Processo Tributário

É possível falar em precedente em matéria tributária com um STF volátil?

Autor

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

16 de janeiro de 2022, 8h00

Em tempos tão obscuros o óbvio precisa ser dito e repetido, motivo pelo qual começamos esta coluna novamente afirmando: o processo, e, consequentemente, o processo tributário, não é um fim em si mesmo, mas um importante instrumento para a realização de direitos materiais controversos [1]; em última análise, é instrumento fundamental para que o Direito cumpra o papel de promover a paz social e resolver, conteudisticamente, os necessários problemas de convivência.

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Dito isso e pensando nas instituições sob uma perspectiva jurídica [2], encontramos o Poder Judiciário segmentado em diferentes órgãos tanto para fins políticos [3], como para cumprir seu objetivo funcional, isto é, com o fito de exercer sua função precípua: promover a atividade jurisdicional. Sob a perspectiva exclusivamente funcional, o Poder Judiciário se organiza tanto de forma horizontal como vertical [4] e, no que tange à estrutura verticalizada, encontra no Supremo Tribunal Federal seu ponto final.

Apenas esse sumário da organização do Poder Judiciário, com especial ênfase para o papel do STF como o órgão discursivo final para fins de realização prática do Direito, já seria suficiente para demonstrar sua importância no universo jurídico nacional. Tal relevância foi potencializada nos últimos anos por dois motivos: 1) a sobrevalorização, a partir da CF/88, da sua competência em relação ao controle concentrado de constitucionalidade; e 2) o (suposto) fortalecimento dos precedentes judiciais dentro do sistema jurídico nacional [5].

Entre reformas pontuais do CPC/73 [6] e o advento da Emenda Constitucional 45/2004 [7], até se chegar ao CPC/2015 (em particular, a seus artigos 926 e 927), é inegável o prestígio alcançado pelas decisões veiculadas pelo STF e sua qualidade de fonte material do Direito.

Tal impacto, bem como os equívocos metodológicos até então existentes [8], não passaram despercebidos pelo legislador de 2015, que, por meio do artigo 926 do CPC, trouxe importante contributo para a conformação de uma adequada cultura de precedentes, fazendo-o ao prever que os tribunais devem manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente.

A ideia de se preservar a estabilidade das decisões judiciais parte do pressuposto de que tais manifestações atuam como fonte material do Direito (para além das partes litigantes) e, como tal, têm a aptidão de gerar expectativas legitimamente construídas pelos jurisdicionados ao longo do tempo. Tais decisões, portanto, devem se manter estáveis como forma de tutelar tais expectativas e, por conseguinte, o valor segurança jurídica.

Longe de significar que os precedentes são imutáveis, a norma afasta o overruling [9] de eventual banalização. Nesse sentido, a simples mudança de composição de um tribunal, por exemplo, não constitui motivo suficiente para a superação de um precedente: estabilidade das decisões judiciais pressupõe institucionalidade dessas manifestações.

Por sua vez, a integridade das decisões apresenta-se como meio termo entre a hiperintegração e a desintegração das manifestações jurisdicionais. Em outras palavras, um precedente não tem o condão de abarcar — e, com isso, regular — uma infinidade de condutas prospectadas para o futuro, como se norma fosse (hiperintegração) [10], assim como também não pode se arvorar da falsa sensação de que dará uma resposta sempre única para os diferentes casos que chegam a seu conhecimento, sob pena de promover um indevido casuísmo jurídico (desintegração). Nesse sentido, para que haja uma real integração do Direito, o órgão judicante, ao resolver um caso em tempo presente, deverá olhar para a plêiade de decisões proferidas em casos análogos [11] e avaliar se existem mais pontos de encontro do que de desencontro a justificar (ou não) a convocação do precedente como fundamento para a decisão a ser proferida [12]. Em suma, a ideia de integridade das decisões prestigia um senso de historicidade da manifestação jurisdicional.

Por fim, coerência entre decisões diz respeito à necessidade de unicidade substancial do direito criado pelos tribunais, ainda que os casos comparados não sejam idênticos. E isso porque, em um modelo de precedentes metodologicamente adequado, o encontro dos casos sempre se dará no heterogêneo, jamais no homogêneo, cabendo ao realizador do direito promover as aproximações/distinções fáticas mediante um pesado ônus argumentativo, a justificar em concreto a convocação da ratio ou a promoção do distinguishing.

Feitas essas considerações, convém agora analisar a forma como o STF tem tratado a figura dos precedentes, em especial em razão do disposto no artigo 926 do CPC. Para tanto, destacaremos, como exemplos, dois recentes casos tributários ali apreciados.

O primeiro deles trata da exclusão do ISS das bases de cálculo do PIS/COFINS, o qual será julgado no âmbito do RE nº 592.616 (tema 118 de repercussão geral). Tal julgamento foi iniciado no tribunal em 14/8/2020, oportunidade na qual o então ministro Celso de Mello votou pela exclusão do ISS do cômputo das contribuições. O julgamento foi retomado em 20/8/2021, com a abertura da divergência pelo voto-vista do ministro Dias Toffoli, na linha da manutenção do ISS na base de cálculo. Na sequência, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, destacou o caso, retirando-o do Plenário Virtual. Assim, todos os votos já proferidos foram descartados, reiniciando-se o julgamento do zero presencialmente.

Esse caso revela um quê de descompromisso do STF com os valores da coerência e da integridade no trato dos seus precedentes: apesar de toda retórica do voto-vista proferido pelo ministro Dias Toffoli para promover um suposto distinguishing, a questão posta em julgamento é análoga ao problema resolvido pelo STF, depois de décadas de espera [13], no âmbito do RE nº 574.706, quando definiu que "o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins".

Concordando ou não com a tese vencedora, a questão é que, ao assim decidir, o STF delimitou um conceito de faturamento para fins de incidência das contribuições sociais, que exclui da sua composição os valores correspondentes aos tributos que seriam pagos pelo consumidor e repassados pelo vendedor aos cofres públicos. Assim, embora não haja identidade de casos — o que, como visto, não é exigido em um modelo metodologicamente adequado de precedentes —, há uma notória aproximação entre o que foi decidido pelo STF no RE nº 574.706 e aquele que está sob análise no RE nº 592.616. A opção adotada pelo presidente do STF — vencido na discussão travada no RE nº 574.706, diga-se de passagem — de submeter o RE nº 592.616 a julgamento presencial, descartando com isso os votos já proferidos, é um claro sinal de que se aposta em um resultado distinto em razão da nova composição do STF, partindo do já denunciado equívoco de que a mudança episódica de pessoas, circunstancialmente exercendo a função de julgador no STF, seria motivo suficiente para alterar a posição daquela instituição.

O segundo exemplo que se destaca é o do caso julgado sob repercussão geral no âmbito do RE nº 714.139, em que se fixou a seguinte tese: "Adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços — ICMS, discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços".

A questão a ser aqui avaliada, todavia, não diz respeito ao mérito da decisão em si, mas, sim, à modulação de efeitos atribuída na oportunidade. Segundo o que restou decidido, a decisão do STF só produzirá efeitos a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvadas as ações ajuizadas até a data do início do julgamento do mérito (5/2/2021).

Olhando para o corte feito pelo STF em relação às demandas já propostas, é fácil perceber que a corte salvaguardou dos efeitos da modulação apenas aqueles contribuintes judicializaram a questão antes de iniciado o julgamento (5/2/2021), caminho se contrapõe a inúmeros precedentes a respeito do tema. Como exemplo reconvocamos o RE nº 574.706: depois de mais de quatro anos debruçado exclusivamente sobre o tema da modulação de efeitos, o STF decidiu, em 10/5/2021, que estariam preservados os contribuintes que ajuizaram suas ações até a data da sessão em que proferido o julgamento (15/3/2017), isto é, o resultado da lide [14].

Pois bastaram apenas sete meses para o STF, no âmbito do RE nº 714.139, alterar sua posição a respeito de quais litigantes estariam ou não preservados dos efeitos modulatórios das suas decisões, o que fez por maioria de votos, vencido no ponto somente o ministro Edson Fachin. O caso aqui é ainda mais problemático do que o anterior e por dois motivos: 1) primeiramente, porque não houve motivação para o overruling [15] da orientação sobre modulação, o que, como visto, se contrapõe aos valores do artigo 926 do CPC, em especial a ideia de estabilidade das decisões; 2) segundo, porque a maioria dos ministros envolvidos no debate aceca da modulação de efeitos da decisão proferida no RE nº 574.706 participou do julgamento do RE nº 714.139, o que descortina uma certa despreocupação com o conceito de integridade decisória.

Diante desse quadro e retomando o questionamento presente no título desse texto respondemos: volatilidade não combina com um bom regime de precedentes.


[1] Sobre esse ponto, mais uma vez remetemos a leitora e o leitor ao seguinte texto: https://www.conjur.com.br/2021-mar-02/paulo-conrado-processo-tributario-instrumentalidade.

[2] Não ignoramos o fato de que tais instituições também podem ser observadas por outras diferentes perspectivas, tais como a política, a econômica, a social etc.

[3] O Poder Judiciário, enquanto estrutura do Estado Democrático brasileiro, se organiza politicamente. Daí, v.g., possuir um estatuto próprio da magistratura, prever e realizar o orçamento que lhe cabe etc.

[4] Essa verticalidade não implica uma relação hierárquica entre os diferentes órgãos jurisdicionais, mas decorre da previsão constitucional de órgãos de superposição, tais como os Tribunais Superiores. Nesse sentido: DINAMARCO, Cândido. Instituições de direito processual civil. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, vol. I. 2013. p. 382.

[5] Em nossa particular opinião estamos muito distantes de um modelo metodologicamente adequado de valorização de precedentes no Brasil, conforme já expusemos em: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Processo tributário analítico. CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, vol. III. 2016. Pp. 111-140.

[6] V.g., a possibilidade de julgamento monocrático de recursos com base em súmulas do STF e do STJ (art. 518, § 1º do CPC/73, incluído pela lei nº 11.276/2006).

[7] Veiculadora de institutos como repercussão geral e súmulas vinculantes.

[8] Em especial por conta de um modelo de precedentes calcado em tipos decisórios formais de vinculação (repercussão geral, súmulas vinculantes, recursos repetitivos etc.) e refém de enunciados sintetizadores dos julgados (ementas, orientações jurisprudenciais, súmulas e afins).

[9] E todas as implicações daí decorrentes, como aquelas, v.g., prescritas nos artigos 489, § 1º, inciso VI e 927, §§ 2º e 3º, ambos do CPC.

[10] Daí as críticas à cultura das ementas/súmulas/fixação de teses no pretenso modelo abrasileirado de precedentes.

[11] Em um modelo de precedentes jamais haverá uma identidade subsuntiva de casos, mas sempre uma comparação analógico-problemática a justificar a convocação da ratio decidendi do caso precedente ou a sua distinção (distinguishing).

[12] É o que Fredie Didier Júnior chama de dever de autorreferência, embora empregue esse termo quando trata do valor coerência das decisões judiciais. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie. BRAGA, Paulo Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 10ª ed. Salvador: JusPodivm. Vol. 02, 2015. p. 480.

[13] Quatorze anos de tramitação só no STF, para ser mais preciso.

[14] Na mesma linha também se destaca o Re nº 560.626, no qual se discutiu a (im)possibilidade de lei ordinária tratar dos prazos decadencial e prescricional de contribuições previdenciárias. Neste julgado o STF decidiu pela impossibilidade da repetição de indébitos recolhidos a mais de cinco anos, modulando os efeitos dessa sua decisão para salvaguardar aqueles contribuintes que promoveram pedidos de restituição antes da conclusão do julgamento pretoriano.

[15] O que se encontra são justificativas rasas para a modulação em si considerada, as quais são pautadas pelo já conhecido discurso retórico do interesse público decorrente no impacto financeiro da decisão proferida. Não há, todavia, qualquer motivação para o overruling aqui mencionado.

Autores

  • é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário, Direito Aduaneiro e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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