Processo Tributário

Aplicação de precedentes e a (im)possibilidade de reformatio in pejus

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18 de fevereiro de 2024, 8h00

Conforme já exposto em artigo anterior [1], as discussões das grandes teses tributárias acabam sempre sedimentadas por meio de precedentes firmados em julgamentos de recursos (especial e extraordinário) representativos de controvérsia, dotados de efeito vinculativo obrigatório, diante do que prescreve o artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil. [2]

Todavia, pode ocorrer antinomia entre a imperiosa observância ao sistema de precedentes e o princípio da vedação à reformatio in pejus, pelo qual é proibido julgamento de recurso de forma a agravar a situação do recorrente, tratando-se de “princípio recursal não expressamente previsto no ordenamento, mas aceito pela quase generalidade dos autores” [3].

Nos parágrafos que seguem será demonstrado, de forma prática, uma das hipóteses em que referida antinomia pode se fazer presente, bem como refletir sobre a cogente vinculação do recorrente ao precedente vinculante, mesmo que sob o aspecto da fundamentação piore a sua situação.

Exemplos
Imagine que um contribuinte ajuíza ação buscando afastar cobrança de um tributo X por entendê-lo inconstitucional e subsidiariamente alega que, ao menos, sua base de cálculo ilegalmente inflada merece ser alterada de forma a implicar uma redução no valor total do tributo cobrado.

Na segunda instância (tribunal local) é proferido acórdão julgando procedente apenas o pedido subsidiário, ou seja, reconhece que a base de cálculo do tributo X está ilegalmente inflada. O contribuinte, por sua vez, dá-se por satisfeito com o resultado obtido com o provimento da tese subsidiária e não interpõe recurso.

O ente tributante, sucumbente, apresenta recurso especial e extraordinário, que são sobrestados nos termos do artigo 1.037, II do Código de Processo Civil/2015 [4], em razão do tema ter sido afetado por repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal.

Ato contínuo, o leading case é julgado e o STF entende que o tributo X é inconstitucional, ou seja, vence a primeira questão cogitada na exordial do processo sobrestado, mais ampla e benéfica ao contribuinte, mas que no caso concreto sugerido não foi objeto de recurso.

Para este caso específico, em que o acórdão só foi objeto de recurso pelo ente tributante, seguindo-se o primado da vedação à reformatio in pejus, manter-se-ia o acórdão que afastou apenas a base de cálculo ilegalmente inflada, de forma a não piorar a situação processual do único recorrente, ou seja, não se aplicaria o precedente vinculante.

Todavia, a sistemática de observância aos precedentes obrigatórios, notadamente nos termos do que determina o artigo 927, III [5], 1.030, II [6], 1.040, II [7] do Código de Processo Civil/2015, exorta novas reflexões sobre os limites de aplicabilidade do princípio da vedação à reformatio in pejus. Isto porque, esses dispositivos impõem a aplicação do que foi decidido no leading case, o que significa, no caso sugerido, que prevaleça a questão mais ampla invocada pelo contribuinte em sua exordial.

Ante a incorporação no direito brasileiro do princípio da observância obrigatória dos precedentes vinculantes (princípio do stare decisis), cuja finalidade precípua é dar tratamento isonômico a todos os jurisdicionados que discutem a mesma questão fático-jurídica, não parece haver mínimo espaço para deixar de aplicar o precedente obrigatório sob a alegação de vedação do reformatio in pejus.

O CPC de 2015 assume, de forma contundente, a obrigação da aplicação dos precedentes vinculantes aos casos em trâmite, por isso, inclusive, determina a suspensão dos processos pendentes que tenham como objeto a mesma questão afetada, isso para que, ao final, a mesma tese do caso pinçado como leading case seja replicada em todos os processos pendentes e futuros que com ele mantenham identidade.

Com a integração de novas regras no sistema processual que preconizam novos valores a serem materializados na resolução dos casos postos para solução em ambiente judicial, há que se reconhecer a necessidade de se revisitar o prestígio dado à absoluta vedação ao reformatio in pejus, quiçá reconhecer sua transposição quando se está no contexto de julgamento de caso submetido ao rito dos precedentes vinculantes, caso contrário a evolução pretendida na prática da aplicação dos precedentes vinculantes soçobrará.

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[1]https://www.conjur.com.br/2022-mar-27/processo-tributario-impugnacao-negativa-seguimento-recurso-excepcional

[2]Sobre a evolução legislativa para assegurar o respeito aos precedentes:  https://www.conjur.com.br/2022-jan-16/processo-tributario-possivel-falar-precedente-materia-tributaria-stf-volatil

[3] DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil – v. 3: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 18. ed. Salvador: JusPODIVM, 2021. p. 188

[4] Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036 , proferirá decisão de afetação, na qual:

II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional;

[5] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

[6] Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:

II – encaminhar o processo ao órgão julgador para realização do juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir do entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça exarado, conforme o caso, nos regimes de repercussão geral ou de recursos repetitivos;

[7] Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:

II – o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a orientação do tribunal superior;

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