Opinião

O processo da África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

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1 de janeiro de 2024, 6h27

No dia 29 de dezembro de 2023 a República da África do Sul acionou a Corte Internacional de Justiça  trazendo o Estado de Israel à barra da Haia por alegações de violações à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 (doravante “Convenção contra Genocídio” ou “convenção”). Em suma, a África do Sul inicia um procedimento judicial para (a) verificar as ações cometidas por Israel em Gaza configuram violações à distintas obrigações presentes na convenção e; (b) obter uma decisão em procedimento cautelar e suspender imediatamente as ações militares de Israel em Gaza e contra Gaza.

Sabendo que os processos perante a Corte da Haia podem levar anos, um pedido durante o decorrer do conflito tem também como intuito a obtenção de uma ordem cautelar para influenciar os acontecimentos presentes. Essa parece ser inclusive uma tendência dos últimos anos em matéria de direitos humanos, como recentemente observou na UFMG a professora Serena Forlati, da Universidade de Ferrara. Nesse sentido, é possível verificar que a corte foi acionada recentemente em dois casos envolvendo a mesma convenção: no caso Ucrânia v. Rússia e no caso Gâmbia v. Myanmar. Em ambos os casos a Corte Internacional emitiu ordens cautelares demandando específicas ações dos Estados requeridos para proteger os direitos presentes na convenção.

O presente ensaio analisa tecnicamente o processo movido pela África do Sul perante a Corte da Haia à luz das regras internacionais existentes e da jurisprudência da corte sobre a matéria com a finalidade de esclarecer o significado dessa ação judicial para o conflito. Num primeiro momento (1) foca-se nas alegações da África do Sul, esmerilhando assim sua petição inicial. Em seguida, revisita-se a jurisprudência da corte em matéria de genocídio e medidas cautelares (2) buscando similaridades com a presente demanda. Por fim, conjectura-se os potenciais caminhos que a corte pode tomar envolvendo o caso.

 1. As alegações da África do Sul e os requisitos procedimentais da corte
Em sua petição inicial (application), a África do Sul argumenta que Israel estaria violando a Convenção contra Genocídio, entre outras alegações, por não agir para impedir a realização de um genocídio, por conspirar para a realização de um genocídio e por impedir a investigação e a punição de um genocídio, nos termos dos artigos I, II, III, IV, V e VI da convenção [1]. Segundo o documento sul-africano, “os atos e omissões de Israel denunciados pela África do Sul são de caráter genocida porque têm a intenção de destruir uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino, que é a parcela do grupo palestino situado na Faixa de Gaza”. Dentre as diferentes fontes que mobiliza para fundamentar seus argumentos, a África do Sul utiliza declarações de diferentes países e chefes de Estado (inclusive do Brasil) para configurar o genocídio. Contudo, na hipótese do caso proceder, cada ato precisará ser analisado isoladamente nos termos da Convenção de Genocídio para verificar uma violação, demandando um alto ônus probatório de ambas as partes.

Alguém poderá se questionar: por que a África do Sul moveu o processo e qual sua legitimidade processual para fazê-lo? Não seria mais óbvio um processo movido pelo Estado da Palestina contra Israel em que ambas as portes poderiam trocar as recíprocas acusações?

Embora esta última possibilidade exista, as obrigações jurídicas presentes na Convenção contra o Genocídio são obrigações de uma natureza única no direito internacional, qual seja, obrigações de caráter erga omnes partes. Em outras palavras, são obrigações devidas a todas as outras partes da convenção e cujos interesses jurídicos são de todos os membros da convenção em salvaguardar. Como a própria corte observou em 2022: são obrigações “no sentido de que cada Estado Parte [da Convenção] tem interesse em cumpri-las em qualquer caso” de modo que isso “implica que qualquer Estado Parte [da Convenção], sem distinção, tem o direito de invocar a responsabilidade de outro Estado parte por uma suposta violação de suas obrigações erga omnes partes” [2]. Desse modo, verificadas supostas violações à convenção, qualquer Estado que é parte na convenção — inclusive o Brasil — teria legitimidade para acionar um outro Estado, ou ainda, vir a intervir no procedimento por dela ser parte e ter interesses em sua interpretação.

O pedido da África do Sul não visa apenas a discussão das obrigações da convenção, mas requer também, a título de medidas cautelares, que uma série de atos sejam realizados por parte de Israel. Dentre eles, estão (1) que Israel suspenda suas atividades militares em Gaza; (2) que Israel garante que qualquer ação militar ou grupos militares irregulares cessem suas atividades; (3) que todas as medidas à disposição do Estado de Israel para prevenir um genocídio sejam tomadas. Ou seja, há uma clara intenção por parte da África do Sul em encerrar a ofensiva israelense com o objetivo que não danificar os direitos protegidos na convenção, confirmando portanto a dupla intenção da ação.

1. A jurisprudência da Corte Internacional em matéria de genocídio e medidas cautelares
Em virtude do Artigo IX da Convenção contra Genocídio, a Corte Internacional de Justiça é o órgão judicial responsável por dirimir controvérsias envolvendo sua aplicação e interpretação da convenção. A corte já emitiu uma importante opinião consultiva detalhando a importância da convenção e fez diversas pronúncias sobre a natureza das obrigações nela presentes. Ademais, dois casos contenciosos já chegaram à fase de mérito e obtiveram decisões finais: o caso Bósnia v. Sérvia, no qual a corte entendeu que a Sérvia falhou na prevenção do genocídio conduzido por milícias em seu território; e o caso Croácia v. Sérvia, no qual a Corte entendeu que um genocídio não ocorreu, apesar do importante voto dissidente do juiz e professor Antônio Augusto Cançado Trindade.

As lições de casos anteriores demonstram que não se pode perder de vista que os tempos da justiça internacional são tão morosos quanto o da justiça interna e um caso como este pode levar até mesmo a uma divisão no interior da corte (composta por 15 juízes de diferentes nacionalidades, origens e percepções do direito internacional). A petição sul-africana é o início de um longo processo. Nos dois casos em que terminou de julgar alegações da violação da convenção, a Corte Internacional de Justiça levou mais de dez anos para emitir uma decisão final, com diversos incidentes processuais no decorrer do processo.

Isto porque a configuração de jurídico ocorre quando um padrão probatório particularmente alto é atingido. Além de cometer atos de violência específicos contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, o genocídio enquanto figura jurídica exige uma vontade especial de eliminação, total ou parcial, do grupo em questão, nos termos do Artigo II da convenção. Como a própria corte já estabeleceu no passado, a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal “é a característica essencial do genocídio, que o distingue de outros crimes graves. Ele é considerado um dolus specialis, ou seja, uma intenção específica, que, que, para que o genocídio seja estabelecido, deve estar presente além da intenção exigida para cada um dos atos individuais envolvido”.

No último caso em que a corte julgou, envolvendo a Croácia v. Sérvia de 2015, a Corte Internacional foi particularmente exigente no momento de verificar o dolo especial. Por consequência, concluiu que a Croácia havia falhado na demonstração e prova do dolo especial, apesar dos atos cometidos estarem previstos na convenção, faltava o elemento volitivo de destruição do grupo, que não poderia ser meramente inferido dos atos. No caso Gâmbia v. Myanmar, ainda sem julgamento perante a corte, parece contribuir para o caso o fato de que existe relatórios de uma missão especial de fact-finding do Conselho de Direitos Humanos da ONU que já atestou o intento genocida pode ser particularmente relevante.

Contudo, a estratégia sul-africana parece estar em linha com outros processos recentes perante a corte em que a convenção foi invocada que buscaram uma ordem provisória para a cessação das violações da convenção em caráter de urgência. Nesses casos, como a Corte precisa apenas satisfazer que ela teria jurisdição prima facie, que existiria um risco de dano, urgência e que os direitos violados são plausíveis, a Corte Internacional poderia emitir uma ordem com requisitos processuais menos rigorosos que a prova de um genocídio no escopo de ordenar qualquer abstenções de ações que poderiam configurar violações da Convenção contra o Genocídio. Nesse sentido, precedente relevante parece ser também o caso da Ucrânia v. Rússia, cuja medida provisória foca menos na necessidade de intento genocida, mas sim no risco de violação aos direitos protegidos na convenção [3].

3. O que esperar do processo perante a Corte Internacional de Justiça?
Pode-se ler a ação sul-africana também como uma tentativa de uma rápida obtenção por parte da Corte da Haia de uma ordem de cessação de atos beligerantes por parte de Israel. Essa medida judicial poderia servir para exercer maior pressão internacional, também jurídica, para uma cessação das hostilidades, inclusive levando as partes para a mesa de negociação.

Obviamente são muitos requisitos processuais que precisam ser preenchidos e a urgência do caso levará à Haia nas próximas semanas uma série de argumentos jurídicos complexos na tentativa de conduzir o pedido sul-africano ao êxito.

Caso a corte verifique que tenha jurisdição sobre a controvérsia (algo que nem sempre é óbvio na jurisprudência da corte), iniciar-se-á um longo processo de discussão da existência ou não de um genocídio e de outras violações da convenção.

O procedimento na corte pode tomar uma série de caminhos e tentar prever com precisão o comportamento judicial em casos de alta complexidade nem sempre torna-se um exercício frutífero. Contudo, dada a jurisprudência recente de matéria, algumas questões emergem e outras situações podem ser conjecturadas.

Uma primeira questão que surge envolve a participação ou não de Israel nos procedimentos, que tende a fazer toda a diferença em matéria de defesas e justificativas. Israel teria ocasião de apresentar suas defesas processuais e substanciais, como, por exemplo, contestar a própria jurisdição da corte e contestar a existência de uma “controvérsia” entre África do Sul e Israel envolvendo a convenção. Outra questão mais complexa, envolve os limites da legítima defesa no direito internacional, que também poderia surgir.

Uma segunda questão procedimental seria se no presente caso também se verificará a tendência de intervenção de terceiros Estados, como aconteceu nos casos da Rússia e de Myanmar. Não é claro quais são os Estados que terão a vontade de participar processualmente no debate. Embora possa-se imaginar pelo menos uma participação da Palestina nos procedimentos, será interessante verificar quais Estados efetivamente irão participar do procedimento e quais serão os argumentos invocados, tanto no sentido de alegar a existência de violações quanto de manter o alto standard probatório para configuração de genocídio.

Ao mesmo tempo que a gravidade da situação em Gaza conclama ações internacionais, o devido processo legal deve ser respeitado em virtude da gravidade das acusações realizadas. Como mencionado, na jurisprudência da Corte Internacional um Estado jamais foi efetivamente condenado por conduzir ativamente um genocídio.

A corte é guiada pelo princípio do contraditório e pode-se supor que uma instituição judicial, norteada pela imparcialidade e independência pretorianas, não deseja ser percebida como dotada de predições. Isso significa que a participação de Israel e a oitiva de seus argumentos constitui um ponto fundamental para o processo diante da corte. Talvez possa-se esperar da corte algo similar aos casos anteriores: uma ordem em medida cautelar, ou seja, temporária enquanto durar o processo e buscando salvaguardar os direitos pendente lite, ordenando a abstenção de atos que possam lesionar os direitos protegidos na Convenção contra o Genocídio.

Embora existam críticas à mobilização da Corte Internacional meramente com finalidades cautelares em casos envolvendo violações de direitos humanos, esta tendência para se consolidar na jurisprudência da Haia — e o caso da África no Sul não parece ser exceção. Ademais, é importante a existência de um órgão judicial que possa decidir ou não sobre a existência de um genocídio, evitando a apropriação da expressão por discursos políticos. Se de algum modo contribuir para evitar o agravamento de conflitos e que os direitos das partes sejam preservados, a Corte Internacional de Justiça estará exercendo seu importante papel como principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas e, portanto, da própria proteção de direitos reconhecidos pela comunidade internacional.

 


[1] Sobre a Convenção contra o Genocídio existe ampla literatura a respeito. Nesse sentido ver o recente TAMS, Christian; BERSTER, Lars; SCHIFFBAUER, Bjorn. The Genocide Convention: Article-by-Article Commentary. Bloomsbury Publishing, 2023; GAETA, Paola. The UN Genocide Convention: A Commentary. Oxford University Press, 2009. Ver também CANEDO, Carlos. O Genocídio como Crime Internacional. Del Rey, 1999.

[2] Sobre o tema, ver ROCHA, A. L. O. A Legitimidade processual perante a Corte Internacional de Justiça: o caso do genocídio Rohingya e os efeitos processuais das obrigações erga omnes partes. In: LIMA, L. C. (Org.); ROCHA, A. L. O. (Org.). Cadernos de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2023. v. 2. pp. 71-118.

[3] Sobre essa decisão ver LIMA, Lucas Carlos. As medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça no caso entre Ucrânia e Federação Russa. Revista de Direito Internacional, Vol. 19, 2022, pp.32-38.

Autores

  • é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais UFMG/CNPq e co-organizador da obra A Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça.

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