Opinião

Comentários ao Projeto de Lei nº 3025/2023 (parte 2)

Autor

  • Gabriel Mota Maldonado

    é internacionalista e advogado mestre e doutorando em Direito (USP) e foi diretor do Departamento de Desenvolvimento Sustentável na Mineração do Ministério de Minas e Energia.

22 de janeiro de 2024, 7h13

Falamos há alguns dias sobre tópicos do Projeto de Lei nº 3025/2023, ocasião em que foram identificados pontos de melhoria no texto tendo em conta, sobretudo, sua eficácia enquanto norma jurídica. A se levar em consideração o que dizem os estudiosos sobre o tema, o tópico da eficácia deveria ser particularmente preocupante para quem se dispõe a criar ou discutir regras para o setor minerário em geral e para o segmento da mineração de ouro em especial: como lembra o Diagnóstico Socioeconômico e Ambiental da Mineração em Pequena Escala no Brasil (Projeto MPE-META), citado anteriormente [1], nesse segmento há um problema antigo e crônico de ineficiência e de contradição entre os instrumentos normativos e executivos que compromete os esforços para regular as atividades e para criar e aplicar políticas públicas.

Sabe-se que dificultar a entrada de ouro extraído de forma irregular no mercado legal — objetivo declarado do PL — é um meio para inibir as práticas predatórias promovidas pela extração ilegal de minério. Sabe-se, também, que o ouro não é (nem de longe) o único mineral extraído ilegalmente ou explorado em áreas proibidas. É consabido, por exemplo, que a prática ilegal alcança minerais como areia [2], diamantes e outras pedras preciosas [3], cassiterita, manganês [4] e minério de ferro [5], todos parte, naturalmente, do rol de bens da União, fartamente encontrados em terras indígenas [6] e cuja exploração irregular traz danos ao patrimônio público mineral, ao meio ambiente e à economia nacional.

De fato, ainda que o ouro, por suas características próprias, mereça atenção especial do legislador, para inibir a atividade ilegal e proteger o patrimônio socioambiental e material do país seria preciso refletir sobre a situação da exploração ilegal de recursos minerais como um todo, e não eleger como ponto único da normatização apenas um dos tantos ativos minerais encontrados no subsolo brasileiro. A superação desse contexto, que parece refém de uma história ultrapassada em que a atividade minerária se centrava no ouro, é essencial para que a legislação voltada ao setor adquira maturidade e eficácia no seu propósito salvaguardar os bens e direitos mencionados. Do contrário, conta-se parte da história e recolhe-se — quando muito — parte dos resultados, sobretudo porque isso contribui para uma visão pouco realista e cientificamente frágil sobre o setor, favorecendo uma certa mistificação (comum na sociedade) da atividade e do próprio ativo mineral, com consequências deletérias para a eficácia de qualquer política ou norma que tenha o mercado aurífero como objeto.

Nesse sentido (tradicional), parece se inserir a proposta do relator do PL. Em seu Substitutivo, o deputado Marx Beltrão (PP-AL) mantém as obrigações atribuídas às empresas integrantes do sistema financeiro nacional pelo texto original, mas substitui as guias e informações então exigidas pelo que ele chamou de “sistemática de rastreabilidade do ouro”, que consistiria na “marcação física” e no “registro de todas as transações ao longo da cadeia produtiva” (artigo 4º), sistema que seria de uso obrigatório de todos que atuassem no mercado, além de regulamentado pela ANM, mas desenvolvido, implementado e mantido pela Casa da Moeda (CMB). Essa “sistemática” seria sustentada pela Taxa de Rastreabilidade do Ouro (TRO), cujo fato gerador seria a marcação física do metal pela CMB e cuja alíquota seria estabelecida por ato administrativo da mesma CMB. Por entender que essa sistemática provê segurança quanto à origem do ouro, o substitutivo não obriga que o transporte entre a área de produção e o primeiro comprador se dê exclusivamente dentro da região aurífera produtora, o que é atualmente exigido pela Lei nº 12.844/2013 (artigo 38) e está previsto no texto original do PL.

A proposta do relator tem lastro nos debates sobre a rastreabilidade do ouro que pululam no Brasil e no mundo nos últimos anos. Aqui, em 16 de maio de 2023, o jornal Correio Braziliense organizou junto com a Casa da Moeda o simpósio Correio Debate: os caminhos do ouro, em que entidades públicas e privadas debateram o mercado e as propostas de aperfeiçoamento da governança sobre o setor. Na ocasião, a CMB, por seu diretor de inovação e mercado, expôs o que seria um sistema de rastreabilidade do ouro, organizado em blockchain e manuseado pelos usuários autorizados por meio de aplicativo de celular, no qual os diversos atores da cadeia inseririam os dados diversos e o lote do ouro receberia um número de série e uma “etiqueta” digital, um código a ser gravado no metal, armazenando todas as informações inseridas [7]. Com isso, impede-se que “o ouro extraído ou reciclado de forma ilegal seja legalizado”, segundo o diretor.

A Casa da Moeda faz um importante trabalho de autenticação de produtos cujo controle interessa particularmente ao Estado brasileiro. Todos os selos produzidos com o objetivo de assegurar a confiança do consumidor sobre produtos como bebidas alcoólicas ou cigarro funcionam há vários anos, pelo que toda e qualquer contribuição desta instituição merece ouvidos. No entanto, a adoção de ferramentas digitais de registro em redes descentralizadas (como é o caso do blockchain), especialmente no que concerne à certificação de origem, ainda é embrionária, sobretudo quando se procura atestar as eventuais consequências e correções promovidas pela tecnologia [8]. Alguns estudos mostram, inclusive, que a adoção dessas redes em cadeias de produção e comércio de bens pode ser impossível ou mesmo desvantajosa a depender dos fatores setoriais envolvidos [9].

Quando se investiga as aplicações destas tecnologias no setor minerário, então, fica claro que as experiências são ainda muito restritas e pouco maduras [10], e, com o devido respeito, não faz qualquer sentido imaginar que um sistema descentralizado garantiria a origem no ouro, já que, como lembram Straubert e Sucky, “as empresas ainda podem mentir sobre as informações, mesmo quando inseridas em um sistema de registro distribuído (DLT)” [11]. Como está escrito na normativa atual (que se pretende modificar) e se mantém na sistemática proposta, a segurança do sistema depende da confiabilidade dos dados que são inseridos pelos próprio usuários, usuários esses que são devidamente autorizados a atuarem no mercado, seja como produtores, compradores ou outros tipos de profissionais. Criar e exigir uma marcação do metal para gravar todas as informações desde a sua extração não garante — nem em tese — a legalidade da origem, apenas sofistica o modelo de registro que, mesmo que plenamente adotado, continua a depender da capacidade de fiscalização do poder público — que, como já vimos, é bastante precária nesse caso.

Volta-se, com isso, aos problemas antes identificados, mas lavrados, agora, com o signo da informatização que, por si só, não assegura melhoria do sistema. É que, cumpridas as formalidades legais e obedecidas as normas regulamentares, presume-se a legalidade da transação e, usando a dicção da próprio PL, a “origem legítima” do ouro. Em outras palavras, caso o particular utilize corretamente as ferramentas e cumpra com as obrigações condicionantes da lei, a sua boa-fé e a legalidade da mercadoria são presumidas, como é claro pela Constituição (artigo 5º, II), pelo Código Civil (artigo 104) e por dispositivos legais variados (e.g. artigo 3º, V, da Lei nº 13.874/2019). Com isso, e sem aperfeiçoamentos necessários, a luta contra a presunção de boa-fé e legalidade quando do cumprimento das obrigações legais pelo comprador do ouro, que culminou na declaração liminar de inconstitucionalidade do §4º, do artigo 39, da Lei nº 12.844/2013 pelo Supremo Tribunal Federal (cf. ADI 7.345 e ADI 7.273), acabaria inócua, pois o reforço à segurança do sistema advindo da informatização das informações ainda se confrontaria com a inoperância da fiscalização, a continuidade das “brechas” a condutas desviantes e a natural e jurídica boa-fé presente nos negócios realizados com observância à lei.

É bastante conhecida a necessidade de dar ao mercado de ouro maiores suportes normativos. Como maneira de transformar esse ativo mineral em veículo de desenvolvimento sustentável, as alterações legislativas e regulatórias, além de observarem o ordenamento jurídico, precisam estar atentas às experiências históricas e às aflições e desejos da sociedade brasileira. Dessa forma, modificar ou construir um novo paradigma legal é tão mais eficiente quanto mais coerente com o propósito geral do país sobre o setor, que busca, sem muitas dúvidas, dar ao segmento aderência aos objetivos e fundamentos das ordens jurídica e política nacionais e às melhores práticas internacionais. Sem uma abordagem complexa, que concatene as diversas áreas a que a mineração de ouro interessa, especialmente aquelas de índole socioeconômica e ambiental, é impossível imaginar que o sistema realmente funcione: novamente, a lei e o direito talvez sirvam, a partir das mudanças propostas, para apaziguar os ânimos do debate, mas não servirão para consagrar os propósitos que justificam a proposta de lei, tampouco para transformar a realidade concretamente.


[1] Produto 8 – Relatório final, p. 37, 44, 211.

[2] https://marsemfim.com.br/extracao-ilegal-de-areia-atinge-r-20-bi-ano-no-brasil/

[3] https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2023/05/01/contrabando-de-diamantes-envolvia-garimpo-ilegal-em-tres-estados-aponta-investigacao-da-pf.ghtml

[4] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/12/extracao-ilegal-de-manganes-no-sul-do-pa-tem-movimentacao-milionaria-e-pouca-fiscalizacao.shtml

[5] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2022/09/27/grupo-suspeito-de-fazer-mineracao-de-forma-irregular-em-area-de-preservacao-e-preso-na-regiao-central-de-minas-gerais.ghtml

[6] https://reporterbrasil.org.br/2022/04/cassiterita-o-mineral-que-e-a-nova-ameaca-aos-yanomami/. Vários trabalhos mostram o potencial mineral de Terras Indígenas, que possuem diversos minerais como nióbio e níquel (Cf. trabalho específico para a estado do Amazonas https://www.ppegeo.igc.usp.br/index.php/rbg/article/view/7724/7151).

[7] https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2023/05/5094913-selo-inteligente-unira-fiscalizacao-fisica-e-digital-diz-diretor-da-casa-da-moeda.html e https://www.youtube.com/watch?v=L3sQ-NgPOok (minuto 2h47min).

[8] Cf. Schmid, DLT in the supply chain: can it guarantee traceability?, 2021.

[9] Cf. Straubert e Sucky, How useful is a distributes ledger for tracking and tracing in supply chains? A system thinking approach, 2021 e Pearson at al., Are distributed ledger technologies the panacea for food traceability?, 2019.

[10] Veja-se pequena análise aqui.

[11] Straubert e Sucky, How useful is a distributes ledger for tracking and tracing in supply chains? A system thinking approach, 2021, p. 2.

Autores

  • é internacionalista e advogado, mestre e doutorando em Direito (USP) e foi diretor do Departamento de Desenvolvimento Sustentável na Mineração, do Ministério de Minas e Energia.

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