Opinião

Como ficam os municípios mineradores na reforma tributária

Autor

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

10 de maio de 2024, 13h24

A reforma tributária do consumo, veiculada pela Emenda Constitucional no 132/2023, vem abrindo margem para acalorados debates e já deu sinais de que novos ajustes e emendas constitucionais serão necessários. Se ela trouxe alguns avanços, por certo, provocou algumas distorções. Com relação aos municípios mineradores, os desajustes causados são absurdos.

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É ressabido que o minério não dá “duas safras”, ou seja, os recursos minerais se exaurem. Da mesma forma, é consabido que os danos ambientais proporcionados por essa atividade são sensíveis. Os recentes desastres de Mariana e Brumadinho bem ilustram os riscos a que a população dessas cidades fica exposta.

Por tudo isso, é óbvio que boa parte dos recursos gerados pela mineração deve ficar com os municípios mineradores, sobretudo para que eles possam desenvolver e estimular “atividades econômicas substitutivas”, porque “onde se tira minério não se produz nem capim”!

O legislador nacional estava em débito com os municípios mineradores há anos, e esperava-se que a reforma de 2023 corrigisse alguns desequilíbrios e compensasse os prejuízos causados. Entretanto, não foi isso o que aconteceu.

O primeiro golpe nos municípios mineradores foi dado pela ruinosa Lei Kandir (LC 87/1996), que desonerou a exportação de commodities. A mineração, em sua maior parte, se destina à exportação. Por isso, os estados mineradores geram recursos financeiros para a nação, mas não recebem os recursos tributários gerados pela atividade. Em outras palavras, a mineração gera tributos para a União, entretanto, os estados e os municípios mineradores ficam sem os recursos do ICMS.

Apesar das promessas de compensação desse prejuízo pela União, o esperado “acertos de contas” pedidos pelos estados jamais ocorreu. A ADO 25, na qual os estados mineradores cobraram reparação, resultou em um acordo singelo, incapaz de reparar as perdas dos municípios mineradores. Para se ter uma ideia, apenas em Minas Gerais, eram necessários mais de R$ 170 bilhões para reparar os prejuízos causados. Entretanto, foram pagos pouco mais de 5% desse montante. Um absurdo!

Ao contrário do esperado, a recente EC 132/2023 abriu mais uma ferida nos entes federados mineradores e agravou muito a situação dos municípios mineradores.

Primus, porque o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que virá para substituir o ICMS, também não incide na exportação de commodities. Assim, os estados e municípios mineradores seguirão sem a receita de seu principal tributo, recaindo sobre a atividade apenas os tributos federais. Secundus, porque a repartição da receita do IBS privilegiou o critério populacional (80% devem ser distribuídos na proporção da população do município), enquanto, do ICMS, 65% (no mínimo) era compartilhado na proporção do valor adicionado. Assim, se o ICMS ficava em sua maior parte com o município minerador produtor da riqueza, o IBS gerado por essas cidades, usualmente de pequena população, deve ser compartilhado com os demais municípios.

Exaustão das jazidas

O que se pode imaginar é que, no futuro, quando a exaustão das jazidas ocorrer (o que deve acontecer em poucos anos), o município minerador não terá riqueza alguma para ser explorada, e nada deve ser colocado no lugar da mineração. Os prefeitos que hoje já contam com recursos diminutos passarão a ter recursos ainda menores. Possivelmente, os entes exportadores de commodities, assim, devem, em alguns anos, se transformar em “cidades fantasmas”, parecidas com aquelas vilas abandonadas do velho oeste norte-americano. Os reformistas não se deram conta das distorções e das injustiças que estavam provocando.

Entretanto, um outra inexplicável distorção trazida pela EC 132/2023 ofende ao bom senso e sacrifica ainda mais os municípios mineradores: a destinação da arrecadação do Imposto Seletivo.

Spacca

A ideia central da EC 132/2023 foi a criação de um tributo sobre valor agregado dual dividido em dois, um nacional (CBS) e outro subnacional (IBS). Porém, o modelo aprovado veio acompanhado por alguns outros novos tributos, como o Imposto Seletivo (IS) e o esquisito “IPI — ZFM”.

O IS federal pretende ser um verdadeiro sin tax (“imposto sobre o pecado”), com propósitos exclusivamente extrafiscais, que deve incidir sobre a “produção, comercialização ou importação dos bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”. O tributo, que será cobrado a partir de 2027, em substituição ao IPI, foi modelado para incidir sobre “externalidades negativas”.

Reconhecendo a existência dessas externalidades negativas nas atividades mineradoras, o artigo 153, § 6º, VII, da Constituição (CRFB/1988) reformada, conta agora, na extração de recursos minerais, com o IS-mineração, que deve ser “cobrado independentemente da destinação, caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% do valor de mercado do produto”. A tributação da mineração pelo IS, assim, só ocorre porque a atividade proporciona externalidades ambientais negativas. Obviamente, portanto, a destinação da receita gerada pelo tributo deve guardar “referibilidade” com essa atividade invasiva, ou seja, os recursos devem ser destinados às localidades que sofrem a externalidade negativa. Isso é óbvio!

O bom senso nos leva a concluir que esse específico tributo (IS-mineração) apenas foi instituído em razão dos prejuízos causados pela atividade mineradora e para compensar os sofridos municípios mineradores (sobretudo em razão das perdas proporcionadas pela Lei Kandir). Após os desastres ambientais de Mariana e Brumadinho, ficou evidenciado que os municípios mineradores sofrem severamente o impacto da extração minerária e os riscos de acidentes e prejuízos ao meio ambiente e à população dessas localidades são notórios.

Distorções da Lei Kandir

Se a reforma não corrigiu as distorções federativas causadas pela Lei Kandir, ao contrário, sacrificou ainda mais os entes federados exportadores de commodities, uma vez que os recursos do IS ficam nos cofres da União e não são direcionados para os municípios mineradores! Pasmem!

Em primeiro lugar, vale verificar que, nos termos do artigo 153, § 6º, I, da CRFB/1988, o IS não deve, a princípio, incidir sobre exportações, consagrando o princípio da tributação no país de destino. Entretanto, no caso da atividade minerária, o IS incide até mesmo na exportação de produtos minerais. Nesse sentido, o IS-mineral pode deixar um “resíduo tributário” na exportação, esvaziando a regra de imunidade, encarecendo as commodities nacionais no mercado internacional.

Em segundo lugar, o produto da arrecadação do IS não toma em consideração as localidades que sofrem com as externalidades negativas.

Nos termos do artigo 159, I, 40% da receita do IS fica com a União. Um percentual de 50% da arrecadação do IS é compartilhada com os entes subnacionais da seguinte forma: 21,5% vão para o Fundo de Participação dos Estados; 25,5%, para o Fundo de Participação dos Municípios e 3% para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nos termos do artigo 159, II, tal como se dava com o IPI, mais 10% da receita do IS é distribuída para os estados, proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados. Nos termos do § 3º do artigo 159, os estados deverão entregar aos respectivos municípios 25% dos recursos relativos ao IS que receberem e esse montante deve ser compartilhado observando os critérios estabelecidos no artigo 158, § 2º (25% dos 10%, portanto, 2,5%).

O artigo 158, § 2º, foi substancialmente alterado com relação aos anteriores critérios de partilha do ICMS. No que diz respeito ao IBS dos estados rateados com os municípios (25%) e aos 10% da receita do IS (de que trata o artigo 159, II), 80% do total deve ser compartilhado observando o critério populacional; 10% com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade (de acordo com o que dispuser lei estadual); 5% com base em indicadores de preservação ambiental (de acordo com o que dispuser lei estadual) e 5% em montantes iguais para todos os municípios do estado.

Assim, a alteração do critério de partilha do artigo 158, II, da CRFB/1988, com relação ao novo tributo sobre o consumo (IBS) e ao IS, fará com que os municípios mineradores percam receitas significativas. Para piorar, a União vai ficar com 40% de toda receita gerada pelo IS.

Entretanto, o IS é um tributo essencialmente extrafiscal, portanto, não pode ser instituído com propósitos arrecadatórios. A propósito, trata-se do único tributo cuja função extrafiscal é expressamente reconhecida pelo texto constitucional, o que revela seu perfil de genuíno instrumento de políticas públicas voltado à indução de comportamentos omissivos ou comissivos que se revelem convergentes ou contrários aos valores constitucionalmente albergados.

A extrafiscalidade exsurge quando o direito tributário abre seus poros à influência de valores e objetivos constitucionalmente estabelecidos, transmutando o tributo de uma simples fonte de receitas públicas em um genuíno instrumento de indução de comportamentos consentâneos a políticas públicas que densificam objetivos de Estado. Não pode, portanto, a União instituir o IS com propósitos arrecadatórios, mas deve restringi-lo a objetivos e funções necessariamente extrafiscais, servindo aos objetivos e propósitos (insista-se, extrafiscais) almejados com sua instituição como importantes referências para o seu controle de constitucionalidade.

Assim, não poderá a União instituir IS se sua incidência e exigência não militarem no sentido de contribuir para a consecução dos objetivos extrafiscais que fundamentaram sua criação. Portanto, para que o IS se revele constitucional, deve haver coerência (“referibilidade”) entre sua instituição e os fins colimados (juízo de adequação).

Baixa tributação de mineradoras

Como ressabido, é antigo o debate acerca da baixa tributação das atividades mineradoras e a possibilidade de geração de externalidades ambientais negativas, razão pela qual os clamores dos entes federados mineradores é uma constância. Foi por isso que, ainda que de forma singela, o artigo 153, § 6º, VIII, da CRFB/1988, com clara finalidade arrecadatória e de forma absolutamente excepcional, previu que, na extração, o IS deve ser cobrado, independentemente da destinação do produto, a uma alíquota máxima de 1% do valor de mercado do produto.

Porém, se observado o critério de partilha do imposto, fica evidenciado que o “IS extração”, obviamente, não deve reforçar o caixa dos Munícipios mineradores, como deveria, mas se constitui em uma fonte arrecadatória genérica de recursos tributários, sobretudo para a União.

Com a partilha prevista, o IS-extração terá propósitos exclusivamente arrecadatórios, pouco ou nada tendo a ver com as atividades poluentes e degradantes ao meio ambiente. Trata-se de um claro “imposto para atividades de extração”, para o qual não interessa o destino do produto extraído (mercado interno ou estrangeiro). Os danos, que são permanentes, ficam com o território dos entes mineradores, enquanto os ganhos arrecadatórios ficam com a União ou são socializados para os outros entes federados. Por isso, esse equívoco precisa ser corrigido.

As receitas do IS-extração devem ser direcionadas para os municípios que sofrem as externalidades negativas. Ou isso acontece, ou o IS-extração já surge revelando uma farsa.

Mais uma vez, os municípios que enriquecem o país e que sofrem com externalidades negativas são espoliados e ficam sem os recursos necessários para incentivar atividades substitutivas da mineração quando as jazidas se exaurirem. É necessário que se corrija esse absurdo.

Não podem os municípios mineradores, que geram riquezas para o País, ficarem sem tributos, viver sob ameaça de serem inundados por lama tóxica e ainda sofrerem com a indiferença do legislador nacional.

Autores

  • é sócio do Coimbra, Chaves & Batista Advogados, professor associado de Direito Público da Graduação e Pós-graduação da UFMG, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela UFMG e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

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