Paradoxo da Corte

Árbitro e advogado que exercem o magistério na mesma instituição

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

19 de janeiro de 2024, 8h00

As notícias sobre impugnação de árbitros, na nossa atual experiência jurídica, assemelham-se a algo parecido à nefasta época do macarthismo, que perdurou durante boa parte dos anos 1950, nos Estados Unidos.

É, a meu ver, lamentável — para dizer o menos — o que tem ocorrido, no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, no âmbito do processo arbitral, relativamente a arguições absolutamente despidas de consistência, muitas vezes deduzidas depois da prolação da sentença arbitral, visando à declaração de nulidade da mesma, com fundamento na ausência de determinada revelação que deveria ter sido feita pelo árbitro.

Spacca

Já tive oportunidade de examinar esta relevante e delicada questão em mais de um artigo, nos quais defendi ser de todo adequada a inserção, dentre as causas de suspeição arroladas no artigo 145 do vigente Código de Processo Civil, a amizade íntima ou a inimizade capital entre o juiz e um dos advogados que atuam na causa.

Observei então que o advogado e o juiz, que são homens como quaisquer outros, têm sentimentos profundos. O cotidiano realmente demonstra que a formação moral e cultural dos protagonistas da Justiça culmina, de modo inexorável, interferindo no exercício da profissão.

Não são raras as ocorrências, registradas nos anais forenses, que revelam as dificuldades que emergem do relacionamento entre o juiz e o advogado de uma das partes.

É indiscutível que a amizade pessoal entre o causídico e o julgador não é, em muitas ocasiões, uma circunstância que possa ser útil ao cliente, “pois se o juiz é escrupuloso e possuidor de sólido caráter, tem tanto medo que a amizade possa inconscientemente induzi-lo a ser parcial em prol do cliente do amigo, que é naturalmente levado, por reação, a ser injusto contra ele”.

Para um juiz honesto, afirma Calamandrei, “que tenha de decidir uma causa entre um amigo e um indiferente, é preciso maior força para dar razão ao amigo do que para lhe negá-la; é preciso maior coragem para se ser justo, arriscando-se a parecer injusto, do que para ser injusto, ainda que fiquem salvas as aparências da justiça” (Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, 3ª ed., Lisboa, Clássica, 1960, pág. 159).

Como é sabido, o artigo 14 da Lei de Arbitragem preceitua que “Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil”.

Ora, isso significa que tal regra legal, nesse particular, faz expressa remissão ao diploma processual, aplicando aos árbitros os mesmos motivos de impedimento e de suspeição, previstos respectivamente nos artigos 144 e 145.

Assim, considerando o caráter preponderantemente consensual da arbitragem, verifica-se que, durante o procedimento de escolha dos árbitros, têm estes o dever de declinar absoluta isenção ao assumir o encargo para atuar de forma independente e imparcial. É esse o momento no qual os árbitros indicados têm também o dever de revelar qualquer relação, mínima que seja, com uma das partes. A inobservância do dever de revelação, de forma deliberada, já evidencia inaptidão para o exercício legítimo da função de árbitro.

Dúvida não há de que o árbitro que descumpre esse mister afasta-se da postura de impessoalidade, isto é, do dever de revelar aspecto crucial que caracteriza a pedra angular da imparcialidade.

Assim, nos domínios da arbitragem, tanto quanto no processo estatal, exige-se a imparcialidade e a independência dos árbitros como pressuposto de validade do respectivo processo.

Daí porque o parágrafo 1º do aludido artigo 14 dispõe que “As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”.

Esse conhecido critério da “dúvida justificada”, adotado pelo texto legal pátrio, segundo ensina Gary Born, deve ser analisado de forma objetiva, ou seja, “qualquer objeção em relação à imparcialidade ou independência do juiz deve fundamentar-se em provas suficientes a afastar o árbitro” (International Commercial Arbitration, vol. 1, Kluwer Law International, 2009, pág. 1.477-1.478).

Com efeito, a prerrogativa da imparcialidade do árbitro constitui uma das garantias que resultam do postulado do devido processo legal, aplicável à arbitragem, dada a sua natureza jurisdicional. A ausência de observância dessa prerrogativa ofende, diretamente, a ordem pública nacional. Ao lado desse significativo aspecto, é induvidoso que apenas se tem por válida a renúncia à garantia da inafastabilidade da jurisdição estatal quando os árbitros gozam de independência e confiança das partes.

No entanto, como tem demonstrado a nossa experiência profissional, em frequentes ocasiões, temos visto verdadeira devassa, muitas vezes sem qualquer critério sério, constante de pedidos de esclarecimentos adicionais, baseados em potenciais e imaginadas ligações próximas entre árbitro e advogado, provindas de redes sociais, de fotografias de congressos ou de bancas examinadoras, de obra coletiva etc.

É certo contudo que em determinadas circunstâncias da atividade acadêmica pode de fato haver alguma relação de hierarquia ocasional entre árbitro e advogado, a recomendar que, por exemplo, o árbitro recuse a sua indicação, dada a “dúvida justificada”, decorrente de ser ele orientado pelo advogado que exerce o magistério na academia. Foi, aliás, o que já ocorreu comigo, quando um juiz, meu aluno da pós-graduação, era por mim orientado. Nessa situação, enquanto perdurar essa relação de orientador/orientando, é de todo aconselhável que ele se afaste, por motivo íntimo, do painel arbitral. É evidente, nesta hipótese, que, encerrada a orientação, cessa a razão da suspeição!

Todo cuidado é pouco no momento da revelação, oportunidade em que o árbitro, sobretudo nos dias atuais, deve expor, dentro do possível,  com minudência, as prováveis ligações pessoais, sociais e profissionais que porventura tenha tido com as partes e com os escritórios de seus respectivos patronos, pelo menos, nos últimos três anos, como sugere o item 3.1, da Lista Laranja, das diretrizes traçadas pela IBA sobre Conflitos de Interesse na Arbitragem e que, mais recentemente, foram encampadas pelo item 10 das diretrizes do CBar.

Entendo que o escrutínio, pelos interessados, da revelação apresentada pelos árbitros deve ser feito com muita objetividade e dentro de parâmetros razoáveis. Comete inominável abuso, que pode inclusive aproximar-se da má-fé, nesse particular, a parte que exagera de forma incondizente com a ética que se espera do comportamento de todos os protagonistas do processo arbitral, como, por exemplo, o completo desvirtuamento de impugnação fundada no fato de o árbitro e o advogado terem participado de uma determinada banca examinadora; de terem escrito artigos inseridos na mesma obra coletiva; de ambos participarem de uma associação de classe, e outras alegações absolutamente frívolas e levianas, que constituem verdadeiro non sense…; a exemplo também de uma impugnação formulada contra mim, quando, para surpresa de todos, após proferida a sentença arbitral, a parte que experimentou derrota simplesmente alegou a minha parcialidade, por ter eu deixado de revelar que atuara como advogado da ex-cunhada da parte, numa questão evidentemente sem qualquer nexo, mínimo que fosse, com o objeto da arbitragem. Ademais, nesse caso, a informação do meu patrocínio era absolutamente acessível a qualquer pessoa, muito antes de instaurada a arbitragem…

São essas, a rigor, as denominadas alegações de “nulidade de algibeira”, deveras conhecidas dos comitês que são incumbidos de julgar a capacidade subjetiva do árbitro impugnado para continuar ou não exercendo a função de árbitro, bem como dos tribunais estatais, que têm, em inúmeras vezes, prestigiado a escolha do árbitro e, com isso, repudiado os argumentos infundados de parcialidade, para julgar improcedente o pedido formulado em ação anulatória da sentença arbitral.

No entanto, em algumas circunstâncias, diria, mais raras, deparamo-nos com casos que beiram a ilegalidade, como ocorreu, mais recentemente, ao ensejo do recentíssimo julgamento da Apelação nº 1038255-35.2022.8.26.0100 (14.12.2023), pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que desproveu o recurso, para confirmar a declaração de nulidade de uma sentença arbitral pelo fato de que, além de manterem contato pelas redes sociais, o árbitro e o respectivo advogado de um dos litigantes lecionavam no curso superior da mesma instituição de ensino. Esse fato não foi declinado pelo árbitro.

Antes de reproduzir parte da fundamentação do respectivo acórdão, tomo a liberdade de perguntar ao leitor se o juiz estatal que ministra aulas no mesmo curso universitário no qual o advogado também é professor, portanto, colegas de magistério, deve ser considerado suspeito para julgar determinada demanda sob o patrocínio do seu colega docente? É óbvio que não! Nada há, nesta hipótese, comum aliás, nas grandes cidades do Brasil, que implique necessidade de afastamento do magistrado, visto que não emerge de tal situação mínima “dúvida justificada”…

Importa ressaltar, a propósito, como bem escreve o meu colega de magistério Carlos Alberto Carmona, que “a jurisdição – seja qual for o órgão dela encarregado (arbitral ou judicial) – só pode ser exercida por julgador independente e imparcial” (Em torno do árbitro, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 28, 2011, pág. 55).

Reportando-me ao caso acima aludido, a sentença de primeiro grau entendeu que o árbitro único do processo arbitral omitiu a informação de que lecionava na mesma instituição de ensino do advogado da demandada, não tendo ela impugnado esse fato. Além disso, restou incontroverso que o árbitro e o advogado possuem amizade nas redes sociais e já apareceram juntos em fotos apresentadas pelos autores.

Em conclusão, assentou a sentença de primeiro grau, que, embora conste a alegação de que:

“… ‘o patrono do requerido não é amigo pessoal do arbitro, não mantem relacionamento pessoal com o mesmo, não conhece de sua vida pessoal, e nos autos não houve qualquer mácula ou interferência, sendo a questão decidida de forma técnica’, o entendimento que parece mais razoável é o de que esse fato deveria ter sido revelado, garantindo-se a oportunidade para que a parte contrária, ciente do fato, avaliasse ou não a necessidade de endereçar questionamentos ao árbitro ou até mesmo  examinasse a possibilidade de impugnar a sua atuação, na medida em que todos os participantes do procedimento arbitral devem sentir-se confortáveis…”.

Nessa idêntica linha de raciocínio, o mencionado acórdão, asseverou, ao prestigiar a sentença de primeiro grau, que:

“A relação pessoal entre o árbitro e o advogado do ora requerido como reconhecido na sentença é fato relevante e de projeção na imparcialidade exigida pela lei, e foi omitido à parte contrária mercê do descumprimento do dever de revelação instituído no parágrafo 1º do artigo 14 da Lei de Arbitragem”.

Salvo engano e com o devido respeito, há nesta equivocada decisão clara confusão entre o relacionamento profissional no âmbito do magistério do árbitro e do advogado, e um provável nexo subjetivo de interferência recíproca, a repercutir no desfecho do processo arbitral em benefício do cliente assistido pelo professor advogado.

Transplantando por hipótese esse mesmo raciocínio para as relações interpessoais de atividade docente entre juízes/desembargadores do Tribunal de Justiça bandeirante e advogados, haveria um sem número de situações nas quais o magistrado deveria declarar suspeição, afastando-se da demanda ou da turma julgadora do recurso, ideia essa de todo esdrúxula, que não pode passar pela cabeça de ninguém!

Daí porque entendemos que a impugnação do árbitro deve vingar naquelas ocorrências em que se infere um fato realmente grave, mantido em sigilo e sem acesso público, que, sob o aspecto objetivo, possa realmente gerar “dúvida justificada”, como inclusive se constata em casos relativamente recentes na jurisprudência de nossos tribunais, que acabam sendo determinantes, nos termos do 32, incisos II e VIII, c.c. artigos 14, parágrafo 1º, e 21, parágrafo 2º, da Lei nº 9.307/96, para o acolhimento do pleito de nulidade da sentença arbitral.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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