Opinião

Por que a expressão humana deve ser protegida pelo Direito? (parte 4)

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  • é advogado sócio do Cremasco Dilly Patrus Peixoto e Leão Advogados consultor legislativo na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG

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13 de maio de 2024, 16h23

Continuação das partes 1 (aqui), 2 (aqui) e 3 (aqui)

Na discussão sobre autogoverno, para além da defesa genérica de que a expressão livre viabiliza o governo de todos, sobressai o argumento de que a liberdade é requisito peremptório para a legitimação das escolhas coletivas. O ponto é talvez mais sensível, porque ele aumenta a gravidade das repercussões decorrentes da não liberdade: uma coisa é dizer que a expressão livre aprimora a democracia, outra muito diferente é sustentar que ela garante a legitimidade das decisões políticas [1].

Apesar de oriundo da razão básica de que a liberdade precisa existir para que o povo faça o governo (e não o inverso), o argumento da legitimidade, ao contrário da teoria de Meiklejohn, parte de um ponto de vista constitutivo, segundo o qual o Estado deve reconhecer seus cidadãos como sujeitos autônomos e responsáveis, porque essa é a única maneira substancial de validar as decisões coletivas. A perspectiva é igualmente defendida por Ronald Dworkin. Embora possamos inferi-la da argumentação que expusemos no tópico anterior, entendemos que o aspecto específico da legitimidade decisória merece ser destacado, haja vista seu impacto para a compreensão da relação entre Direito e política.

Expressão livre como condição necessária à legitimidade política

Ancorado nas mesmas premissas com base nas quais é desenvolvida a ideia de que a liberdade viabiliza a autoafirmação da identidade e garante a preservação de uma cultura de independência, porém preocupado com as peculiaridades de um debate distinto — sobre a veiculação de discurso de ódio em processos de discussão e elaboração de leis —, Dworkin defende a expressão livre não como uma virtude em si mesma, mas como um expediente que, embora às vezes inconveniente e desagradável, mostra-se indispensável à justificação e à legitimação das escolhas coletivas.

Segundo ele, a expressão ser livre é uma condição necessária à produção de legitimidade política, porque, no processo deliberativo, “uma decisão majoritária não será justa se não tiver sido garantida a todos a oportunidade de manifestar suas atitudes, opiniões, medos, gostos, pressuposições, preconceitos e ideais” [2].

Admitir que expressões as mais variadas sejam veiculadas na deliberação coletiva é o preço que se paga pelo espaço democrático de construção de decisões legítimas. Se alguém é cerceado em seu direito de vocalizar uma opinião, um posicionamento ou uma preferência, por mais falsa, chula, desrespeitosa ou ofensiva que ela seja, a decisão que resulta do debate, debate no qual não foi dada a esse alguém a oportunidade de efetivamente participar, não lhe poderá ser vinculante.

Para Dworkin, “a maioria não tem o direito de impor sua vontade contra alguém que foi proibido de levantar a voz em protesto ou argumentar em objeção antes de a decisão ser tomada” [3]. O comando coletivo será legítimo, e poderá, legitimamente, obrigar a todos, somente se a todos for dada a chance de debatê-lo, tão livremente quanto possível.

Stuart Mill, construção coletiva da verdade e precedentes da Scotus

Embora tenha contornos novos (e inovadores), essa ideia reverbera a perspectiva, lançada por John Stuart Mill, de que a livre circulação de discursos propicia a construção coletiva da verdade. No julgamento do caso Abrams v. United States, de 1919, Oliver Wendell Holmes apresentou voto dissidente em que asseverou que a verdade é um empreendimento público que se realiza a partir de um “mercado aberto de ideias”.

Essa orientação fez rebentar frutos diversos [4]. Em Whitney v. California, a Suprema Corte, ainda presa à lógica da constitucionalidade da proibição de discursos que representassem um “perigo claro e iminente”, manteve a condenação da sufragista Charlotte Anita Whitney por sua colaboração no estabelecimento do Partido Comunista do Trabalho, uma organização enquadrada na Lei do Sindicalismo da Califórnia, de 1919, com base na acusação de que seus membros ensinavam e incentivavam formas violentas de derrubar o governo dos Estados Unidos.

Sete dos nove integrantes da Corte concluíram, sem ressalvas significativas, que a participação em discursos políticos que pudessem instigar ações de violência contra a ordem jurídica e os Poderes do Estado importava em um “perigo claro e iminente”, justificando a criminalização da expressão. Os outros dois juízes, Holmes e Louis Brandeis, apresentaram um voto concorrente, escrito por Brandeis, que, a despeito de unir-se à maioria no desfecho decisório, levantou, aludindo à dissidência em Abrams, sérios questionamentos à caracterização de um perigo como suficientemente claro e iminente para legitimar a ingerência estatal no “comércio livre de ideias”.

Nesse voto, elucidativo da noção de que é o potencial do debate aberto, e não a segurança do status quo, que define a opção plasmada na Primeira Emenda, Brandeis escreve que, “[s]e houver tempo para expor, por meio do debate, a falsidade e as falácias, para afastar o dano mediante processos de educação, o remédio a ser aplicado é mais expressão, não um silêncio forçado” [5].

Essas palavras, escritas por um juiz que, não obstante suas reservas declaradas, optou por aderir ao resultado da criminalização do discurso comunista, foram lembradas pela corte quando, 42 anos depois, o precedente de Whitney v. California foi expressamente cancelado. Isso aconteceu no julgamento de Brandenburg v. Ohio, caso em que, desvencilhando-se da tese do “perigo claro e iminente”, os juízes estabeleceram, em decisão per curiam, que a expressão só pode ser regulada ou proibida quando “conduzir ou incitar ou produzir uma ação ilegal iminente”.

Virada de paradigma e o caso de Brandenburg

O teste da “ação ilegal iminente” é uma virada de paradigma no raciocínio sobre a liberdade de expressão, pois, a partir de Brandenburg, a corte passa a decidir que a mera defesa de uma ideologia, inclusive se baseada em violência, exclusão ou afronta contra a democracia e o Estado de Direito, constitui expressão protegida pelo Direito; o discurso só deixará de ser livre se ficar demonstrada a iminência de uma ação ilegal diretamente decorrente de sua veiculação.

Clarence Brandenburg, uma liderança da Ku Klux Klan em Ohio, convidara, em 1964, um repórter a cobrir uma manifestação de supremacistas brancos. As filmagens feitas pelo jornalista mostraram Brandenburg e outros líderes do movimento explicando a necessidade de uma “vingança” contra “os povos não caucasianos” e defendendo a expulsão forçada de negros para a África e de judeus para Israel. Ademais, são proferidos discursos de crítica contra o governo, o Congresso e a Suprema Corte, instituições que, na visão dos participantes da passeata, trabalhavam para “suprimir a raça caucasiana branca”. Por conta de sua participação na passeata e das opiniões que veiculou, Brandenburg foi processado e condenado pelo crime de instigação à violência.

Na decisão que reverteu o veredito e absolveu o réu, a Suprema Corte estipulou a tese de que a mera incitação a práticas criminosas não pode ser restringida, já que está protegida pela liberdade de expressão. Segundo decidiu a corte, para que se autorize a regulação da expressão, é necessário que as palavras usadas produzam ou encorajem uma ação ilegal iminente, circunstância que, conforme entenderam os juízes, não estava presente no caso de Brandenburg. O principal argumento foi, mais uma vez, o da busca pela verdade. Mas não apenas.

Além da teoria de Mill, evocou-se uma ideia adicional que, embora anotada de modo desordenado, é merecedora de registro: a noção de que dar voz às opiniões, visões e preferências discordantes no debate público é o único modo de garantir a legitimidade da escolha coletiva que é elaborada a partir de tal debate.

Assim, o raciocínio em Brandenburg v. Ohio reproduziu a lógica de que a verdade só se constrói, legitimamente, na discussão aberta: defendendo a possibilidade de discursos tão odiosos e radicais quanto o racismo e o antissemitismo, a Suprema Corte asseverou que, se uma ideia que aparece na esfera de debate está errada, então o erro deve ser livremente avaliado pelos membros da comunidade, que não acreditarão nela, nem agirão conforme seu recado; no entanto, caso a ideia seja vista como correta e, no longo prazo, a crença que ela encoraja “venha a ser aceita pelas forças dominantes da comunidade”, será tão somente porque, na origem, foi dada a ela uma chance de circular livremente [6]. Impor uma “verdade” ao coletivo, sem que as vozes divergentes tenham tido a mesma oportunidade de argumentar e convencer, constitui um ato de violência.

A legitimidade importa, ao menos nesse sentido, por uma questão de justeza [7]. Propiciar a cada pessoa que tenha vez no processo deliberativo é atribuir a todas as pessoas o mesmo peso e o mesmo valor; isso implica reafirmar a ideia de que a liberdade de expressão tem uma função igualitária. E aqui está o cerne desse argumento – o aspecto que faz com que, no nosso sentir, seja necessário tratá-lo autonomamente –, que é o fato de ele se basear não apenas em uma perspectiva moral, ou em uma perspectiva moralista, por assim dizer, mas também em um olhar da e para a política [8]. Voltar-se para a política, no entanto, tem um preço, em especial quando o que se pretende é defender que as pessoas sejam livres para mentir e ofender, e isso porque um dos principais pressupostos do ambiente político democrático, lado a lado com a liberdade, é o pluralismo.

 

 


[1] WALDRON, Jeremy. The harm in hate speech. Cambridge: Harvard University Press, 2012, p. 173.

[2] DWORKIN, Ronald. Foreword. In: HARE, Ivan; WEINSTEIN, James (eds.). Extreme speech and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. v. No original: “[A] majority decision is not fair unless everyone has had a fair opportunity to express his or her attitudes or opinions or fears or tastes or presuppositions or prejudices or ideals.”

[3] Ibid., p. vii. No original: “The majority has no right to impose its will on someone who is forbidden to raise a voice in protest or argument or objection before the decision is taken”.

[4] SCANLON, Thomas Michael. A theory of freedom of expression. Philosophy and Public Affairs, 1(2), 1972, p. 212. Ver também POST, Robert. A progressive perspective on freedom of speech. In: BALKIN, Jack; SIEGEL, Reva. The Constitution in 2020. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 180.

[5] Estados Unidos da América. Suprema Corte. Acórdão em Whitney v. California, 274 U. S. 357. Washington/DC, 1927, § 44. No original: “Those who won our independence by revolution were not cowards. They did not fear political change. They did not exalt order at the cost of liberty. To courageous, selfreliant men, with confidence in the power of free and fearless reasoning applied through the processes of popular government, no danger flowing from speech can be deemed clear and present, unless the incident of the evil apprehended is so imminent that it may befall before there is opportunity for full discussion. If there be time to expose through discussion the falsehood and fallacies, to avert the evil by the processes of education, the remedy to be applied is more speech, not enforced silence.”

[6] Cf. Estados Unidos da América. Suprema Corte. Acórdão em Brandenburg v. Ohio, 395 U. S. 444. Washington/DC, 1969.

[7] WALDRON, Jeremy. Op. cit., 2012, p. 177.

[8] DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 183. Ver, ainda, WALDRON, Op. cit., 2012, p. 180.

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