Opinião

Inelegibilidades da invasão antidemocrática do Capitólio americano e do 8 de Janeiro

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12 de janeiro de 2024, 13h21

As invasões às sedes dos três poderes em Brasília no infame dia 8 de janeiro de 2023 e ao Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, representam um fenômeno de ataques à ordem democrática e ao Estado de direito. Estes eventos, alimentados por alegações de fraude eleitoral sem fundamento, ilustram uma perigosa tentativa de deslegitimação dos processos democráticos. A história demonstra os riscos de deslegitimação da política e a formação de estado autoritários.

Transcorrido um ano dos atos golpistas de 8 de janeiro, crimes inscritos no Código Penal de abolição violenta do Estado democrático de direito e golpe de Estado, segue vívida a necessária atenção ao drástico evento. Recentemente foram revelados planos dos golpistas para a eliminação do ministro e presidente do TSE, Alexandre de Moraes, o qual declarou que a investigação identificou plano para que, em sequência ao golpe, o ministro deveria ser preso e enforcado na Praça dos Três Poderes: “para sentir o nível de agressividade e ódio dessas pessoas, que não sabem diferenciar a pessoa física da instituição” [1], comentou o ministro Alexandre de Moraes.

Blink O'fanaye/Flickr

O planejamento de brutal assassinato e exposição em praça pública do ministro do STF nos remete à expressão latina perinde ac cadaver, significando a obediência irrestrita a alguém da mesma maneira que um corpo morto, sem vontade, está sujeito ao comando alheio, como expõe Gislene Neder [2] — é o que desejavam os golpistas ao praticarem o crime de tentar, com violência ou grave ameaça de abolir o Estado democrático de direito, impedindo o exercício dos poderes constitucionais e tentar depor o governo legitimamente constituído. O plano de enforcamento é dramático, teatral, permitindo um vislumbre do regime que buscavam instalar a retomar violências, torturas e práticas autoritárias antes vistas nos regimes ditatoriais celebrados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (quem, há de se recordar, costumava exaltar e homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra [3]).

Nos Estados Unidos, a invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, foi um ato sem precedentes na história do País. Apoiadores do presidente Donald Trump tentaram impedir a certificação da vitória de Joe Biden, em meio a incessantes alegações de Trump sobre uma suposta fraude eleitoral. Embora Trump não tenha sido formalmente condenado pelo Senado no processo de impeachment, as investigações revelaram uma conduta que muitos consideraram incompatível com os padrões exigidos para a presidência. A influência de Trump nas ações violentas de seus apoiadores, conforme evidenciado em discursos e declarações antes da invasão, foi um fator crucial em sua percepção pública e na subsequente decisão de torná-lo inelegível. A decisão sobre inelegibilidade de Trump proferida por um Tribunal do estado da California fundamentou-se em disposição da Constituição americana, que proíbe aqueles que se envolveram em insurreição ou rebelião contra o poder constituído de ocupar cargos federais [4].

No Brasil, Jair Bolsonaro está inelegível. Reconhece-se que a invasão aos prédios dos três poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, foi resultado de um longo processo de provocação de uma turba antidemocrática inflamada pelo negacionismo, incitamento ao ódio e desinformação massiva, sob alegações infundadas de fraude no processo eleitoral e busca de politização das Forças Armadas e policiais. As ações de Bolsonaro durante e após seu mandato de ataques diretos e estímulos contínuos contra a ordem constitucional e a democracia, às instituições e à integridade do processo eleitoral, são elementos que denotam sua responsabilidade pelo ataque do 8 de janeiro, conforme asseverou assertivamente o ministro Gilmar Mendes [5].

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Bolsonaro enfrentou várias investigações e processos judiciais, que examinaram suas ações enquanto presidente e suas reações às eleições de 2022. Esses procedimentos abrangeram desde a disseminação de informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro até acusações de incitar a violência e desestabilizar as instituições democráticas. Estes processos, juntos, culminaram em sua inelegibilidade. São decisões que refletem uma interpretação de que suas ações representaram um risco real à democracia e à ordem constitucional do Brasil.

Vale recordar que a primeira decisão de inelegibilidade de Jair Bolsonaro foi proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral, em 29 de junho de 2023. A ação de investigação judicial eleitoral (Aije 0600814-85.2022.6.00.0000) destinou-se a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, em virtude de reunião realizada no Palácio da Alvorada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, em 18 de julho de 2022, quando utilizou o espaço e a presença de embaixadores de países estrangeiros, somando-se a transmissão pela TV Brasil e redes sociais, para finalidade eleitoreira, desviando de prerrogativas do cargo de presidente, e para difundir fatos sabidamente falsos relativos aos sistema eletrônico de votação e a empreender ataques à Justiça Eleitoral, em uma estratégia política voltada a mobilizar seu eleitorado e atentar à normalidade do pleito.

Conforme apontou o relator da ação no TSE, o ministro Benedito Gonçalves, ao alimentar conspirações contra o sistema eleitoral, Bolsonaro “estava fazendo política e estava fazendo campanha. A recusa de valor ao conhecimento técnico a respeito das urnas e a repulsa à autoridade do TSE foram manejadas como ferramentas de engajamento” [6]. Condenado pelo TSE, o ex-presidente, agora inelegível, recorreu ao STF, tendo sido negado seguimento ao recurso no último dia 5 de dezembro por decisão do ministro Alexandre de Moraes [7].

A segunda decisão de inelegibilidade pelo TSE é de 31 de outubro de 2023, quando o tribunal condenou Jair Bolsonaro e o candidato a vice-presidente, Braga Netto, por abuso de poder político e econômico nas comemorações de 7 de setembro de 2022. Da decisão, vale atentar ao voto do ministro André Ramos Tavares, que elucidou compreender do comportamento analisado que houve “um aproveitamento parasitário do dia da celebração pública e, consequentemente, um aproveitamento de boa parcela da estrutura estatal voltada à consecução das festividades para dar corpo e impulsionar o ato de campanha programado, não por acaso, para a mesma data das comemorações o Bicentenário da Independência do Brasil”.

Foi igualmente contundente o entendimento da ministra Carmen Lucia, que frisou a produção de prova que apontou para a deliberada confusão entre a função do presidente da República e interesses particulares dos candidatos da chapa para presidente e vice-presidente, ressaltando que na ocasião Jair Bolsonaro utilizou do aparato público e que “não há dúvida alguma que todo esse aparato, de espaço físico, servidores, serviços públicos, foi utilizado em benefício da campanha, e não seguindo rigorosamente o cumprimento e aquilo que seria necessário para que se tivesse a comemoração oficial e impessoal, como é próprio de uma República” [8].

É absolutamente relevante recordar a intensa violência que representaram os ataques ocorridos em 8 de janeiro de 2023 ou o ataque ao Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, os quais foram continuidade dos discursos antidemocráticos que culminaram nas decisões de inelegibilidade acima referidas. Conforme discorremos em outra oportunidade a esta Conjur [9], sobre a inelegibilidade de Bolsonaro: a tentativa de golpe de Estado levada a cabo naquela fatídica data desafia o conceito de sociedade como um conjunto de pessoas que convive de forma organizada. A invasão às sedes do Executivo, Judiciário e Legislativo foi a culminação de anos de ataques sistemáticos à democracia brasileira, discursos inflamados contra os órgãos da República, e criminalização da política, tendo sido precedida de uma tentativa de atentado com bomba na área do Aeroporto de Brasília, paralisação de rodovias, e acompanhada da derrubada de torres de transmissão de energia. Além da destruição de obras culturais brasileiras de valor inestimável e danos até agora estimados em R$ 21 milhões [10].

Estes eventos ilustram a importância crítica do Judiciário como guardião da democracia. As decisões que resultaram na inelegibilidade de Trump e Bolsonaro não são meramente respostas a atos individuais, mas expressões de um sistema jurídico empenhado em preservar a integridade das instituições democráticas. Em meio à emergência de novas formas de populismo e autoritarismo que desafiam estas instituições fundadas sobre o prisma do pluralismo e dos direitos fundamentais.

Em ambos os casos, o Judiciário teve que equilibrar a necessidade de manter a ordem constitucional com o não cerceamento de direitos políticos, punindo aqueles que são responsáveis por ilícitos contra a ordem democrática. As decisões de inelegibilidade são, portanto, profundamente simbólicas, representando um compromisso com a democracia e um repúdio a qualquer forma de autoritarismo ou desrespeito ao processo democrático. E devem ser seguidas da responsabilização penal daqueles que planejaram, conspiraram e executaram a tentativa de golpe de Estado.

As invasões ao Capitólio e aos três poderes, bem como a resposta que darão os sistemas jurídicos aos ataques à democracia promovidos por Bolsonaro e Trump, representam desafios que determinarão o futuro da governança democrática. A lição, no entanto, nos parece clara: a democracia requer vigilância constante e firmeza. O Estado democrático de direito deve ser defendido contra a insurgências de ideais autoritários, sobretudo nas hipóteses em são utilizadas as estruturas do Estado sob um verniz de legalidade para fragilizar a própria democracia. A história nos ensina que a sociedade que não responsabiliza àqueles que atentam contra a democracia, está fadada a viver novamente os ataques dos quais não se defendeu. Bem como são importantes as ações para construção de uma cultura da lembrança em relação a estes.

 


[1] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/01/04/entrevista-alexandre-moraes-stf-plano-prender-enforcar.htm

[2] Gizlene Neder, ao discorrer sobre nossas matrizes teológico-políticas conservadoras, nos lembra que um dos lemas jesuítas do século XVI, que serviu de norte ao projeto de sociedade desejado e à organização social luso-colonialista, é o perinde ac cadaver, ou seja, o “obedece como um cadáver” (Cf. NEDER, Gizlene. Cidade, identidade e exclusão social. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro,

vol. 2, n° 3, 1997, pp. 106 134).

[3] https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-afirma-que-torturador-brilhante-ustra-e-um-heroi-nacional

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/justica-do-colorado-decide-que-trump-nao-pode-disputar-primarias-no-estado/.

[5] https://www.poder360.com.br/justica/responsabilidade-de-bolsonaro-por-8-de-janeiro-e-inequivoca-diz-gilmar/.

[6] https://www.conjur.com.br/2023-jun-30/tse-maioria-tornar-bolsonaro-inelegivel-abuso-poder2/

[7] https://www.conjur.com.br/2023-dez-05/tse-nega-seguimento-a-recurso-de-bolsonaro-ao-stf-contra-inelegibilidade/

[8] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Outubro/tse-declara-inelegiveis-bolsonaro-e-braga-netto-por-abuso-de-poder-no-bicentenario-da-independencia

[9] https://www.conjur.com.br/2023-jun-11/fernandes-marchioni-tentativa-golpe-cpmi-81/

[10] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/01/06/prejuizo-com-reparos-e-destruicao-de-acervo-no-81-ja-supera-r-21-milhoes-um-quarto-das-pecas-ainda-nao-foi-restaurada.ghtml

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