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Regime de execução das emendas parlamentares em 2024 burla CF e LRF

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

23 de janeiro de 2024, 9h37

A tensão entre Legislativo e Executivo em torno do regime jurídico das emendas parlamentares ao orçamento público tende a se acirrar quando o Congresso apreciar os vetos apostos pelo presidente da República à Lei de Diretrizes Orçamentárias federal deste ano (LDO/2024).

Como se encerrou na segunda-feira (22/1) o prazo para sanção do projeto de lei de orçamento relativo ao atual exercício (PLOA/2024), os vetos apostos ao volume previsto para tais emendas no Orçamento Geral da União também serão alvo de uma profunda e estrutural disputa [1] sobre a margem cada vez mais reduzida de deliberação discricionária sobre as despesas primárias federais.

O núcleo do conflito reside na tentativa de os congressistas ampliarem o regime da impositividade das emendas parlamentares, mediante três estratégias concomitantes:

  1. fixação de cronograma de execução orçamentária das emendas, com hipótese de quitação integral até 30 de junho deste ano;
  2. estabelecimento de prioridade de pagamento da execução orçamentária das emendas em relação às demais despesas discricionárias; bem como
  3. previsão de que emendas de bancada fariam jus a um limite mínimo de dotação equivalente a 0,9% da receita corrente líquida da União verificada em 2022.

É iminente a escalada dos atritos, na medida em que os vetos do Executivo ao regime de execução das emendas parlamentares para 2024 tendem a ser derrubados pelo Congresso. Em meio a uma longa guerra que constitucionalmente remonta, no mínimo, à Emenda 86/2015, essa muito provável nova frente de batalha visa tanto impactar as eleições municipais, quanto manter o pêndulo orçamentário do lado do Legislativo.

Spacca

Deputados e senadores, como bons estrategistas que são, sabem ter a palavra final sobre os vetos e sua derrubada parece ser apenas uma questão de tempo, que, aliás, dado o estreito calendário eleitoral já em curso, é o bem mais precioso do presente exercício financeiro. Todavia, a gestão do ritmo mensal da execução orçamentária é competência privativa do Executivo e ocorre no âmbito do decreto de programação financeira, para resguardar o alcance da meta de resultado primário da LDO.

Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, tal competência passa pela elaboração de metas bimestrais de arrecadação (artigo 13) e de cronograma mensal de desembolso (artigo 8º), o que deve ocorrer nos primeiros 30 dias após a promulgação da LOA. Ao longo do exercício, o monitoramento da execução orçamentária deve ser realizado mediante relatórios resumidos publicados bimestralmente (na forma do artigo 53, III da LRF). Caso haja risco de frustração das receitas estimadas, poderão ser contingenciadas as despesas primárias que não forem obrigações legais e constitucionais (marcadas pelo identificador de resultado primário 1 e incluídas formalmente na Seção I do Anexo III da LDO/2024), para que seja cumprida a meta de resultado primário (artigo 9º da LC 101/2000).

Diferentemente das despesas obrigatórias a que se refere o §2º do artigo 9º da LRF [2], as emendas parlamentares, mesmo as que têm natureza impositiva (emendas individuais e de bancada), são suscetíveis de contingenciamento, por força do seguinte §18 do artigo 166 da Constituição de 1988:

“§ 18. Se for verificado que a reestimativa da receita e da despesa poderá resultar no não cumprimento da meta de resultado fiscal estabelecida na lei de diretrizes orçamentárias, os montantes previstos nos §§ 11 e 12 deste artigo poderão ser reduzidos em até a mesma proporção da limitação incidente sobre o conjunto das demais despesas discricionárias.”

Como tende a ser elevado o nível de contingenciamento necessário para cumprir a meta de resultado primário equilibrado (“déficit zero”) ao longo de 2024, o Congresso tenta antecipar a execução das suas emendas parlamentares, para, com isso, resguardá-las dos efeitos da incidência dos decretos de programação financeira controlados pelo Executivo.

Não é demasiado reiterar que, em ano de eleições municipais, a opção por assegurar que tais emendas sejam repassadas às bases locais de cada deputado federal e de cada senador, antes de 30 de junho, é uma questão de sobrevivência política que não admite qualquer restrição fiscal. Trata-se, aliás, de uma tentativa de contornar a vedação inscrita no artigo 73, inciso VI, alínea “a” da Lei 9.504/1997. Vale lembrar que o artigo 2º da Emenda 105/2019 previra algo semelhante em relação às anteriores eleições municipais, para garantir o efetivo repasse financeiro de 60% do total das transferências especiais (“pix orçamentário”) até 30 de junho de 2020.

A diferença agora é que não há uma norma constitucional que autorize tal burla ao cronograma inscrito no decreto de programação financeira, mas tão somente uma previsão na LDO/2024 vetada pelo Executivo. Se o Congresso derrubar o veto, esse é um debate que, por certo, tende a ser levado ao Supremo Tribunal Federal, tamanhas as suas repercussões fiscais e eleitorais nessa nova iminente rodada de tensões entre Executivo e Legislativo em matéria orçamentária.

Caso não seja revista a meta de resultado primário da LDO/2024, as emendas parlamentares deverão ser contingenciadas na mesma proporção e na mesma velocidade das demais despesas discricionárias. Adiantar a execução orçamentária das emendas individuais e de bancada impositivas para garantir sua quitação até 30 de junho seria empurrar exclusivamente para o Executivo o colossal ônus de realização do ajuste fiscal esperado para o ano em curso, o que afronta diretamente não só o já citado §18 do artigo 166 da Constituição, como também o §13 do mesmo dispositivo constitucional: “as programações orçamentárias previstas nos §§ 11 e 12 deste artigo não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos de ordem técnica”.

Como o §2º do artigo 7º da Lei Complementar 200/2023 previu que “o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública é de 75% (setenta e cinco por cento) do valor autorizado na respectiva lei orçamentária anual”, a margem de provável contingenciamento das demais despesas discricionárias e, por tabela, das emendas parlamentares impositivas seria de 25%.

Em um raciocínio de fronteira, caso haja risco de frustração da arrecadação (até porque o Congresso tem rejeitado os esforços do Executivo em rever determinadas renúncias fiscais) e, por conseguinte, se houver risco de não atingimento da meta de resultado primário, um quarto das emendas parlamentares individuais e de bancada pode vir a ser contingenciado. Dito de modo ainda mais direto, o cenário que se pode projetar para a programação financeira de 2024 é o de uma potencial limitação de empenho e de pagamento das emendas parlamentares impositivas em até R$ 9,75 bilhões (ou seja, 1/4 de R$ 36,3 bilhões), sendo também possível (embora politicamente difícil) o contingenciamento integral das emendas de comissão, cujo veto na LOA/2024 as reposicionou em R$ 11,1 bilhões.

Da confluência de regras inscritas na CF/1988 e na LRF, emerge a constatação fática de que o tempo da execução orçamentária é tão importante quanto o volume de recursos financeiros aportado em determinada rubrica, mas tal ritmo mensal será dado pelo risco de frustração da meta de déficit primário zero.

Ao longo de 2024, o risco de estouro da meta fiscal trará um inquestionável impedimento técnico que pode vir a ensejar o contingenciamento de até R$21 bilhões das emendas parlamentares (como já dito, R$ 9,75 bilhões em emendas impositivas e R$ 11,1 bilhões em emendas de comissão). Esse cenário tende a facilitar um acordo entre Executivo e Legislativo para revisão da meta de resultado primário, restabelecendo – provisoriamente e tanto quanto possível – as coalizões sobre o ritmo da execução orçamentária e das prioridades alocativas do governo federal no âmbito do controle de boca do caixa do Tesouro Nacional.

O relaxamento da meta fiscal tende a ser solução precária para um problema profundamente mais grave, cuja equalização passa pela edição da regulamentação – mediante lei complementar – pedida pelo artigo 165, §9º, inciso III da Constituição [3], até mesmo para que seja efetivamente respeitada a noção de ordenação legítima de prioridades que o planejamento imprime no ciclo orçamentário.

Afinal, não cabe à LDO/2024 se ocupar de matéria reservada à lei complementar, para que o Legislativo usurpe – direta ou indiretamente – competência privativa do Executivo. Burlas dessa envergadura devem ser rechaçadas desde já, de modo a evitar que venham futuramente a ser constitucionalizadas em mais uma rodada de acirramento da busca por uma espécie tergiversadora de parlamentarismo orçamentário.


[1] Como noticiado pelo jornal Valor, “Inicialmente, o Executivo enviou a peça orçamentária de 2024 ao Congresso prevendo nenhum real para emendas de comissão. O Parlamento, então, aprovou na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um dispositivo que reservava, no mínimo, 0,9% da Receita Corrente Líquida (RCL) de 2022 para as emendas de comissão, o que daria R$ 11 bilhões.

O valor final, contudo, foi ampliado por decisão dos parlamentares, chegando a R$ 16 bilhões. Para isso, eles reduziram a verba do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e de despesas discricionárias (investimento e custeio) dos ministérios.

Agora, o governo federal decidiu vetar parte das emendas de comissão justamente para recompor essas despesas do PAC e demais discricionárias que foram cortadas pelos parlamentares.

Quando sancionou a LDO no início do mês, o governo vetou o dispositivo que reservava 0,9% da RCL. Com isso, nada impede o governo de vetar, na Lei Orçamentária Anual de 2024 (LOA), o valor das emendas para um patamar mais baixo.

[…] Também ao sancionar a LDO, o governo vetou trecho que obrigava o empenho dos recursos para emendas individuais e de bancada em até 30 dias após a divulgação das propostas. O cronograma de pagamentos buscava aumentar o controle do Legislativo sobre o ritmo de liberação dos recursos e já tem sido tema de atrito entre Executivo e Parlamento”.

[2] Vide §2º do art. 9º da LRF: “Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, as relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico custeadas por fundo criado para tal finalidade e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias”.

[3] Cujo inteiro teor é o seguinte: “Art. 165 […]

§9º. Cabe à lei complementar:

[…]

III – dispor sobre critérios para a execução equitativa, além de procedimentos que serão adotados quando houver impedimentos legais e técnicos, cumprimento de restos a pagar e limitação das programações de caráter obrigatório, para a realização do disposto nos §§ 11 e 12 do art. 166.”

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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