Opinião

A Justiça brasileira e os crimes ambientais na Amazônia Legal

Autor

  • Daniela Madeira

    é juíza federal do TRF-2 atualmente conselheira do CNJ doutora em Processo Civil pela Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Processo Civil pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Membro da Comissão Permanente de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030.

9 de maio de 2024, 6h31

Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça lançou, na 1ª Reunião do Observatório do Meio Ambiente e das mudanças climáticas do Poder Judiciário, ocorrida em 23 de abril de 2024, os resultados da pesquisa intitulada “Crimes Ambientais na Amazônia Legal”. [1]

Agência Brasil

A pesquisa é resultado de uma cooperação  conjunta entre o Conselho Nacional de Justiça, da Associação de Magistrados do Brasil, da Associação Brasileira de Jurimetria e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, empregando uma metodologia inédita para a obtenção dos resultados apresentados, envolvendo tanto uma perspectiva quantitativa quanto qualitativa.

Para a parte quantitativa, os pesquisadores analisaram os dados dos bancos de informações dos tribunais que possuem jurisdição na Amazônia Legal brasileira e do Datajud, [2] o Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, bem como do Sirenejud, [3] a plataforma de dados ambientais do Poder Judiciário, permitindo uma análise macro dessa espécie criminológica tão específica, que são os crimes ambientais relacionados a organizações criminosas, lavagem de capitais e também os oriundos de operações policiais de grande porte.

Na parte qualitativa, as entrevistas e análise de autos processuais foram os principais métodos utilizados para a obtenção dessa visão única do fenômeno criminal ambiental. Foram colhidos depoimentos de magistrados, promotores, fiscais ambientais e agentes da sociedade civil que atuam especificamente nessa temática, inquirindo e buscando as razões de ocorrência desses crimes e colhendo sugestões de melhoria.

O enfoque criminológico também é inédito: buscou-se fugir do senso comum de que o crime ambiental é oriundo de populações de baixa renda ou de pequenos garimpeiros, desmatadores ou caçadores para, pela primeira vez, lançar um enfoque nas organizações criminosas de grande porte e nos segmentos econômicos que, sob uma aparência de legalidade, auferem proveito desses crimes.

Esses achados são importantes por diversas razões, quais sejam: para priorizar a persecução penal dos crimes ambientais, não só para o cidadão economicamente ou socialmente vulnerável aos grandes grupos criminosos regionais, e fomentar uma cadeia de governança no setor privado a partir de um aprimoramento da regulamentação pública.

O objetivo principal da pesquisa foi identificar as principais características e modus operandi das organizações criminosas ambientais e de suas estruturas de lavagem de bens e capitais relacionados a crimes ambientais a partir da sistematização das informações desses atores e dos dados dos processos judiciais.

A leitura qualitativa dos dados processuais teve enfoque em 21 grandes operações do sistema de Justiça que foram desencadeadas na Justiça Federal, especificamente nas seções judiciárias do Amazonas, Mato Grosso, Pará, Roraima e Amapá.

Um dos pontos que nos chamou atenção como achados de pesquisa foram a predominância dos crimes de desmatamento (45%) e, logo em seguida, de garimpo (40%) nos processos da Justiça Federal, mas também com número significativo de invasão e grilagem.

O que demonstra que o crime ambiental, para sua ocorrência, vem acompanhado de diversas outras figuras típicas, aumentando a complexidade de sua apuração e capitulação. Ao exemplo, o desmatamento predominantemente ocorre em terras públicas e em detrimento do patrimônio da União, afetando também a moralidade administrativa na perspectiva de que busca corromper os agentes públicos envolvidos na fiscalização.

Também nos surpreendeu a preponderância de réus pessoa física (66%) e de pessoas de baixa renda quando ocorre o flagrante desses crimes. Acompanhado do achado qualitativo de que esses crimes são maciçamente dependentes do uso de laranjas e intermediários, com cooptação de pessoas da sociedade local em vulnerabilidade social, nos preocupa na perspectiva de que se deve criar políticas que priorizem a apuração macro e sistêmica desses crimes, preponderando a identificação do mandante ou dos líderes dessas organizações criminosas, bem como dos segmentos econômicos que delas dependem.

Narcomadeireiros estabelecidos

Chama atenção também as falas dos entrevistados que demonstram a existência da figura dos narcomadeireiros, pessoas que possuem uma cadeia logística criminosa já pronta para o transporte de madeira extraída ilegalmente, mas que, diante de uma logística de transporte ilegal já estabelecida, passam também a efetuar tráfico de drogas.

Os entrevistados reportaram que essa escalada de criminalidade gera outros crimes subsequentes e habituais. Os garimpeiros ilegais, por exemplo, passam a utilizar suas estruturas aéreas para o transporte de drogas também. O grileiro também se beneficia pelo desmatamento das terras e participa dessa estrutura do crime em frentes de corrupção, envolvendo a atividade de colarinho branco de contadores, despachantes e outros profissionais.

Ao exemplo, a pesquisa destaca a chamada “operação corrida do ouro”, onde foi investigada organização criminosa que contava com a atuação de policiais civis e militares, traficantes de drogas, pistoleiros e agentes públicos locais no garimpo denominado Serra do Caldeirão, na fronteira com a Bolívia, situação jurídica que foi apurada em processo de competência da Justiça Federal do estado de Mato Grosso.

A mesma associação entre crimes ambientais e tráfico de drogas também ocorreu no Acre, e há relatos de garimpeiros que utilizam as aeronaves também para drogas. O que demonstra que a relação entre crimes ambientais e tráfico de drogas está muito mais forte e ligada do que se pensou anteriormente, sendo que esse modus operandi criminoso está perpassando vários estados do norte do país.

A cadeira de corrupção de agentes públicos para crimes ambientais também abre margem para a corrupção em favor de outros crimes mais graves, e os achados também dialogam com a percepção já trazida por outros estudos científicos, de prática de tráfico de drogas pelos mesmos que praticam a extração ilegal de madeira [4] quanto pelos que realizam o garimpo do ouro na Amazônia. [5]

Há ainda a percepção, confirmada em achados qualitativos que o crime ambiental também prejudica o índice de criminalidade de uma forma geral da região e gera uma rede de corrupção generalizada com a cooptação de agentes públicos da localidade. Nesse sentido, os agentes, quando cedem à corrupção decorrente dos crimes ambientais, passam a ser mais suscetíveis à corrupção para outros crimes, como do narcotráfico, contrabando e o estabelecimento de milícias.

Também foi constatada a prática do green washing [6] por parte de empresas que se beneficiam dos crimes ambientais na cadeia mercadológica. Em alguns casos, são empresas que querem receber crédito de carbono decorrentes do Protocolo de Quioto, [7] certificações ambientais e/ou recursos de financiamento externo de grande porte e tentam manipular as comunidades ou habitantes locais a assinarem documentos sem estarem devidamente esclarecidos.

Ocorre uma espécie de governança verde a todo e qualquer custo, em detrimento da vontade, esclarecimento e direitos das comunidades tradicionais ou extrativistas locais, temática que tangencia inclusive o direito à consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. [8] Tal como ocorreu no escândalo do trabalho escravo das vinícolas no sul do Brasil, na Amazônia há fenômeno similar chamado de green washing ou grilagem verde. [9]

O relatório também veio acompanhado de diversas outras recomendações para mitigar esses efeitos criminais danosos. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça emprega um importante passo na construção de fundamentos empíricos para a criação de políticas públicas judiciárias que colaborem com a mudança dessa realidade a partir das atribuições do sistema de Justiça brasileiro.

 


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Crimes ambientais na Amazônia legal: a atuação da Justiça nas cadeias de lavagens de bens e capitais, corrupção e organização criminosa / Conselho Nacional de Justiça… [et al.] – Brasília: CNJ, 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/04/relatorio-crimes-ambientais-na-amazonia-legal-final.pdf .

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. DATAJUD: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistemas/datajud/ .

[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sirenejud. Disponível em: https://sirenejud.cnj.jus.br/ .

[4] PEREIRA-CHAGAS, Rodrigo. Narcogarimpo: as afinidades eletivas entre frentes de garimpo ilegal e a expansão do tráfico de drogas na Amazônia brasileira. URVIO Revista Latinoamericana de Estudios de Seguridad, n. 38, p. 32-48, 2024.

[5] BASTA, Paulo Cesar. Garimpo de ouro na Amazônia: a origem da crise sanitária Yanomami. Cadernos de Saúde Pública, v. 39, p. e00111823, 2023.

[6] DE FREITAS NETTO, Sebastião Vieira et al. Concepts and forms of greenwashing: A systematic review. Environmental Sciences Europe, v. 32, p. 1-12, 2020.

[7] BROWN, Sandra et al. Changes in the use and management of forests for abating carbon emissions: issues and challenges under the Kyoto Protocol. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences, v. 360, n. 1797, p. 1593-1605, 2002.

[8] DINO, Natália Albuquerque. Entre a Constituição e a Convenção n. 169 da OIT: o direito dos povos indígenas à participação social e à consulta prévia como uma exigência democrática. Boletim Científico Escola Superior do Ministério Público da União, n. 42/43, p. 481-520, 2014.

[9] VERBICARO, Dennis; DA PONTE SILVA, Luíza Tuma; ALEX SIMÕES, Sandro. A RELEVÂNCIA DA ATUAÇÃO ESTATAL NO COMBATE ÀS PRÁTICAS EMPRESARIAIS DE GREENWASHING E BLUEWASHING NAS RELAÇÕES DE CONSUMO. Revista Jurídica Cesumar: Mestrado, v. 21, n. 1, 2021.

Autores

  • é juíza federal do TRF-2, atualmente conselheira do CNJ, doutora em Processo Civil pela Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Processo Civil pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Membro da Comissão Permanente de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030.

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