigo 8º, da Lei n. 10.925/2004 foi proteger as agroindústrias de modo que a única forma de tais contribuintes gozarem plenamente dos créditos presumidos seria interpretar a base do cálculo em função do produto elaborado;

(iii) – lógica e sistemática: a interpretação sistemática do artigo 8º “caput” e do § 1º, I, permitem concluir no sentido de que quem produz as mercadorias descritas nos Capítulos 2 a 4, 16, e nos códigos 15.01 a 15.06, 1516.10, e as misturas ou preparações de gorduras ou de óleos animais dos códigos 15.17 e 15.18, pode calcular sobre os insumos destinados à elaboração destes um crédito presumido utilizando o percentual de 60%.

A mais disso, a interpretação dada ao artigo 8º da Lei nº 10.925/2004 estava fundado na alteração — sob pretexto de regulamentação — dada pela Instrução Normativa RFB nº 660/2006 (hoje revogada), que em seu artigo. 8º (redação vigente à época), que realizou uma sutil alteração ao trocar a expressão “produto de origem animal” (artigo 8º, § 3º, I, da Lei nº 10.925/2004) para “insumo de origem animal” (artigo 8º, da IN RFB 660/2006), que inova a ordem jurídica e restringe indevidamente o crédito presumido.

Todavia, em nossa visão, de forma ilegal à época, pois, ao dispor o artigo 8º, § 3, da Lei nº 10.925/2004, que o crédito presumido seria calculado com aplicação da alíquota de 60% para os produtos de origem animal classificados nos Capítulos 2 a 4,  entre outros, isto implicou em se realizar o seguinte cálculo para obtenção do valor do crédito presumido: (i) – base de cálculo – valor dos insumos adquiridos, exemplo, milho, animal vivo; (ii) – alíquota – vinculada ao produto, exemplo NCM 2, alíquota de 65% (x); (iii) – valor total do crédito presumido (=) [6].

Trata-se do expressamente disposto em Lei, pois o § 3º, inciso I, do art. 8º, da Lei n. 10.925/2004 enuncia com clareza meridiana que é 60% para os produtos que descreve, entre eles do contribuinte daquele recurso.

Não devemos confundir quanto ao cálculo do crédito presumido os dois elementos que o compõe, quais sejam: base de cálculo e alíquota, como já demonstrado na fórmula acima descrita.

Aqui está o grande ponto da confusão hermenêutica realizada
De fato, a base de cálculo é o valor dos insumos adquiridos. Não há dúvida neste ponto. Portanto, a base será o valor que paguei no milho, sorgo, animal vivo, entre outros insumos que se destinam à fabricação de produtos para consumo animal ou humano.

Já, por sua vez, a alíquota do crédito presumido possui outra lógica de cálculo. Equivale dizer: a sua constatação está vinculada ao produto.

É o que enuncia expressamente a lei, pois, afirma que o “montante do crédito  (item iii da fórmula) a se referem o “caput” (ou seja, o crédito presumido) … será determinado mediante aplicação (leia-se: fórmula de apuração), sobre o valor das mencionadas aquisições (item i da fórmula – BASE DE CÁLCULO), de alíquota correspondente a (ALÍQUOTA – item ii da fórmula)  60% (sessenta por cento) … para os produtos de origem animal classificados nos Capítulos 2 a 4, 16, e nos códigos 15.01 a 15.06, 1516.10, e as misturas ou preparações de gorduras ou de óleos animais dos códigos 15.17 e 15”.

Sendo assim, a leitura que se faz do dispositivo legal é que para os produtos na NCM 2 a 4 (entre outros) a alíquota é de 60%, para apuração do crédito presumido, sendo que a base de cálculo é valor das aquisições realizadas.

Vê-se, pois, que há total razoabilidade na interpretação descrita, eis que está pautada em LEI, além de respeitar parâmetros históricos e finalísticos de hermenêutica.

A alteração realizada na IN 660/2006 para trocar em função do produto para em função do insumo foi totalmente ilegal, por extrapolar o disposto em lei e gerou toda esta controvérsia que constatamos atualmente.

E, para finalizar, este aspecto gerou tamanha polêmica que foi necessário editar o § 10, de cunho notadamente interpretativo e, por conseguinte, retroativo, dispondo que:

§ 10. Para efeito de interpretação do inciso I do § 3º, o direito ao crédito na alíquota de 60% (sessenta por cento) abrange todos os insumos utilizados nos produtos ali referidos. (Incluído pela Lei nº 12.865, de 2013).”

Com isso, o tema foi pacificado, inclusive, na jurisprudência administrativa do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), configurando Súmula vinculante do Carf nº 157, enunciando que:

O percentual da alíquota do crédito presumido das agroindústrias de produtos de origem animal ou vegetal, previsto no art. 8º da Lei nº 10.925/2004, será determinado com base na natureza da mercadoria produzida ou comercializada pela referida agroindústria, e não em função da origem do insumo que aplicou para obtê-lo.”

Em tais condições, é possível reconhecer a legitimidade do crédito presumido apurado no percentual de 60%, quanto aos insumos destinados à fabricação dos produtos descritos Capítulos 2 a 4, 16, e nos códigos 15.01 a 15.06, 1516.10, e as misturas ou preparações de gorduras ou de óleos animais dos códigos 15.17 e 15.18, visando à alimentação humana ou animal, nos termos do artigo 8º, da Lei nº 10.925/2004, nos parecendo relevante ao Superior Tribunal de Justiça avaliar com cautela referido tema, sobretudo, respeitando a segurança jurídica dos precedentes administrativos e o cumprimento de leis interpretativas.

 

__________________________

[1] “TRIBUTÁRIO. PIS. COFINS. REGIME NÃO CUMULATIVO. INDÚSTRIA DE ALIMENTOS. CRÉDITOS PRESUMIDOS. BASE. INSUMOS ADQUIRIDOS. OBSERVÂNCIA. 1. O Plenário do STJ decidiu que “aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado Administrativo 2). 2. A Lei n. 10.925/2004 – que dispõe sobre o microssistema de tributação da Contribuição ao PIS e da COFINS do setor agropecuário – instituiu o crédito presumido para o produtor de alimentos com a finalidade de incrementar a aquisição de mercadorias de pessoas físicas, que não são sujeitas ao pagamento das contribuições em referência, de modo a estimular a atividade rural e a produção de alimentos. 3. A pessoa jurídica submetida ao regime de não cumulatividade da Contribuição ao PIS e da COFINS, inclusive cooperativa, que produz mercadorias de origem animal ou vegetal, tem direito de deduzir crédito presumido mediante aplicação da alíquota pertinente sobre os bens adquiridos de pessoa física ou recebidos de cooperado pessoa física, em cada período de apuração, e não em função dos alimentos que produz, nos termos do art. 8º, § 3º, I, da Lei n. 10.925/2004. 4. Recurso especial conhecido e desprovido”.(STJ, REsp n. 1.440.268/SC, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 22/6/2021, DJe de 30/6/2021.)

[2] CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação no Agronegócio: algumas reflexões. Londrina: THOTH, IBDA, CONJUR, 2023, p. 25 e ss. Cf ainda:  https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio; https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/direito-agronegocio-reforma-tributaria-dialogo-agronegocio; https://www.conjur.com.br/2020-ago-14/direito-agronegocio-reforma-tributaria-cbs-agronegocio; https://www.conjur.com.br/2023-nov-17/reforma-tributaria-alimentos-e-cesta-basica/

[3] CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação no Agronegócio: algumas reflexões. Londrina: THOTH, IBDA, CONJUR, 2023, p. 188 e ss. v. também: Crédito presumido de PIS e Cofins e os contratos de parceria e integração

[4] CALCINI, Fabio Pallaretti. DIREITO DO AGRONEGÓCIO. PIS/Cofins, produto agropecuário e o crédito presumido. https://www.conjur.com.br/2024-jan-26/pis-cofins-produto-agropecuario-e-o-credito-presumido/

[5] – FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6. Ed. São Paulo: Altas, 2008. p. 257.

[6] – Se utilizarmos a indevida alteração da IN 660/2006, a fórmula seria diferente, nos seguintes moldes: (i) – base de cálculo – valor dos insumos adquiridos, exemplo, milho; (ii) – alíquota – vinculada ao insumo adquirido, milho (x); (iii) – valor total do crédito presumido (=).

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Ex-membro do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), professor da FGV Direito SP e Ibet. Sócio tributarista do Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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