Embargos Culturais

"A Ética dos Precedentes", de Luiz Guilherme Marinoni

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

18 de fevereiro de 2024, 8h00

Penso que o tema dos precedentes seja o mais importante para qualquer estudo sério sobre o direito brasileiro contemporâneo.

Spacca

Embutido na dinâmica explosiva do artigo 926 do Código de Processo Civil, que guarda interminável reserva de sentido, o precedente não é só o tema central do novo código de processo; o precedente reformula radicalmente a teoria das fontes.

E se a teoria das fontes pode qualificar o que de mais importante há na teoria geral do direito, o tema dos precedentes certamente é o que há de mais importante na prática jurídica.

Menos do que um problema metafísico, o direito é uma técnica para resolução de problemas práticos.

Tobias Barreto já insinuava esse postulado nas arengas que tinha com seus desafetos de Recife e Tércio Sampaio Ferraz tratava da segunda parte dessa afirmação.

E problemas práticos hoje se revolvem (ou se intuem, ou se preveem) a partir de uma clara compreensão do que seja o precedente. Acabamos todos realistas.

Divisão
O tema do precedente divide processualistas e constitucionalistas. Pode haver os negativistas radicais (não há precedente, há voluntarismo), os negacionistas moderados (o precedente daqui não é como precedente de lá), os salvacionistas (o precedente resolve o problema da insegurança jurídica), os encimadomuristas (cuidado e cautela com o precedente, mas pode ser bom, desde que bem aplicado), os neorrealistas (o precedente é que o tribunal quer que o precedente seja), os apocalípticos (por favor, nem me fale de precedente) e os integrados (preciso estudar a sério a teoria dos precedentes).

Eu me alisto entre esses últimos.

O tema tem uma longa história na literatura do direito brasileiro. Semana que vem comento um livro de 1995, “Súmulas no Direito Brasileiro”, de Lenio Streck, um dos primeiros tomos no assunto, sob uma perspectiva realista.

O autor já apontava para uma questão perversa e nada ingênua que se antevia nas entrelinhas: o problema da separação dos poderes.

Do ponto de vista sistemático, penso que Roberto Rosas seja provavelmente o pai fundador da discussão (teórica): a primeira edição de “Direito Sumular” é de 1978. Um livro inovador, que surgiu em um tempo que não se tratava do assunto.

E do ponto de vista efetivamente instrumental, a contribuição de Vitor Nunes Leal no RE nº 54.190, no qual se define a finalidade, a aplicação e a interpretação da súmula, conforme se lê no estudo definitivo de Fernando Dias Menezes de Almeida.

Entre a súmula e o precedente há toda uma rota da seda. E como diz Paulo Mendes de Oliveira, acórdão é uma coisa, precedente é outra coisa, e tese uma outra coisa também [1].

O problema, ensina Paulo Mendes, é extrair da tese, mais do que a tese efetivamente contenha. Além do que, está no livro do Lênio Streck com o Georges Abboud, o precedente judicial do common law não pode ser confundido com a súmula vinculante.

Chamo a atenção nos embargos culturais dessa semana para o livro “A Ética dos Precedentes”, de Luiz Guilherme Marinoni.

Há um capítulo inicial, relativo à tradição weberiana e o tema da racionalidade do direito, no contexto do common law inglês, que me parece introdutório para a compreensão funcional da técnica do precedente.

São 44 páginas essenciais no tema. Leitura obrigatória.

A relação do protestantismo (e do calvinismo em especial) com o direito é de algum modo negligenciada na literatura jurídica brasileira. Marinoni preenche essa lacuna, e de igual modo José Eduardo Faria no prefácio para a tradução brasileira do livro de Anthony Kronnan, sobre Max Weber.

Em língua universal de cultura (inglês) o assunto foi tratado também por Harold J. Berman, no estudo que fez sobre o impacto da reforma protestante na tradição jurídica ocidental.

Quatro pontos
Marinoni (em seu livro aqui recomendado) colocou no primeiro capítulo o problema das concepções weberianas como diretivas para compreensão da técnica do precedente. Como justificar a origem dessa preciosa técnica?

Marinoni o fez em quatro pontos centrais: a racionalidade e a ascese mundana no núcleo do protestantismo clássico; a racionalidade do direito no contexto do capitalismo; o problema da previsibilidade e, consequentemente, da segurança jurídica, e o que Marinoni enfrentou como o “problema da Inglaterra”.

Uma chave interpretativa para a resolução de uma suposta tensão entre direito legislado e direito extraído dos fatos levados a juízo.

O ponto de partida para as reflexões de Marinoni é o clássico de Max Weber, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, tanto na versão original, quanto na segunda versão.

Além de perspectivas muito originais, Marinoni apoia-se também em intérpretes muito abalizados de Weber, como Antônio Flávio Pierucci e Jessé Sousa.

Eu acrescentaria um livro hoje esgotado, mas que marcou minha geração: “O Ícaro da Modernidade”, de Katie Argüello, que qualquer dia desses resenharei aqui; é um livro importante para qualquer especulação em torno da ideia de racionalidade em Max Weber, sob a perspectiva do direito.

Nesse primeiro capítulo Marinoni fixou as linhas gerais da “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”.

A salvação pela predestinação (em oposição à salvação pelas obras, da tradição católica) suscita uma nova percepção do trabalho, enquanto profissão, ou mesmo como vocação, nesse último caso na perspectiva daquele insuspeito monge agostiniano, o ousado autor das 95 teses da porta da Igreja de Wittenberg: Lutero.

O trabalho dignifica, eleva, glorifica, edifica. O resultado do trabalho sério, medido pelo sucesso, é a régua que separa os eleitos dos não escolhidos.

Trata-se de uma comprovação de eleição divina. Uma nova ética resultava de um fortíssimo comprometimento com o trabalho, e seu resultado prático e aferível, mediados por um também fortíssimo comportamento ascético. Marinoni apreendeu essa perspectiva, que explorou à luz de uma “racionalização da conduta humana”.

Nesse sentido, explorou as dimensões de “esse mundo” e de “outro mundo”, que passam a ser centrais no tema do “desencantamento” e do ocaso da magia (e dos sacramentos). Não há mais um repouso indispensável na construção da pirâmide do faraó.

O diletantismo cede ao aproveitamento máximo das energias, que não podem ser dissipadas, de forma alguma.

Um carinho de jardineiro marca essa nova ética, que comprova, na expressão de Marinoni, que “o protestantismo também colaborou para uma vida metódica e dotada de racionalidade”.

Sou neto de um pastor presbiteriano e sobrinho de um teólogo calvinista; não tenho dúvidas da afirmação de Marinoni.

Mas, perguntaria o leitor da coluna, onde está o problema jurídico?

A racionalidade como marca desse novo tempo implica também na racionalidade da organização da vida social (o direito) que resulta na fixação de fórmulas para o alcance da previsibilidade e da segurança negociais.

Marinoni cita um comentarista de Weber e nos lembra da busca de uma lei racional, viz., de uma lei previsível.

Common law
Na tradição continental o problema se resolve (ou pode se resolver) na racionalidade da codificação. E como fica no common law?

É o problema que Marinoni, com base em David Trubeck e Richard Swedberg, enfrentou nos excertos relativos ao que denominou de o “o problema da Inglaterra”. Expliquemos melhor.

Weber havia cogitado de um direito formalmente irracional (o direito da revelação dos oráculos), de um direito substancialmente irracional (a justiça do cádi, de uma tradição supostamente muçulmana), de um direito substancialmente racional (a lei chinesa e a lei islâmica) e de um direito formalmente racional (o direito dos códigos). Onde fica o common law?

Para Marinoni, porque a fundamentação é requisito para a racionalidade do sistema de precedentes, “é evidente que a contribuição para a previsibilidade e, por decorrência, para o desenvolvimento do capitalismo, foi identificada no stare decisis, ou seja, na crença justificada e racional de que a administração da justiça não deixaria o empreendedor desamparado”.

Como Marinoni afirmou em outro livro, o significado do precedente está em sua fundamentação. Não basta olhar na parte dispositiva. Onde está a fundamentação?

Por isso, e a conclusão é minha, o precedente, no common law, teria, em princípio, o mesmo papel do direito legislado na tradição continental, que é o substrato da nosso, isto é, se podemos dizer que temos uma tradição nossa.

Não se pode confundir tradição com experimentalismo. É com rudimentos que tenho de história econômica, especialmente quanto à Inglaterra e aos Estados Unidos, que concordo com a importância do precedente na construção do common law como instrumento de otimização da economia. É também o tema de um ensaio de Oliver Wendell Holmes Jr. Generalizar é perigoso, mas pode ser uma pista.

O precedente, nessa compreensão, propõe-se como arranjo para estabilização das relações jurídicas, como indício de previsibilidade negocial e como instrumento da racionalidade. Cumpridas essas missões, fomenta-se positivamente a vida negocial. E não há nada de errado nisso.

Na essência, parece-me, tem-se um problema de teoria das fontes e um problema maior ainda, ligado à teoria das transposições dos modelos jurídicos.

De onde buscamos o precedente? Como o trouxemos? Como o adaptamos? Como disse um professor brasileiro que leciona nos Estados Unidos, uma coisa é chamar os espíritos, outra, é quando eles chegam…

A leitura de “A Ética dos Precedentes” é tarefa obrigatória (e prazerosa) para quem queira avançar no assunto. Leve, objetivo, bem embasado, trata-se de um livro de fundamentos do processo de fortíssima inspiração weberiana, muito bem escrito por um autor que conhece do assunto. Marinoni sabe do que fala.

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[1] Registro aqui a intervenção de Paulo Mendes na banca de qualificação de tese de doutoramento de Renato Cesar Guedes Grillo, um preparadíssimo Procurador da Fazenda Nacional, que leva para a academia uma vasta experiência prática. Na banca também, indicando livros e propondo perspectivas inovadoras, Jefferson Carús Guedes. Aos três, Paulo, Renato e Jefferson, dedico o presente ensaio em forma de resenha.

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