Paradoxo da Corte

Ação rescisória, advogado que não foi parte e perda dos honorários

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

    View all posts

3 de maio de 2024, 8h00

Em decorrência de imperativos de natureza técnica e política, no que toca aos limites subjetivos, a sentença e a coisa julgada devem projetar eficácia exclusivamente entre as partes litigantes.

Todo aquele que não atua no processo na condição de sujeito parcial (parte) é considerado terceiro. Não integrando o contraditório, não é titular dos poderes, faculdades, ônus, deveres e sujeição próprios das partes.

Ora, por não terem sido protagonistas dos atos que precedem e preparam o julgamento final, os terceiros não podem sofrer os efeitos da sentença de mérito e muito menos se vincularem à coisa julgada material.

A tradicional regra da limitação subjetiva da coisa julgada vem consagrada, na legislação brasileira, no artigo 506 do Código de Processo Civil: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”.

Tenha-se presente que este dispositivo passou por inúmeras vicissitudes durante o processo legislativo. Inicialmente, no Anteprojeto e nos sucessivos Projetos a redação continuava sendo a mesma do velho artigo 472, no sentido de que a sentença não pode acarretar benefício e tampouco pode prejudicar terceiros.

Pela compreensão do equívoco que tal disposição continha, o legislador, em algum momento da tramitação do Projeto na Câmara dos Deputados, acolheu sugestão que formulei, de modo insistente, visto não existir qualquer dúvida de que a eficácia da sentença transitada em julgado, em muitas situações, beneficia terceiros. O que o sistema processual não admite é o prejuízo a terceiro, simplesmente porque não participou ele do contraditório.

Assim, não é preciso enfatizar que o potencial prejuízo experimentado por um terceiro advindo de uma decisão judicial transitada em julgado, ofende por certo a garantia do devido processo legal e, portanto, é ineficaz à esfera de direitos daquele estranho ao processo.

Bom exemplo

Um bom exemplo é extraído da ação que visa à anulação de ato de deliberação societária ajuizada por um acionista. Julgado procedente o pedido, a autoridade da coisa julgada atinge apenas as partes do processo, mas a eficácia da sentença a todos beneficia. Improcedente o pedido, a sentença torna-se imutável entre as partes, mas é de todo indiferente em relação aos demais acionistas, que não são atingidos pelo julgado.

Spacca

Ocorre que a interdependência das relações negociais e a complexidade do comércio jurídico acabam rompendo as fronteiras do denominado princípio da relatividade da coisa julgada e, com isso, torna-se inexorável a projeção, ainda que por via reflexa, dos efeitos da decisão e, às vezes, em caráter excepcional, da própria expansão da autoridade da coisa julgada a terceiros.

É dizer: em determinadas circunstâncias, todavia, diante da posição do terceiro na relação de direito material, bem como pela natureza desta, a coisa julgada pode atingir quem não foi parte no processo.

Os limites subjetivos da coisa julgada — os quais se destinam a definir quais sujeitos estão impedidos de  discutir novamente provimentos judiciais definitivos — não se confundem com os efeitos legítimos  que  a sentença pode irradiar sobre terceiros que, embora não figurem como sujeitos ativos ou passivos da  relação jurídico-substancial versada no litígio, são titulares de relações jurídicas que com ela se relacionam ou que dela dependam.

Apesar de raro, nada há de inusitado nesse fenômeno, até porque o nosso Código de Processo Civil fornece reiterados indícios de sua ocorrência no plano da dinâmica processual. O código traz um capítulo sobre a intervenção de terceiros (artigos 119 a 132); atribui legitimidade ao terceiro juridicamente interessado para ajuizar ação rescisória (artigo 967, inciso II); reconhece ao terceiro prejudicado interesse para recorrer (artigo 996); institui os embargos de terceiro para aquele que, “não sendo parte no processo, sofre constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo…” (artigo 674).

A legislação extravagante, no mesmo sentido, oferece outras tantas hipóteses de extensão ultra partes dos efeitos da sentença e da coisa julgada.

No último estudo que escreveu sobre esse tema, pondera Enrico Tullio Liebman que a limitação da coisa julgada às partes foi considerada, ao longo dos tempos, ora mais, ora menos rigorosa, segundo a concepção que prevalecia, num determinado momento histórico, sobre os direitos individuais ou sobre a exigência de coerência lógica das decisões judiciais.

Nos dias de hoje, contudo, é possível acreditar, por inúmeros motivos, que as normas jurídicas estejam mais sensíveis à solidariedade social, que torna cada um de nós responsável pelos seus próprios atos em relação aos outros membros da sociedade, ressalvado sempre que todos podem defender os seus próprios direitos, como garantido expressamente pelos textos constitucionais modernos (Giudicato — diritto processuale civile, Enciclopedia giuridica treccani, vol. 15, 1989, pág. 14).

Realmente, nos quadrantes de uma ciência processual dominada por regramentos éticos e políticos, de tendência marcadamente democrática, repugna a ideia de que um sujeito de direitos, sem que lhe sejam assegurados “o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, para que possa, na condição de parte, apresentar as suas próprias razões, venha a ser privado de seus bens por força de decisão judicial transitada em julgado. Quando nada, como acima frisado, haveria inarredável afronta à letra dos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição.

No efetivo equilíbrio dos pressupostos e exigências que regram a delimitação subjetiva da eficácia da sentença e da extensão da coisa julgada, parece-me que se encontra a chave para a solução da problemática que dela decorre, em perfeita sintonia com o ideário dos tempos atuais.

Não obstante, para que a sentença possa produzir efeitos em relação à situação jurídica do terceiro é necessária a existência de um vínculo jurídico entre duas relações; não basta que a decisão interesse, de qualquer modo, à esfera jurídico-patrimonial do terceiro (titular de um interesse de fato), mas deve incidir sobre um direito subjetivo deste, prejudicando-lhe a livre disposição de bens e direitos.

Situação tormentosa

Desse modo, permito-me invocar uma situação tormentosa que convida à reflexão. Refiro-me ao ajuizamento da ação rescisória da integralidade do julgado. Nesse caso, o aforamento da ação rescisória pressupõe a citação de todos aqueles que ostentaram a qualidade de parte no processo em que proferida a decisão rescindenda.

Trata-se, com efeito, de litisconsórcio necessário, incluindo-se neste os advogados constituídos que atuaram no indigitado processo, beneficiários do capítulo da sentença que dispôs sobre a verba honorária de sucumbência.

Não há se concordar, nesse particular, com alguns precedentes da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que entendem desnecessária a participação dos advogados titulares da verba honorária fixada no anterior processo, “quando os próprios honorários de sucumbência não são o objeto do pedido rescindendo, pois os advogados não teriam vínculo jurídico com o objeto litigioso, mas apenas interesse reflexo na manutenção do julgado”.

Com o devido respeito, se o objetivo da ação rescisória é o desfazimento de todo o julgado, resulta evidente que igualmente será rescindido o capítulo da sentença que fixou os honorários de sucumbência. O interesse jurídico aí do advogado, ex vi do disposto no artigo 23 da Lei nº 8.906/94, é direto e não reflexo!

Daí a razão pela qual entendo que o advogado ou advogados, beneficiários da sucumbência, devem integrar o contraditório. É curial, pois, que, nesta hipótese, uma vez julgado procedente o pleito rescisório, desfaz-se o título executivo judicial formado em prol dos referidos causídicos, que tiveram a chance, porque citados, de defender a higidez do processo e/ou da sentença naquele proferida.

Ora, se tais advogados não forem citados para apresentar resposta ao pedido de rescisão, haverá vício na implementação da legitimidade passiva e, assim, o respectivo processo da ação rescisória deverá ser extinto sem julgamento de mérito, com arrimo no artigo 485, inciso VI, do Código de Processo Civil.

Nessa linha de raciocínio, não posso igualmente manifestar minha concordância com pronunciamento da 1ª Turma do STJ, no julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.724.768/PA, que defende a higidez do ato decisório que julga procedente o pedido de rescisão da integralidade do acórdão rescindendo, ainda que não tenham sido citados os causídicos que estavam liquidando o título judicial para a apuração do quantum debeatur.

E isso, nos seguintes termos:

“A jurisprudência do STJ, embora reconheça a autonomia do direito do advogado para a execução dos honorários sucumbenciais (art. 23 da Lei n. 8.906/94), assevera que, nos casos em que ocorra a rescisão da sentença que os tenha arbitrado, a verba advocatícia não mais subsistirá, operando-se os efeitos da respectiva rescisória também sobre essa parcela do julgado rescindido.

Soaria irrazoável e mesmo ilógico, ainda que em nome da sustentada autonomia da verba sucumbencial, pretender-se impor o prosseguimento do subjacente procedimento liquidatório quando, por força do que decidido na correlata ação rescisória, não mais subsiste quantum debeatur a ser liquidado. De fato, como desponta da redação do artigo 23 do Estatuto da Advocacia, o que se assegura ao patrono da parte vitoriosa é o ‘direito autônomo para executar a sentença nesta parte [a parte relativa aos honorários]’. Logo, se não mais existe sentença a ser executada, espaço não há para o aventado exercício de autônoma execução de verba sucumbencial antes arbitrada. Nesse contexto, perde relevo a queixa do causídico, no que alega não ter sido parte na mencionada ação rescisória…” (destaques no original).

Infere-se, de fato, que pode haver aí uma incongruência no plano lógico, mas, a rigor, não no plano jurídico, uma vez que, como acima asseverado, a decisão que rescinde o título executivo é ineficaz em relação a quem não foi parte na ação rescisória, não podendo prejudicá-los, como expressamente preceitua o artigo 506 do Código de Processo Civil.

É como se o capítulo da sentença rescindida, referente à verba honorária de sucumbência, permanecesse intocado para o fim de preservar, a um só tempo, as garantias constitucionais do devido processo legal e da intangibilidade da coisa julgada.

Deve-se, portanto, servir de paradigma para a solução desta questão, importante e recente precedente da 1ª Seção do STJ, no julgamento da Ação Rescisória nº 6.359/SP, no qual sufragado o entendimento de que “inexiste litisconsórcio necessário se a decisão a ser tomada carecer de aptidão para afetar a esfera de direito de terceiros”, o que nos leva a concluir, a fortiori, que se o ato decisório que determinar a rescisão do julgado se estender à condenação da sucumbência — e, portanto, repercutir no âmbito do direito de terceiros —, desponta necessário o litisconsórcio passivo, legitimando-se para figurar na qualidade de demandados os advogados por ela beneficiados.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice- presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!