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Balanço de 2023 na LDO/2024: pêndulo orçamentário segue no Legislativo

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

26 de dezembro de 2023, 8h00

Percebemos, há dez anos, que o Parlamento vivia isolado, dependente dos sabores e dissabores do governo de turno, que, aí sim, realizava o presidencialismo de chantagem. E foi a partir daquela LDO, da qual também fui relator, que passamos a alterar essa realidade.”
deputado Danilo Forte (União-CE)

O balanço de 2023 para os rumos do Direito Financeiro brasileiro revela o acirramento da tensão entre os poderes políticos na disputa pelos dutos orçamentários do país. O Executivo, que havia se habituado a manejar seletivamente a velocidade e a intensidade do contingenciamento para constranger sua base de apoio no Congresso, perde peso proporcional diante das emendas parlamentares impositivas.

O pêndulo orçamentário presente favorece o Parlamento, que pretende institucionalizar e ampliar sua prevalência decisória sobre a cada vez mais estreita margem de deliberação discricionária sobre o orçamento geral da União. Tal movimento foi bastante evidenciado pelo resultado da tramitação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias federal para 2024 (PLDO/2024), concluído na última semana.

Spacca

Vale lembrar que o orçamento público é, por definição, o espaço de construção política das prioridades estatais mediante diálogo e, por vezes, grandes embates entre Executivo e Legislativo em cada qual dos níveis da federação. As leis que regem o ciclo orçamentário no Brasil são concebidas para que as diretrizes orçamentárias conduzam o diálogo entre o planejamento quadrienal e o orçamento do exercício a que se refere. Sua centralidade foi estabelecida pela Constituição de 1988 e reforçada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, algo que a Emenda Constitucional 95/2016 ou a Lei Complementar 200/2023 jamais modificaram estruturalmente.

As metas fiscais da LDO operam como um eixo rotacional em torno do qual o restante das regras se movimenta. Nesse sentido, persiste o caráter nuclear da meta de resultado primário como principal filtro de monitoramento e controle da execução orçamentária. Ilustrativamente, cabe lembrar que, se há risco de afetação da meta de resultado primário, deve ser empreendido o contingenciamento, bem como as escolhas relativas a renúncias fiscais e despesas obrigatórias de caráter continuado são oneradas adicionalmente, para fins de avaliação de impacto e correspondente medida compensatória.

Durante a tramitação do PLDO/2024, aliás, ficou claro que a substituição do “Novo Regime Fiscal” (vulgo “teto de despesas primárias”) pelo “Regime Fiscal Sustentável” (mais conhecido como “Novo Arcabouço Fiscal”) não trouxe mudança significativa sobre o peso institucional da meta de resultado primário. Quão mais contracionista essa meta for, maior será a disputa entre os poderes Executivo e Legislativo para gerenciar a margem proporcionalmente cada vez menor de alocação discricionária dos recursos governamentais.

O cenário fiscal para o próximo ano é paradigmático a esse respeito: enquanto a meta de déficit primário zero constrange a capacidade de a União realizar despesas discricionárias e o Executivo almeja manter minimamente sua agenda de investimentos no âmbito do programa de aceleração de crescimento (PAC), o Congresso ampliou para R$ 49 bilhões o montante direcionado a emendas parlamentares individuais, de bancada e de comissão (como se pode ler aqui e aqui)

Regimes fiscais contingentes se sucedem freneticamente (vide transição da EC 95 para a LC 200), enquanto a LDO revela uma paradoxal tendência de estabilizar e aprofundar movimentos relativamente duradouros, a despeito da sua aparente fugacidade anual. Quando se observa a sedimentação dos fluxos ocorridos ao longo da última década, percebe-se que o mais importante desses movimentos foi o da perda relativa de espaço deliberativo do Poder Executivo em face do Poder Legislativo em relação à cada vez mais estreita margem de discricionariedade alocativa no orçamento federal.

Na LDO/2024 houve um relevante passo adicional dado na direção dessa rota infraconstitucional de “parlamentarismo orçamentário” no Brasil. A maior inovação residiu na fixação de um cronograma preciso da execução das emendas parlamentares, vedando ao Executivo tanto discriminar congressistas contemplados, quanto escolher se e quando liberará o fluxo de tais dotações às vésperas do processo eleitoral municipal de 2024.

A ordenação de prioridades e o tempo da execução orçamentária das emendas parlamentares (na qual se inclui a indicação do CNPJ da entidade beneficiária) tornaram-se rígidas decisões normativamente definidas ex ante pelo Poder Legislativo, tal como estipulado pelos seguintes artigos 80-A e 81 do substitutivo ao PLDO federal aprovado pelo Congresso:

“Art. 80-A. A execução das programações das emendas, inclusive as classificadas de acordo com as alíneas “b” e “b-A” do inciso II do § 4º do art. 7º, deverá observar as indicações de beneficiários e a ordem de prioridades feitas pelos respectivos autores.
[…]
3º Para as emendas parlamentares destinadas as ações de custeio em saúde, o Poder Executivo fica obrigado a oferecer no SIOP a possibilidade de vinculação do CNPJ do fundo de saúde beneficiário ao número de Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES) da unidade à qual se destina a aplicação para manutenção das atividades.
Art. 81. Em atendimento ao disposto no § 14 do art. 166 da Constituição, para viabilizar a execução das dotações ou programações incluídas por emendas identificadas de acordo com o item 1 da alínea “c” do inciso II do § 4º do art. 7º, serão observados os seguintes procedimentos e prazos:
I – até cinco dias para abertura do Siop, contados da data de publicação da Lei Orçamentária de 2024;
II – até quinze dias para que os autores de emendas indiquem beneficiários e ordem de prioridade, contados do término do prazo previsto no inciso I ou da data de início da sessão legislativa de 2024, prevalecendo a data que ocorrer por último;
III – até cento e cinco dias para que os Ministérios, órgãos e unidades responsáveis pela execução das programações realizem a divulgação dos programas e das ações, análise e ajustes das propostas e registro e divulgação de impedimento de ordem técnica no Siop, e publicidade das propostas em sítio eletrônico, contados do término do prazo previsto no inciso II;
IV – até dez dias para que os autores das emendas solicitem no Siop o remanejamento para outras emendas de sua autoria, no caso de impedimento parcial ou total, ou para apenas uma programação constante da Lei Orçamentária de 2024, no caso de impedimento total, contados do término do prazo previsto no inciso III;
V – até trinta dias para que o Poder Executivo federal edite ato para promover os remanejamentos solicitados, contados do término do prazo previsto no inciso IV; e
VI – até dez dias para que as programações remanejadas sejam registradas no Siop, contados do término do prazo previsto no inciso V, com a reabertura imediata do prazo para novas indicações e priorizações.

1º Do prazo previsto no inciso III do caput deverão ser destinados, no mínimo, dez dias para o cadastramento e envio das propostas pelos beneficiários indicados pelos autores das emendas.
[…]

7º Na hipótese do parágrafo anterior, os órgãos e unidades responsáveis pela execução deverão:
I – empenhar a despesa até 30 dias contados do término do prazo previsto no inciso III do caput; e
II – realizar o pagamento integral até 30 de junho de 2024, no caso das programações que adicionarem recursos a transferências automáticas e regulares a serem realizadas pela União a ente federativo, nos termos do § 5º do art. 48.

8º Uma vez liquidadas, as despesas financiadas por recursos oriundos de emendas impositivas, inclusive de restos a pagar, terão prioridade para pagamento em relação às demais despesas discricionárias.”

As Emendas Constitucionais 86/2015, 100, 102 e 105/2019 prometeram avanço na relação do Legislativo com o Executivo ao longo das várias etapas do ciclo orçamentário, bem como visaram aproximar os parlamentares com suas bases eleitorais nos municípios e estados. A mesma promessa se repete novamente agora com a LDO/2024… Mas os riscos envolvidos superam largamente os supostos benefícios alardeados, sobretudo, na figura da “transferência especial” inscrita no artigo 166-A, para fins de repasse flexibilizado das emendas parlamentares impositivas.

O caráter supostamente livre da transferência especial decorre da ausência de qualquer plano de trabalho a lhe condicionar o alcance de fins previamente pactuados ou planejados. Nada foi dito ou previsto sobre o estoque de obras paradas, a despeito do artigo 45 da LRF, tampouco sobre a necessidade de coerência e aderência ao planejamento setorial das políticas públicas.

Diante do estreito calendário político já em jogo, as emendas parlamentares impositivas — que passaram a ser garantidas por um calendário rigidamente detalhado de execução orçamentária — pretendem, em última instância, impactar forte e imediatamente as eleições municipais de 2024, com risco até mesmo de abuso de poder político. Como se já antevisse tal risco cronológico em face da vedação inscrita no artigo 73, VI, alínea “a” da Lei 9504/1997 [1], o artigo 81, §7º, II da LDO/2024 determinou que seja assegurado, ainda no primeiro semestre de 2024, o efetivo repasse financeiro de todas as emendas que “que adicionarem recursos a transferências automáticas e regulares a serem realizadas pela União a ente federativo” (artigo 48, §5º da LDO).

Algo semelhante, aliás, havia ocorrido nas eleições municipais de 2020, em relação ao artigo 2º da Emenda 105/2019, que havia determinado, ainda no primeiro semestre daquele ano eleitoral, o efetivo repasse financeiro de 60% do total das transferências especiais.

Aqui não se está apenas a questionar a pessoalidade e o curto fôlego do repasse, haja vista o seu desiderato implícito de novamente impactar a dinâmica eleitoral municipal. O que demanda especial reflexão é a natureza constitutiva do fenômeno: cada deputado e senador pode vir a se comportar como ordenador arbitrário de despesas até o limite da sua emenda pessoal, pois cada mandato parlamentar tende a ser tratado como uma unidade orçamentária autônoma que passa ao largo do planejamento orçamentário e setorial.

Em uma analogia com a Teoria do Órgão, de Otto Gierke, cada parlamentar seria o órgão responsável não só pela elaboração, mas também assumiria a responsabilidade, ainda que indiretamente, pela execução, como uma espécie privilegiada de ordenador de despesa da transferência especial da sua emenda impositiva, até porque seu próprio mandato corresponderia a uma heterodoxa unidade orçamentária.

Eis um consistente risco de “loteamento” que merece ser lido junto com a agenda de ampliação do Fundo Eleitoral que trafega no Ploa federal para 2024 para R$5 bilhões, patamar em 150% ao de 2020.

Tal como pertinentemente suscitado por Bruno Carazza, em relação ao havia ocorrido semelhantemente em 2020: “Com mais dinheiro e menos controle, os donos dos partidos terão o cenário perfeito para levar adiante esquemas com empresas de parentes e amigos”.

A própria pretensão de ampliar o fundo eleitoral, em detrimento de áreas sensíveis como saúde e educação, comprovou o risco de desconstrução das vinculações orçamentárias que amparam direitos sociais. Trata-se de uma emblemática demonstração do quanto se pode veloz e vorazmente esvaziar a ordenação legítima de prioridades inscritas no planejamento orçamentário para atender ao curto prazo eleitoral e gerar maior fisiologismo fiscal.

Invocando falseadamente a ideia de orçamento impositivo, o que mais o Congresso fez foi tentar pautar a centralidade da sua influência nas eleições municipais, quer diretamente na majoração do financiamento público das candidaturas, quer indiretamente na forma das transferências de emendas impositivas sob regime de planejamento prévio inexistente e controle flexível.

Ao invés de efetivamente aprimorar o pacto federativo, o trato patrimonialista da execução orçamentária municipal tem sido disputado pelo Executivo e agora, mais recentemente, pelo Legislativo. Eis um movimento pendular que efetivamente desloca o peso do presidencialismo de coalizão brasileiro, tal como suscitado por Sérgio Abranches, para uma espécie de protagonismo parlamentar de retaliação ao Executivo:

“O protagonismo do Legislativo manifesta-se mais como crise do que como alternativa funcional. […] O Congresso é dividido por natureza. Só consegue unir-se em torno de mínimos denominadores comuns, ou após demorada construção de consenso social e político, estimulado pela convicção geral de que há uma emergência.
[…] Não vejo como o modelo político brasileiro possa transitar do presidencialismo de coalizão para um parlamentarismo voluntarista, a não ser em um perigoso processo de dissolução institucional.”

Falhas recalcitrantes afastam a tese de que a descentralização decisória do ciclo orçamentário federal, na forma de emendas parlamentares impositivas (individuais ou de bancada), bem como emendas de comissão, seria meio ontologicamente capaz de democratizar sua destinação. Muito antes pelo contrário, o risco que se antevê é o de apropriação privada do interesse público, porque sequer foi fortalecido suficientemente o planejamento que ordena prioridades legítimas, tampouco foram estruturadas qualitativamente as instituições de controle que atestariam o alcance efetivo dos resultados planejados a custos razoáveis.

Diante da iminência de mais um novo exercício financeiro em que ocorrerão eleições municipais, é preciso renovar a cautela com todos esses riscos, para que o país possa aprender com os erros do passado, ao invés de apenas repeti-los de forma cada vez mais crônica e agravada.

Em 2024, a sociedade brasileira precisa tentar, mais uma vez, superar o trato coronelista do orçamento e assegurar eleições efetivamente democráticas. Não é fácil, mas talvez agora haja mais clareza de que democracia e orçamento são faces da mesma moeda e ambos podem sofrer o severo risco de abuso de poder político.

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[1] A seguir transcrito: “Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

[…] VI – nos três meses que antecedem o pleito:  

  1. a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública; […]”

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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