Opinião

Contratos de eficiência e licitações sustentáveis na Lei 14.133

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

29 de janeiro de 2024, 15h12

Pela teoria dos direitos fundamentais sociais, a proposta do Estado brasileiro impõe considerável carga alocativa à administração pública por causa da escolha do legislador constituinte em outorgar a prestação de serviços públicos considerados essenciais como uma obrigação de fazer.

A atividade-fim da República brasileira possui como fundamento a dignidade da pessoa humana, que leva em consideração a construção do bem-estar do sujeito e, necessariamente, impõe um dispêndio de recursos para o oferecimento de políticas públicas estratégicas, como é o caso da saúde e da educação.

Colocar essa engrenagem para funcionar não é uma atividade fácil porque além de se submeter às regras burocráticas em relação ao formalismo vinculado à lei, o gestor público também deve apresentar resultados no que diz respeito ao gasto que executa.

Assim, o controle do gasto público é uma realidade em duas vertentes: a conferência se o iter administrativo obedeceu à prescrição legal e a verificação se os resultados realmente foram atingidos.

Administrar com legalidade e legitimidade
Embora Seabra Fagundes prescreva que administrar é aplicar a lei de ofício [1], o gestor público deve ter em mente a ideia de que administrar também é promover o bem de todos, o que inclusive é um objetivo fundamental da república (art. 3º, inciso IV da Constituição Federal).

Dessa forma é preciso alinhar as suas ações em duas frentes de atuação importantes, que é a legalidade e a legitimidade do gasto público. A obediência à burocracia do gasto já não é mais suficiente. É preciso a apresentação de resultados concretos, na constante busca pela sua legitimidade.

Se a legalidade é obedecer às prescrições da jurisdição constitucional de uma maneira objetiva, o que pode ser entendido por legitimidade do gasto?

Racionalidade estratégica
A um primeiro momento, baseado no conceito da ciência política em relação à representatividade eleitoral por intermédio do sufrágio, pode ser que o intérprete pense que qualquer despesa realizada pelo titular do poder constituído é legítima, porquanto a sua eleição representa a vontade da maioria.

Entretanto não é bem assim.

Isso porque o estudo do Direito Financeiro denota que as finanças públicas não são uma fonte inesgotável e é preciso uma racionalidade estratégica a fim de dar suporte para toda a carga que demanda uma gestão eficiente e transversal.

Legal e regularidade
Dessa maneira, a legitimidade do gasto público deve levar em consideração aspectos que envolvam as demandas sociais e também o fôlego orçamentário existente para lastrear qualquer política pública que se queira encampar.

Assim, um gasto legal não necessariamente é regular e, a título de exemplificação, é difícil compreender que um ente federado que não consiga pagar a folha de pessoal em dia fomente, com recursos próprios, gastos, por exemplo, com o Carnaval.

A discricionariedade do gestor no que diz respeito à implementação de uma política pública é um exercício que demanda ponderação porque em decorrência da jurisdição constitucional que o envolve, o exercício de um mandato eletivo não significa que qualquer gasto seja legítimo.

Ainda sobre o assunto, o critério de monitoramento do gasto público com enfoque na legitimidade do gasto, Ana Carla Bliacheriene fomenta que “pelo controle da legitimidade, o órgão competente pode averiguar não apenas o cumprimento dos preceitos legais, mas também aspectos do direito fundamental à boa administração pública: o dever de preservar todos os princípios incidentes sobre a administração pública [2]”.

Gasto legítimo, portanto, pode ser entendido como o lastro de uma despesa primordial ao interesse específico de determinada sociedade e o seu conceito deve levar em consideração déficits estruturais que margeiam o cidadão da perspectiva inclusiva.

Prestação de contas
Assim, é impossível pensar no direito à saúde sem planejar medidas voltadas ao saneamento básico, por exemplo. É nesse sentido que a população deve cobrar contas ao gestor público.

A ideia de prestação de contas inclusive advém da declaração universal dos direitos do homem e do cidadão, para quem “A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente público pela sua administração [3] (artigo 15).

Nesse sentido, deve o administrador público criar uma estratégia de ponderação no que diz respeito à alocação do gasto e provar que além de obedecer às prescrições normativas em relação a procedimentos formais, a sua escolha também tem pertinência temática com o real sentido de interesse público.

Visão do todo
Esse processo criativo é intrínseco ao Direito Administrativo e tendo em vista a amplitude da sua jurisdição, deve o gestor público, que também é intérprete do ordenamento jurídico, ter uma leitura ampliada sobre a sua área de atuação.

Para Heraldo Garcia Vitta, “O intérprete deve observar o conjunto de normas existentes no ordenamento, e não simplesmente tirar conclusões tendo em vista determinado artigo, parágrafo ou inciso. O Direito é uno, no sentido de suas normas estarem em contexto único, conectadas umas às outras, de maneira a haver inter-relação entre elas. Enquanto o leigo vê a norma posta isoladamente, o intérprete a investiga em conexão com todo o ordenamento jurídico [4].

Essa atividade hermenêutica impõe à administração pública estudar o ordenamento jurídico com base na eficiência administrativa, que pode ser entendida como um poder-dever do gestor no sentido de utilizar toda estrutura, o que compreende recursos humanos e materiais, à sua disposição para instrumentalizar as suas ações na persecução do interesse público e para isso deve envolver todos os atores com competência institucional para dialogarem entre si.

A título de exemplificação, uma obra correlata ao Direito da Infraestrutura é um gasto multidisciplinar que envolve um necessário diálogo entre a Engenharia e o Direito.

Contratos de eficiência
Já em pleno vigor, a nova Lei de Licitações possui como uma característica diferenciada a possibilidade que o ordenador de despesas possui em relação à inovação à gestão das políticas públicas, o que amplia o seu campo discricionário no que diz respeito ao seu processo de tomada de decisão.

Em relação às contratações de infraestrutura existem dois campos importantes que merecem atenção: a redação de contratos de eficiência, que objetivam oxigenar gastos com despesas correntes, e as contratações com viés sustentável, necessidade transversal à agenda ODS 2030, que é outro marco que é tendência no âmbito do Direito Público (internacional).

Essa outorga legislativa que amplia o horizonte interpretativo do gestor público possibilita-lhe ferramentas para que possa sair da moldura estática do antigo regime licitatório.

Agora, de acordo com a sua demanda específica, pode trabalhar uma matriz de planejamento com um viés criativo de acordo com a demanda específica com a qual se depare e para isso possui no parceiro particular um aliado para dar asas à sua capacidade interpretativa.

Exemplo disso são os contratos de eficiência, que possuem como eixo “a prestação de serviços, que pode incluir a realização de obras e o fornecimento de bens, com o objetivo de proporcionar economia ao contratante, na forma de redução de despesas correntes, remunerando o contratado com base em percentual da economia gerada”, nos termos do artigo 6º, inciso LIII da Lei 14.133/2020.

Isso implica dizer que o contrato de eficiência é uma diretriz específica do processo de planejamento correlato à fase preparatória da licitação, em que o gestor público analisa a estrutura do gasto que está ao seu encargo e estabelece estratégias para diminuir o seu custeio, projetando critérios de remuneração pautados em resultados em relação às despesas correntes.

É, portanto, uma despesa pautada em resultados.

Ao atrelar o contrato de eficiência às despesas correntes, o objetivo do legislador é diminuir os gastos ordinários, porquanto aquela despesa, por possuir previsibilidade, sempre é uma oportunidade para refletir acerca da cadeia produtiva no sentido de desonerar despesas fixas, e isso pode resultar em uma oxigenação orçamentária que dê suporte financeiro para outro tipo de gasto público.

Pode-se afirmar com isso que o contrato de eficiência é um instrumento de alteridade alocativa porque ao negociar com o contratado o pagamento por performance, a administração pública pode economizar certos tipos de despesa.

Isso quer dizer que ciente de que obrigatoriamente deve realizar determinado gasto público, o ordenador de despesa possui uma estratégia para, dentro de uma contratação, negociar a remuneração do contratado “com base em percentual da economia gerada”, o que pode resultar em ganhos qualitativos.

Dispõe a nova Lei de Licitações que o contrato de eficiência possui como norte “a realização de obras e o fornecimento de bens” e a possibilidade de incluir gastos correlatos à infraestrutura é uma preocupação do legislador com a carga orçamentária que possui aquele tipo de despesa.

Pela teoria dos direitos sociais, que são obrigações de fazer do Estado [5], a administração pública deve planejar as suas atividades sob dois) horizontes para o provimento daquela matriz obrigacional, que são umbilicalmente ligadas: a realização de obras e a contratação de servidores.

É impossível, por exemplo, pensar no direito à saúde sem imaginar um hospital, da mesma forma que é inimaginável planejar o direito à educação sem a construção de uma escola.

Além disso, não basta construir. É preciso ter fôlego orçamentário para garantir o seu custeio e no mesmo exemplo, não existe hospital sem medicamentos e escola sem quadros e livros.

Um ponto em comum para qualquer política pública que se pense é a despesa corrente com energia elétrica, força motriz para o funcionamento de qualquer unidade administrativa que deve ser levada em consideração quando do dimensionamento e planejamento de qualquer obra pública.

Como a Lei de Licitações possui um forte viés em termos de planejamento, é importante que o gestor público, ainda no estudo técnico preliminar, tente dimensionar o gasto correlato com aquele insumo e encontrar, nas estratégias que lhe estão disponíveis, ferramentas para diminuir aquele gasto.

Ciente disso o regramento licitatório vigente estabelece um cenário específico por intermédio do contrato de eficiência, inclusive com um critério de julgamento direcionado: o maior retorno econômico.

Pelo artigo 39 “O julgamento por maior retorno econômico, utilizado exclusivamente para a celebração de contrato de eficiência, considerará a maior economia para a Administração, e a remuneração deverá ser fixada em percentual que incidirá de forma proporcional à economia efetivamente obtida na execução do contrato”.

Contratações sustentáveis
Dessa forma, os técnicos da infraestrutura de um órgão público possuem um protagonismo singular em relação ao planejamento e projeção de eficiência de uma licitação, e como o tema contrato de eficiência envolve despesa corrente, é fundamental se pensar em consumo de energia elétrica e por via reflexa no objetivo 12 da agenda ODS 2030, qual seja “Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis”, especificamente o 12.2 “até 2030, alcançar a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais”.

E como fazer isso? Há três alternativas: implantação de energia eólica, solar ou até mesmo o aproveitamento de um projeto de engenharia com menor impacto econômico, como é o caso da arquitetura do cobogó.

É o caso, por exemplo, da construção de uma biblioteca, serviço típico vinculado ao funcionamento de uma escola. Em relação à construção de um muro, por exemplo, ao invés de concretar uma parede, pode o estudo técnico preliminar prever a construção de um cobogó, estrutura que possibilita a circulação do ar e também potencializa a utilização da luz solar.

Como se vê, aquela estratégia pode gerar economia de despesas correntes voltadas à energia elétrica, já que, em tese, contribui para um consumo menor de ventiladores e/ou condicionadores de ar, bem como de energia elétrica em relação à iluminação.

Além disso, essa estratégia também envolve outra diretriz do novo regime licitatório: as contratações sustentáveis, referenciadas por Juarez Freitas como “modelos paramétricos e estimativas motivadas dos custos, diretos e indiretos, sociais, ambientais e econômicos, na ciência de que o melhor preço é sempre aquele que implicar os menores impactos e externalidades negativas e, concomitantemente, propiciar os maiores benefícios globais, não mais o simplista menor preço, jungido a considerações à primeira vista” [6].

Como se vê, existe uma tendência de os tribunais de contas, responsáveis pelo controle da legitimidade do gasto público, conforme prescrição constitucional do artigo 70, caput da Constituição Federal, direcionarem a sua atuação para conferir se a permissibilidade da nova lei de licitações será realizada pela administração pública em relação aos contratos de eficiência com base na transversalidade que há entre a agenda ODS 2030 e o conceito de licitações sustentáveis.

Aguarde-se 2024, o ano em que a administração pública brasileira deve implementar a lei 14.133/2020.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLIACHERIENE, Ana Carla. Controle da Eficiência do Gasto Orçamentário. Editora Fórum. Belo Horizonte/BG: 2016

FAGUNDES, Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. Editora Forense. 8ª edição. Rio de Janeiro/RJ: 2010

FREITAZ, Juarez. Licitações públicas sustentáveis: dever constitucional e legal. Revista do Instituto do Direito Brasileiro (Ano 2 (2013), nº 1, p. 339-366

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros editores. 44ª edição. São Paulo/SP: 2022

UNICEF. Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em ://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/1789.pdf

VITTA, Heraldo Garcia. Aspectos da Teoria Geral no Direito Administrativo. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2001.

 

 

[1] FAGUNDES, Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. Editora Forense. 8ª edição. Rio de Janeiro/RJ: 2010.

[2] BLIACHERIENE, Ana Carla. Controle da Eficiência do Gasto Orçamentário. Editora Fórum. Belo Horizonte/BG: 2016, p. 166.

[3] Disponível em https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/1789.pdf acesso em 23/01/2024

[4] VITTA, Heraldo Garcia. Aspectos da Teoria Geral no Direito Administrativo. Malheiros Editores. São Paulo/SP: 2001, p.120

[5] Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros editores. 44ª edição. São Paulo/SP: 2022.

[6] FREITAZ, Juarez. Licitações públicas sustentáveis: dever constitucional e legal. Revista do Instituto do Direito Brasileiro (Ano 2 (2013), nº 1, p. 339-366. Disponível em http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/01/2013_10_00339_00366.pdf acesso em 23/01/2024.

Autores

  • é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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