Opinião

Genocídio, crimes de guerra, tratamento desumano e e apartheid

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23 de janeiro de 2024, 13h16

Primeiramente, cabe ressaltar que Israel tem o direito de existir. E Israel tem o direito de se defender. Obviamente, contudo, mesmo em conflito armado deve haver proporcionalidade e excessos são condenáveis, e tem de ser averiguados e eventualmente punidos. É também necessário apontar como condenável e condenar qualquer ato terrorista. Como também são condenáveis quaisquer ataques contra população civil, quer palestina ou israelense.

É oportuno lembrar o parecer da Corte Internacional de Justiça, sobre as consequências jurídicas da construção do muro em território palestino ocupado, de 9 de julho de 2004, onde, dentre outras conclusões, foi apontado: que Israel não pode invocar a necessidade de defesa – como a construção do muro – porque esta não existiria, se não tivesse havido a anterior ocupação de território palestino; e no Direito internacional vigente, a ocupação militar não cria título jurídico sobre território. Portanto, território ocupado (por forças israelenses) continua a ser território ocupado (palestino). A potência ocupante não pode pretender legitimidade nem exercer soberania sobre este. E assinalou ainda que a construção do muro avança sobre território palestino, além de criar obstáculos à vida normal e circulação da população palestina.

Diante do grave quadro, desde 7 de outubro de 2023, não se pode esquecer a situação de mais de 2 milhões de civis palestinos na faixa de Gaza, concentrados em território de 365 quilômetros quadrados – fazendo desta uma área com densidade populacional superior às cidades de Tóquio e de Londres –, que tem sido sujeitos a sistemáticos bombardeios, por mais de cem dias.

Alegadamente, são avisados para se deslocarem: faltou dizer para onde. Dado que o território é isolado, por terra, por mar e por ar, pelas forças militares israelenses. E a fronteira com o Egito tem sido mantida fechada, exceto para entrada de ajuda humanitária e saída de algumas pessoas, previa e meticulosamente controladas.

Há indícios de genocídio – e tem de ser investigado o eventual cometimento do crime internacionalmente tipificado pela Convenção das Nações Unidas para a prevenção e a repressão ao crime de genocídio (1948, em vigor desde 1952) – na medida em que o primeiro ministro de Israel declara a intenção de “transformar Gaza em uma ilha deserta”, o ministro da defesa declara estar Israel lutando contra “animais humanos, que têm de ser tratados como tais”. Além de contraditória em seus termos (“animais”, “humanos”) é odiosa, pela intenção de desumanizar os oponentes e justificar qualquer medida contra estes adotada. E outro ministro de estado israelense declara que se deveria jogar uma bomba atômica em Gaza!

Depois de iniciado o procedimento, junto à Corte Internacional de Justiça, para averiguação de prática de genocídio, começa a ser dito que referidas declarações foram “tiradas de contexto”!? São necessárias averiguações de eventual cometimento desse grave crime internacional. E não se pode, previa e imotivadamente condenar a África do Sul, por pleitear junto à Corte a sua averiguação. Teve também motivo o governo do Brasil em manifestar apoio a essa iniciativa junto à Corte Internacional de Justiça.

Usar como arma de guerra em relação à população de mais de 2 milhões de civis palestinos, – configura crime de guerra – bloquear acesso à comida, a água, tanto para beber, quanto para higiene –, a medicamentos e suprimentos médicos, bem como a energia e combustível – necessário para movimentar as usinas de dessalinização de água e movimentação de ambulâncias e acesso à internet.

Obviamente essa estratégia de guerra configura tratamento desumano e degradante, deliberadamente infligido a toda essa população civil palestina, como tipifica a Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984, em vigor desde 1989).

Poderia ainda ser feita “reconvenção” – modificação do pedido de investigação do cometimento de crimes – junto à Corte Internacional de Justiça, para incluir a averiguação de cometimento de outros crimes internacionalmente tipificados, tais como a discriminação racial, nos termos da Convenção das Nações Unidas para a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1969), bem como a eventual prática de apartheid – segregação racial, como política pública –, nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre a repressão e punição do crime de apartheid (1973), tipificado como crime contra a humanidade, como ulteriormente confirmado pelo Estatuto de Roma (1998, em vigor desde 2002), que criou o Tribunal Penal Internacional.

Não se trata de imputação de genocídio para discutir controvérsias jurídicas relacionadas à aplicação do direito humanitário e aos problemas da situação humanitária prevalecente em Gaza – que são graves problemas, de generalizada preocupação. Não se trata de instrumentalização do direito internacional.

Trata-se de solicitar à Corte Internacional de Justiça, como principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas, que averigue e declare se existem indícios de violações em curso do direito internacional. Nenhum estado pode se pretender acima da lei internacional, nem pretender excluir qualquer averiguação, liminar e imotivadamente, de suas condutas.

Além disso, é também uma oportunidade para Israel se defender dessas acusações e tudo esclarecer para toda comunidade internacional. Aliás, tal como apontado logo no início, em nenhum momento essa ação na Corte Internacional de Justiça deve ser levada como uma tentativa de desautorizar a existência de Israel. Muito pelo contrário, pois a conduta da África do Sul reafirma o reconhecimento de Israel como estado, como seu par na comunidade internacional ao acionar um mecanismo de solução de controvérsias institucionalizado pelo direito internacional, construído pelos e para os estados. Ou seja, Israel está sendo respeitado como estado e está sendo convidado a se manifestar dentro do sistema que foi desenvolvido contemporaneamente à sua própria criação após os escombros e os horrores da segunda Guerra Mundial. É importante lembrar que foi justamente em 1945, com a elaboração da Carta da ONU, que se deu, em conjunto, o Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

Aliás, lembremos também que quando uma pessoa é acusada de ter cometido um crime no âmbito das legislações estatais em que o regime é o democrático e o sistema processual é o acusatório, abre-se espaço para a sua ampla defesa e para o contraditório. Isto é, abre-se a oportunidade para o acusado se defender e provar sua inocência. No procedimento da Corte Internacional de Justiça impera a mesma lógica. Deste modo, não há motivo algum para o estardalhaço ou para o estranhamento em relação à ação proposta pela África do Sul. Nesse sentido, vale a pena também ressaltar que sempre que um conflito eclode no mundo, principalmente envolvendo potências, vozes se multiplicam para apontar que o direito internacional não serve para nada, que não existe ou que é falho demais. Todavia, quando seus instrumentos institucionais são devidamente usados, de acordo com os fins para que foram criados, não se reconhece a importância e o funcionamento do próprio direito internacional como regulador dos conflitos e instrumento minimizador dos danos causados às pessoas que por eles sofrem. Quando a África do Sul se movimenta para questionar Israel, é o direito internacional que está funcionando.

Por fim, em relação ao endosso dado pelo Brasil, causam realmente uma certa estranheza as críticas apresentadas no sentido de ser um equívoco ou um erro da política externa brasileira. O que o Brasil fez, independentemente de qualquer posicionamento ideológico, foi reafirmar o posicionamento que sempre pautou a conduta do país nas relações internacionais; isto é, apoiar a solução de conflitos por meios pacíficos e de acordo com o direito internacional e sua normativa. Basta tomar o artigo 4° da Constituição de 1988 que determina ao Brasil o dever de se pautar nas suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos (artigo 4°, II) e pela solução pacífica dos conflitos (artigo 4°, VII). O Brasil apenas cumpriu com a sua missão constitucional.

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