Opinião

Caso África do Sul contra Israel: o TIJ insta Israel a evitar genocídio em Gaza

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15 de março de 2024, 17h25

Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) emitiu um despacho indicando medidas provisórias no processo que opõe a África do Sul a Israel relativo à Aplicação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio na Faixa de Gaza.

Este despacho surge na sequência do recurso de 29 de dezembro apresentado ao tribunal pela África do Sul contra Israel relativamente aos seus alegados incumprimentos das obrigações decorrentes da Convenção sobre Genocídio na Faixa de Gaza.

O recurso era acompanhado de um pedido de indicação de medidas provisórias, no qual a África do Sul solicitava ao tribunal que indicasse com urgência, na pendência da sua decisão sobre o mérito, uma série de nove medidas provisórias respeitantes à população palestiniana em Gaza.

Foi quase por unanimidade entre os juízes que o tribunal considerou que estavam reunidas as condições jurídicas para a indicação de medidas provisórias, nomeadamente que era plausível que estivesse a ser cometido um genocídio em Gaza, indicando seis medidas, com exceção da mais central solicitada pela África do Sul, a saber a suspensão imediata das operações militares.

No entanto, em 16 de fevereiro de 2024, rejeitou o pedido adicional da África do Sul contra Israel, que tinha anunciado uma ofensiva em grande escala contra a cidade de Rafah, na Faixa de Gaza, considerando que o Estado judeu tinha de cumprir as medidas já ordenadas.

Longa história de solidariedade entre África do Sul e Palestina

O despacho do TIJ foi emitido num contexto de relações historicamente complexas entre a África do Sul e Israel. Durante a era do apartheid — um sistema de segregação racial estabelecido em 1948 na África do Sul — Israel foi um dos poucos países a ter relações diplomáticas com o governo sul-africano da época, o que levou à desaprovação de muitos países, mas também dos palestinianos.

Após o fim do apartheid em 1994, as relações entre os dois Estados deterioraram-se. Embora a África do Sul tenha sido um dos primeiros países a reconhecer o Estado de Israel quando este foi criado em 1948 após o genocídio dos judeus, enquanto nação que tinha lutado pela igualdade e pela dignidade humana, adotou posteriormente uma postura mais crítica devido às suas políticas em relação aos palestinianos, incluindo os colonatos israelitas na Cisjordânia e a construção do muro de separação.

Expressou frequentemente o seu apoio aos palestinianos e ao seu direito à autodeterminação, chegando ao ponto de etiquetar repetidamente Israel como um regime de apartheid, devido às semelhanças percebidas entre o tratamento dispensado por Israel aos palestinianos e o sistema de apartheid que existia na África do Sul.

Este apoio manifestou-se recentemente de múltiplas formas, o que acentuou ainda mais as tensões entre os dois Estados. Em 17 de novembro de 2023, a África do Sul foi um dos cinco Estados membros do Tribunal Penal Internacional que denunciaram ao Procurador a situação na Palestina, juntamente com o Bangladesh, a Bolívia, as Comores e o Djibuti.

Em 20 de novembro, em resposta aos bombardeamentos contínuos de Israel na Faixa de Gaza, o embaixador israelita em Pretória foi chamado de volta. Em 21 de novembro, a Assembleia Nacional sul-africana votou, com 248 votos a favor e 91 contra, uma moção para o encerramento da embaixada israelita até ser alcançado um cessar-fogo, bem como para a suspensão das suas relações diplomáticas com Telavive e a retirada dos seus diplomatas em sinal de protesto.

Imagem aérea de ataque de soldados israelense a palestinos que tentavam pegar mantimentos

Na sequência de tais atos, a ação judicial iniciada em 29 de dezembro pela África do Sul corresponde a uma estratégia de lawfare, que consiste em mobilizar o direito e as instituições jurídicas no contexto de conflitos geopolíticos ou militares.

Trata-se de uma estratégia que tendeu a acentuar-se nos últimos anos, como se viu, em particular, com as ações judiciais intentadas pela Ucrânia contra a Rússia junto do TIJ e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Além disso, esta ação judicial corresponde também a uma estratégia de defesa dos valores fundamentais da comunidade internacional ou de “humanização do direito internacional”, segundo a expressão cunhada pelo antigo juiz brasileiro do TIJ, Cançado Trindade, que visa colocar a pessoa humana no centro do sistema jurídico internacional.

Os casos que opõem o Canadá e os Países Baixos à Síria ou a Gâmbia a Myanmar, iniciados por Estados não diretamente lesados, ilustram tal estratégia de proteção dos indivíduos no seu território nacional no seu direito de não serem submetidos à tortura ou ao genocídio, duas normas reconhecidas pelo TIJ como imperativas (ou de jus cogens).

No caso da Palestina, esta aderiu à Convenção sobre o Genocídio em 2014 e é um Estado que, apesar de não ser parte no Estatuto do TIJ, foi admitido a comparecer perante o Tribunal, o que lhe permitiu interpor um recurso em 2018 contra os Estados Unidos no âmbito da Transferência da Embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém, com o objetivo de contestar esta medida, que equivale a um reconhecimento implícito de Jerusalém como capital de Israel, em violação das resoluções pertinentes das Nações Unidas. Contudo, a situação em Gaza é tão alarmante que foi a África do Sul quem assumiu a tocha da justiça internacional.

Rreconhecimento pelo TIJ da sua competência prima facie

No seu despacho de 26 de janeiro de 2024, o tribunal começa por recordar o contexto particular em que o caso lhe foi submetido. Pois, o processo foi iniciado em Haia numa altura em que prosseguiam os bombardeamentos israelitas na Faixa de Gaza em resposta aos atentados perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro, que resultaram na morte de 1.200 israelitas e estrangeiros no sul de Israel, milhares de feridos e a tomada como reféns de 240 pessoas, muitas das quais ainda se encontram em cativeiro.

Por sua vez, a operação militar em grande escala lançada em resposta por Israel na Faixa de Gaza teve um pesado impacto:

informações recentes indicam que 25 700 palestinianos foram mortos, mais de 63 000 outros ficaram feridos, mais de 360 000 habitações foram destruídas ou parcialmente danificadas e cerca de 1,7 milhões de pessoas foram deslocadas no interior de Gaza” (§46). O tribunal afirma estar “plenamente consciente da escala da tragédia humana que se está a desenrolar na região e ter sérias preocupações com as vítimas e o sofrimento humano que continua a ser deplorado” (§13).

Depois de ter recordado o contexto do caso, o tribunal refere que só pode indicar medidas provisórias se “as disposições invocadas pelo recorrente parecerem, prima facie, constituir uma base sobre a qual a sua competência pudesse ser fundada”, sem necessidade, nesta fase, de verificar a sua competência quanto ao mérito do caso (§15).

Deve notar-se que a África do Sul e Israel ratificaram a Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio, respetivamente em 1998 e 1950, e que nenhum deles emitiu reservas a qualquer disposição do texto.

A cláusula compromissória do artigo IX, em particular, indica que quaisquer diferendos que possam existir entre as partes contratantes, quanto à interpretação, aplicação ou execução desta Convenção, poderão ser submetidos ao TIJ, a pedido unilateral de qualquer parte na disputa.

Assim, o âmbito do caso é necessariamente restringido por esta base de competência (§14), excluindo outros aspetos das hostilidades atualmente em curso, em especial possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Quanto à existência de um litígio, ou seja, de “um desacordo sobre um ponto de direito ou de facto, uma contradição, uma oposição de teses jurídicas ou de interesses” entre as partes (TPJI, Concessões Mavrommatis na Palestina, acórdão de 30 de agosto de 1924, p. 11), o tribunal observa, a propósito das acusações de genocídio da África do Sul e das recusas de Israel, que os pontos de vista claramente opostos expressos pelos dois estados constituem um diferendo.

Consequentemente, confirma a sua competência prima facie ao abrigo do artigo IX da Convenção sobre o genocídio (§§31-32).

Quanto à legitimidade da África do Sul para intentar uma ação, que Israel não contestou, o tribunal recorda, como o fez no caso relativo à Aplicação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Gâmbia c. Myanmar) (acórdão de 22 de julho de 2022, §§107-108), que todos os estados partes na Convenção sobre o genocídio têm “um interesse comum em garantir que o genocídio seja prevenido, reprimido e punido”.

Este interesse comum implica obrigações erga omnes partes, ou seja, obrigações devidas por qualquer Estado parte a todos os outros Estados partes. Portanto, tal como qualquer Estado parte, a África do Sul “pode invocar a responsabilidade de outro Estado Parte, em particular através da interposição de um recurso perante o Tribunal, com vista a estabelecer o alegado incumprimento deste último das obrigações erga omnes que lhe incumbem” (§33).

Quanto aos direitos cuja proteção é solicitada e o vínculo entre esses direitos e as medidas solicitadas, o tribunal recorda que o seu poder de indicar medidas provisórias visa salvaguardar, na pendência de uma decisão sobre o mérito, os direitos reivindicados por cada uma das partes.

Assim sendo, tal como no caso das Alegações de Genocídio no âmbito da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Ucrânia c. Federação Russa) (despacho de 16 de março de 2022, §§50-51), o tribunal só pode exercer este poder se os direitos que o requerente pretende proteger forem plausíveis e se existir uma ligação entre esses direitos e as medidas provisórias solicitadas.

Sendo o genocídio entendido como atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo como tal, o TIJ considera que “os palestinianos parecem constituir um ‘grupo nacional, étnico, racial ou religioso’ distinto” e, portanto, um grupo protegido pela Convenção sobre o Genocídio (§45).

O tribunal toma nota das consequências dramáticas da operação militar conduzida por Israel, que levou à destruição generalizada de Gaza após o ataque de 7 de outubro de 2023. Toma também nota das numerosas declarações de responsáveis israelitas podendo ser interpretadas como alimentando uma retórica que é “visivelmente genocida e desumanizante” (§53).

Consequentemente, o tribunal considera que pelo menos alguns dos direitos cuja proteção é reivindicada pela África do Sul são plausíveis.

É o caso do direito dos palestinianos em Gaza de serem protegidos contra atos de genocídio (…) e do direito da África do Sul de exigir que Israel cumpra as suas obrigações ao abrigo da Convenção” (§54). Além disso, considera que existe, de facto, “uma ligação entre os direitos reivindicados pela requerente, que o Tribunal considerou plausíveis e pelo menos algumas das medidas provisórias solicitadas” (§59).

Por último, quanto às condições de risco de prejuízo irreparável e de urgência que determinam a indicação de medidas provisórias, o tribunal baseou-se nas declarações de vários altos responsáveis e agências das Nações Unidas que exprimiram a sua profunda preocupação com a situação em Gaza para considerar que há efetivamente “urgência, no sentido de que existe um risco real e iminente de que seja causado ​​ um prejuízo irreparável aos direitos que considerou plausíveis, antes de tomar a sua decisão final” (§74).

A este respeito, o tribunal admite que, embora certas medidas tomadas por Israel — nomeadamente para melhorar as condições de vida em Gaza ou para instaurar processos penais contra aqueles que apelam a ataques deliberados contra a população civil — devam ser encorajadas, estas não são suficientes para eliminar o risco de prejuízo irreparável ​​(§73).

Indicação de medidas provisórias por quase unanimidade

Cumpridas as condições para a indicação de medidas provisórias, a questão mais importante para o tribunal era a de saber quais medidas indicar na pendência da sua decisão final. Sobre este ponto, o tribunal especifica que as medidas a indicar não têm necessariamente de ser idênticas às solicitadas (§77).

Antes de indicar medidas, o tribunal também recorda, num notável obiter dictum inserido no final da sua análise, que “todas as partes no conflito na Faixa de Gaza [incluindo, portanto, o Hamas] estão vinculadas pelo direito internacional humanitário”, apelando simultaneamente à libertação imediata e incondicional dos reféns ainda detidos (§85).

Na parte dispositiva (§86), o tribunal indica seis medidas provisórias por quase unanimidade, o que confere um peso considerável ao seu despacho.

Por 15 votos a favor e dois contra (juíza Sebutinde e juiz ad hoc Barak), o tribunal indica: que Israel deve tomar todas as medidas ao seu alcance para impedir a prática de atos genocidas contra os palestinianos de Gaza; que deve assegurar que o seu exército não cometa quaisquer atos genocidas; que deve tomar medidas efetivas para prevenir a destruição e garantir a preservação das provas relativas aos alegados atos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Convenção sobre o Genocídio; e que deve apresentar ao tribunal um relatório sobre todas as medidas tomadas para implementar este despacho no prazo de um mês.

Além disso, por 16 votos a favor e um contra (juíza Sebutinde), o tribunal indica ainda: que Israel deve tomar todas as medidas ao seu alcance para prevenir e punir o incitamento direto e público à prática do genocídio contra os palestinianos da Faixa de Gaza; e que deve sem demora tomar medidas efetivas para permitir a prestação dos serviços básicos e da ajuda humanitária urgentemente necessários.

A quase unanimidade pela qual o despacho do tribunal foi adotado é tanto mais admirável quanto o conflito, que está no cerne deste caso, é particularmente fraturante. É de assinalar que, uma vez que o tribunal não dispõe de um juiz da nacionalidade de uma ou outra das partes no litígio, cada uma delas fez uso do direito de nomear um juiz ad hoc. A África do Sul designou assim o sr. Moseneke e Israel, o sr. Barak.

Além de 14 dos 15 juízes permanentes do tribunal, incluindo a presidente do tribunal, a sra. Donoghue, de nacionalidade americana, o juiz ad hoc israelita Barak também decidiu a favor de duas medidas. Na sua opinião separada, ele critica a iniciativa judiciária sul-africana em detrimento do diálogo diplomático, apoia a ausência de intenção genocida, afirmando simultaneamente o seu apego aos imperativos humanitários e lamentando a abordagem errônea do tribunal:

“A abordagem do Tribunal abre a porta a que os Estados utilizem indevidamente a Convenção sobre o Genocídio para limitar o direito de legítima defesa, em especial no contexto de ataques cometidos por grupos terroristas.”

Por seu lado, a juíza ugandesa destaca-se por ter sido a única a votar contra todas as medidas propostas, considerando que o litígio em causa é puramente político e que o tribunal não tem competência para se pronunciar sobre esta matéria, o que exprimiu na sua opinião dissidente nos seguintes termos:

o diferendo entre o Estado de Israel e o povo da Palestina é essencial e historicamente político, apelando a uma solução diplomática ou negociada e à aplicação de boa-fé de todas as resoluções pertinentes do Conselho de Segurança por todas as partes envolvidas, com vista a encontrar uma solução permanente que permita a coexistência pacífica dos povos israelita e palestiniano.

Embora as medidas indicadas pelo tribunal sejam semelhantes às do seu despacho de 2020 proferido no caso Gâmbia c. Myanmar, existem algumas diferenças notáveis. Assim, de forma mais explícita do que anteriormente, o tribunal solicita que sejam tomadas todas as medidas necessárias para prevenir e punir o incitamento direto e público ao genocídio e que sejam implementadas medidas imediatas e efetivas em termos de ajuda humanitária.

Do mesmo modo, embora tenha sido solicitado a Myanmar que apresente um relatório no prazo de quatro meses sobre as medidas adotadas para aplicar o despacho do tribunal (e depois de seis em seis meses até que o tribunal tomasse a sua decisão final no caso), este prazo é de apenas um mês para Israel.

Por outro lado, é de notar que o tribunal não ordenou a primeira das medidas solicitadas pela África do Sul, nomeadamente que Israel suspendesse imediatamente as suas operações militares em e contra Gaza. Assim, o tribunal não indicou um cessar-fogo, como o fez no seu despacho de 2022 emitido no caso Ucrânia c. Rússia onde, com a mesma base de competência constituída pela cláusula de arbitragem do artigo IX da Convenção sobre o Genocídio, indicou que a Rússia devia suspender imediatamente as operações militares iniciadas em 24 de fevereiro de 2022 em território ucraniano.

O tribunal não explica por que razão considera que um despacho de cessar-fogo não seria adequado neste caso. É verdade, contudo, que o caso Ucrânia c. Rússia é substancialmente diferente do caso África do Sul c. Israel, não sendo o Hamas um Estado parte no processo e não alegando a África do Sul que a resposta israelita seria baseada numa interpretação errônea da Convenção sobre o Genocídio.

Apesar de o tribunal ter recordado que as medidas provisórias têm “carácter vinculativo e, por conseguinte, criam obrigações jurídicas internacionais para qualquer parte a quem são dirigidas” (§83), estas não são executórias, pelo que a sua aplicação depende da boa-fé dos Estados.

Seja como for, neste caso como noutros — e enquanto decorreram de 19 a 26 de fevereiro as audiências perante o TIJ relativamente ao seu parecer consultivo sobre as Consequências Jurídicas Decorrentes das Políticas e Práticas de Israel no Território Palestiniano Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental — a justiça internacional terá de ser acompanhada de esforços diplomáticos contínuos para alcançar uma paz duradoura.

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