Opinião

Alcance do poder geral de cautela dos tribunais de contas na recente decisão do STF

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22 de maio de 2024, 21h43

Por determinação constitucional, aos tribunais de contas é atribuída a competência de controlar as contas públicas, estando compreendida nessa esfera de atuação a fiscalização dos procedimentos de contratação por entes que compõem a estrutura estatal, seus respectivos instrumentos contratuais e as entidades privadas contratadas.

TCE-CE

No exercício da fiscalização, os tribunais de contas estaduais, municipais e da União podem exercer o poder geral de cautela, que foi brilhantemente definido pelo ministro Celso Antônio Bandeira de Melo como “o poder cautelar também compõe a esfera de atribuições institucionais do Tribunal de Contas, pois se acha instrumentalmente vocacionado a tornar efetivo o exercício, por essa Alta Corte, das múltiplas e relevantes competências que lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio texto da Constituição da República” [1].

O poder geral de cautela é prerrogativa das cortes de contas e decorre implicitamente do texto constitucional, estando prevista a possibilidade, inclusive, de sustação de atos administrativos quando da verificação de inconformidades legais.

Imperioso se faz esclarecer a diferença do tratamento constitucional entre a fiscalização do ato administrativo e do contrato administrativo. Isso porque o artigo 71, inciso X, da CF/88, permite que o tribunal de contas suste diretamente ato administrativo, enquanto que nos contratos administrativos, conforme parágrafo 1º do mesmo dispositivo, lhe é determinado comunicar ao Poder Legislativo acerca da irregularidade. E este último é que, legalmente, detém a competência para sustar contrato administrativo.

Acerca da temática, decidiu recentemente o STF, nos autos da Suspensão de Segurança 5.658/CE proposta pelo Tribunal de Contas do Ceará, pela suspensão dos efeitos de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Ceará nos autos do mandado de segurança nº 0633896- 74.2022.8.06.0000.

A decisão objeto da SS 5.658/CE se trata de acórdão proferido pelo TJ-CE, que concedeu a segurança, para anular a Resolução nº 5072/2022 do TCE/CE que, por sua vez, culminou na sustação de contrato administrativo de prestação de serviços advocatícios que buscava recuperar verbas do Fundef e Fundeb não repassadas pela União a município cearense.

Spacca

No caso, a Corte de Contas cearense havia deferido medida cautelar no bojo da Representação nº 02527/2022-1 e, equivocadamente, oficiou nos autos da ação judicial patrocinada pelo escritório de advocacia comunicando o juízo sobre a decisão de suspensão da inexigibilidade e cassação dos efeitos da procuração outorgada pelo Município referente à ação nº 1060618-73.2021.4.01.3400 [2].

Nesse aspecto, é imprescindível pontuar que a determinação do TCE-CE foi proferida em procedimento de fiscalização, cuja fase procedimental para a contratação já havia se encerrado e o contrato administrativo já devidamente formalizado entre a administração pública e o escritório de advocacia.

Acionamento do Legislativo

Fazendo o cotejo dos atos praticados pela Corte de Contes com o artigo 71, parágrafo 1º da CF/88, artigo 78, parágrafo 1º da Constituição cearense e do artigo 49, parágrafo 2º do próprio Regimento Interno do TCE-CE, verifica-se que, ao invés de promover diretamente a sustação do contrato, deveria ter acionado o Legislativo municipal, dando-lhe ciência de eventual indício de irregularidade contratual para que a Câmara de Vereadores, se assim entendesse, determinasse a suspensão contratual.

Tal entendimento é corroborado quando do julgamento, pelo Pleno do STF, da Suspensão de Segurança nº 5.306/PI [3], onde se concluiu que, em se tratando de fiscalização de contrato administrativo, poderiam os tribunais de contas, no caso de graves irregularidades e para evitar prejuízo ao erário, determinar apenas a suspensão de pagamentos até que se conclua pela regularidade do contrato firmado.

Na ocasião do julgamento, fixou-se a diferenciação entre suspensão do pagamento e a sustação do contrato como um todo. Isso porque a suspensão de um dos efeitos do contrato estaria acobertado pelo poder geral de cautela, ainda que razoavelmente implícito, enquanto que o ato de sustação corresponderia somente ao Poder Legislativo respectivo.

Em suma, admite-se que no exercício do poder geral de cautela os tribunais de contas possuem competência de sustar atos administrativos; efeitos do contrato. O ato de sustação contratual automático não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro, tendo o TCE-CE, no caso da Representação nº 02527/2022-1 se excedido em sua decisão, passível de acarretar irreparável prejuízo ao município.

Isso porque, ao firmar contrato com escritório de advocacia, pressupõe-se a inexistência de procuradoria municipal ou ausência de expertise para a matéria dos integrantes de seu corpo jurídico, constatação que se fará durante as etapas do procedimento de contratação.

Formalizada a contratação, o município outorga procuração ao escritório contratado para que este proceda com a prestação do serviço que, no caso sob análise, se referiu à recuperação, através de ação judicial, de verbas do Fundef e Fundeb não repassadas pela União.

A partir do momento que qualquer corte de contas susta os poderes de uma procuração devidamente outorgada em razão de procedimento administrativo prévio, e determina a assunção da demanda judicial pela procuradoria municipal, vislumbra-se a possibilidade de perda em dois vieses: a derrota na ação judicial que ocasionaria a perda no direito à recuperação dos valores e a condenação ao pagamento de sucumbência.

Nesse caso, quem assumiria a responsabilidade pelas perdas do município, considerando que o oponente da ação judicial não possui qualquer relação com a perda ocasionada pela inadequada atuação dos tribunais de contas?

A cassação de procurações em ações judicias e o consequente impedimento ao exercício da advocacia estariam amparados pelo manto do poder geral de cautela?

O caso prático ora apresentado se presta, portanto, à reflexão acerca do alcance do poder geral de cautela dos tribunais de contas e como a partir da equivocada interpretação legal pode-se criar precedentes que, ao invés de proteger o erário público, irão, em verdade, ocasionar dano e prejuízo a saúde, educação e aos direitos básicos garantidos constitucionalmente.

 


[1] MS Nº 24.510/DF – STF.

[2] Id. nº 304238538 e nº 304238536 – Processo nº 1060618-73.2021.4.01.3400 – JFDF.

[3] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5739609

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