Opinião

Politização dos TCMs e seus reflexos no cenário eleitoral

Autor

  • Aline Teodoro de Moura

    é doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre e graduada em Direito especialista em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professora universitária e coordenadora dos Grupos de Pesquisa Empresa Estado & Compliance e Observatório de Finanças Públicas membro da Comissão Especial Anticorrupção de Compliance e de Controle Social dos Gastos Públicos (CSGP) da OAB-RJ e diretora acadêmica do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (Ibdee).

4 de janeiro de 2024, 16h20

Mais um caso de apreciação das contas anuais pode retirar do tabuleiro político o prefeito da maior capital do país, cujo orçamento de 2023 deve ultrapassar R$ 101 bilhões. Às vésperas do encerramento do exercício, o noticiário [1] foi ocupado com o anúncio de que o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP) poderá revisar o parecer prévio das contas do prefeito Ricardo Nunes referentes ao exercício de 2021.

No centro da polêmica está o cômputo no mínimo de educação de despesas de dezembro de 2021, inscritas em restos a pagar não processados. Integrantes da gestão municipal justificaram que a medida é utilizada por estados e pela União. Já o TCM reconheceu que o processo é complexo e que a pandemia interferiu nas contas do município. As contas do prefeito referentes ao biênio 2021-2022 aguardam julgamento [2] da Câmara Municipal de São Paulo, ambas com pareceres prévios favoráveis à aprovação apreciados pelo TCM.

TCM-SP
TCM-SP

Para complicar um pouco mais, a rediscussão do parecer prévio de 2021 — no atual estágio processual — é medida aparentemente inovadora que vem à tona após o prefeito vetar [3] parte do projeto de lei proposto pelo TCM-SP para aumentar significativamente o valor máximo das multas que o órgão pode aplicar, que seria elevado de R$ 1.033 para R$ 39 mil (aumento de 3.675%). O teto em si não é exorbitante se comparado com o praticado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no valor de R$ 79 mil, fixado a partir da atualização anual com base na variação acumulada do índice utilizado para corrigir os créditos tributários da União.

A discussão sobre as contas do prefeito envolve controvérsia de natureza contábil e jurídica que mereceria passar por uma análise isenta e independente do Ministério Público especializado em contas públicas, previsto constitucionalmente para democratizar o processo e afastar possível enviesamento ou revanchismo por parte do órgão julgador.

Porém, o maior orçamento municipal do país ostenta o paradoxo de não se submeter ao exame imparcial e independente do fiscal da lei, o que abre brecha para uma série de disfunções e desvios no julgamento e apreciação de contas anuais.

Mas não é só o orçamento de São Paulo que é executado à margem do fiscal da lei: tal problema também contaminou o terreno carioca. Em 2018, por iniciativa capitaneada pelo Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCM-RJ), o Ministério Público de Contas carioca foi completamente desfigurado [4] na sua essência, a ponto de permitir que os procuradores pudessem advogar privadamente e que comissionados interviessem no processo de contas como pseudofiscais da lei, em flagrante assimetria em relação ao modelo federal exigido pela Constituição.

Ironicamente, no ano seguinte, o prefeito Marcelo Crivella foi vítima de um parecer prévio desarrazoado e desproporcional na fundamentação, com motivação visivelmente ideológica. Suas contas não foram submetidas à análise ponderada, independente e isenta de membros de carreira do Ministério Público de Contas.

Os desafios, contudo, não são de agora, remontando aos idos dos anos noventa. Embora a Constituição de 1988 tenha ampliado a esfera de competência dos tribunais de contas, os quais passaram a ser investidos de poderes mais amplos na esfera de controle externo, as duas maiores Capitais não se estruturaram adequadamente para enfrentar o desafio com desassombros.

Logo no início dos anos 1990, o TCM-SP recomendou a reprovação das contas da prefeita Luíza Erundina relativas ao triênio 1990-1992, sem que houvesse atuação independente e imparcial do fiscal da lei. Os pareceres prévios referentes aos exercícios de 1990 e 1992 foram rejeitados pela Câmara Municipal [5] e as contas julgadas regulares, enquanto o parecer prévio das contas de 1991, acatado pela Casa Legislativa, foi alvo de ação judicial, anulados os atos legislativos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão decretada em 2010. Submetidas ao TCM-SP novamente, as contas receberam parecer pela aprovação, conforme decisão proferida em março de 2023.

As contas do sucessor no quadriênio 1993-1996, prefeito Paulo Salim Maluf, não enfrentaram percalços no TCM-SP e, tampouco, na Câmara Municipal, sendo aprovadas sem embaraços, apesar do apontamento de descumprimento do mínimo constitucional de educação nos exercícios de 1995 e 1996.

Já as contas do prefeito Celso Pitta do biênio 1997-1998 receberam pareceres prévios pela aprovação, mas ficaram durante anos paradas nos escaninhos, talvez pelo fato de o prefeito ter mudado de partido em março de 1999, rompendo com seu padrinho político, o prefeito Maluf. Na sequência, as  contas do biênio 1999-2000 receberem pareceres prévios pela rejeição, sendo estas julgadas irregulares pela Câmara Municipal de São Paulo. Falecido em 2009, as contas do primeiro biênio foram arquivadas, em 2010, sem julgamento pela Casa Legislativa.

Passados 35 anos, com todos esses episódios que colocam sob suspeita a real imparcialidade dos tribunais de contas municipais, os processos de contas das duas maiores capitais são apreciados e julgados sem a participação do legítimo fiscal da lei, lançando governantes eleitos a um possível julgamento de conveniência ou arbítrio, situação que destoa da noção de devido processo legal.

Questionada a omissão do TCM-SP, o Supremo Tribunal Federal (STF) deixou a desejar, tanto no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 272, quanto na modulação dos efeitos da decisão.

A partir do julgamento do STF, o prefeito de uma cidade com poucos habitantes e orçamento inexpressivo possui mais direitos e garantias processuais do que os prefeitos das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, que congregam, juntas, quase 19 milhões de habitantes e orçamentos anuais que, somados, devem superar R$ 141 bilhões em 2023. Essa precarização do controle externo não afeta apenas as garantias dos gestores públicos, mas também as empresas que contratam com as duas maiores capitais do país.

No Rio de Janeiro, a situação é um pouco pior, porque o TCM-RJ transformou a procuradoria especial em uma mera consultoria jurídica com rótulo de fiscal da lei, que acomoda e é atualmente liderada por comissionado, que não dispõe da autonomia inerente a um Ministério Público de Contas tal como idealizado pela Constituição da República e, na prática, sujeita o cargo comissionado aos anseios dos conselheiros.

O STF não detém o monopólio do acerto e este é um tema que merece ser rediscutido, sendo oportuna a proposta de regulamentação da matéria no Projeto de Lei Complementar nº 79, de 2022, que visa à edição de normas gerais de fiscalização financeira para uniformizar o controle exercido sobre as contas públicas. Pelo artigo 29 da proposta, o Ministério Público de Contas estadual deverá emitir parecer imparcial e autônomo em todos os processos de contas enquanto o TCM-RJ e o TCM-SP não instalarem os respectivos órgãos, sendo expressamente vedada a atuação de consultoria jurídica do próprio tribunal.

Se essa previsão já estivesse em vigor, a intervenção arbitrária e inconstitucional de comissionado nas contas do prefeito Crivella não teria respaldado a motivação política que está presente nos pareceres do biênio 2019-2020 da segunda maior capital do país. Talvez, se houvesse atuação do fiscal da lei junto ao TCM-SP, os conselheiros tivessem ao menos constrangimento de cogitar a reabertura da discussão sobre matéria tratada em parecer prévio apreciado há mais de um ano e as contas já submetidas ao julgamento do Poder Legislativo.

É relevante considerar que o julgamento de contas pode resultar em medidas restritivas e sanções altamente gravosas que tocam em direitos subjetivos dos gestores, além de afetar diretamente todos aqueles que contratam com a administração pública. Nesse sentido, a definição de procedimentos que democratizem o processo de julgamento de contas contribui para um ambiente de gestão e de negócios mais previsível, seguro e competitivo, ideal da Constituição Democrática de 1988.

Nas bases propostas, o  PLP nº 79, de 2022, tem o potencial de resgatar a crença de bons gestores de que suas contas serão submetidas a um julgamento imparcial e justo, a partir da atuação autônoma do legítimo fiscal da lei. É o que os cidadãos-contribuintes anseiam e exigem das instituições republicanas que detêm essa missão constitucional.

 


[1] https://www.gazetadopovo.com.br/sao-paulo/tribunal-de-contas-aponta-pedalada-fiscal-na-gestao-ricardo-nunes-em-sao-paulo/

[2] https://www.saopaulo.sp.leg.br/biblioteca/contas/

[3] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/10/nunes-veta-aumento-a-multa-que-tribunal-de-contas-poderia-aplicar-a-sua-gestao-e-amplia-crise.shtml

[4] https://oantagonista.com.br/brasil/o-golpe-branco-dos-vereadores-cariocas/

[5] https://www.saopaulo.sp.leg.br/biblioteca/contas/

Autores

  • é doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre e graduada em Direito, especialista em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora universitária e coordenadora dos Grupos de Pesquisa Empresa, Estado & Compliance e Observatório de Finanças Públicas, membro da Comissão Especial Anticorrupção, de Compliance e de Controle Social dos Gastos Públicos (CSGP) da OAB-RJ e diretora acadêmica do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (Ibdee).

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