Opinião

(Im)possibilidade das organizações do 3º setor, OS e Oscips cometerem crimes licitatórios

Autor

  • Luiz Carlos Mucci Neto

    é aluno do Curso de Formação Policial de Delegado de Polícia do Espírito Santo (Acadepol Vitória) e pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela PUC-PR.

28 de abril de 2024, 17h22

Este artigo discute a impossibilidade de as organizações do terceiro setor, organizações Sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) cometerem crimes licitatórios, levando em consideração o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e a proibição da analogia no direito penal.

Não obstante a impossibilidade da prática de crimes licitatórios, descritos na antiga Lei nº 8.666/93 ou no atual Código Penal, existem outras possibilidades jurídicas de responsabilização, tanto pela via da improbidade administrativa pelos artigo 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.249/92, quanto por outras tipologias penais, como por exemplo: peculato, artigo 312 do CPB; emprego irregular de verbas públicas, artigo 315 do CPB; concussão, do artigo 316 do CPB; falsidade ideológica, do artigo 299 do CPB; lavagem de dinheiro, artigo 1º, da Lei nº 9.613/98; associação criminosa, do artigo 288 do CPB; organização criminosa do artigo 1º e 2º da Lei nº 12.850/13.

A impossibilidade de imputar aos diretores ou funcionários das OS ou OSCIPs a prática de crimes licitatórios não quer dizer que estarão impunes, pelo contrário, existem outras vias de responsabilização eficazes e que respeitam a dogmática penal.

O terceiro setor é uma esfera da sociedade civil que se situa entre o setor público e o setor privado. No contexto do direito administrativo, o terceiro setor refere-se a organizações não-governamentais (ONGs), organizações sociais (OS), fundações privadas e outras entidades sem fins lucrativos que atuam em prol do interesse público.

Essas organizações desempenham um papel importante na complementação das atividades estatais, muitas vezes assumindo funções sociais que o Estado não consegue cumprir sozinho. No Brasil, o terceiro setor é regulado por diversas leis e normas, como a Lei das Organizações Sociais (Lei nº 9.637/1998), a Lei do Terceiro Setor (Lei nº 13.019/2014) e outras legislações específicas.

A Lei nº 9.637/98 que trata da organização social no contexto brasileiro estabelece o regime jurídico das organizações sociais (OS), que são entidades privadas sem fins lucrativos que prestam serviços públicos não exclusivos do Estado, como saúde, educação, cultura, entre outras, mediante contrato de gestão com o poder público [1].

Autonomia administrativa

Spacca

As organizações sociais têm autonomia administrativa, financeira e de gestão de recursos humanos e devem atender aos princípios da eficiência, da qualidade do serviço prestado e da transparência em sua atuação.

Por outro lado, a Lei nº 9.790/99 versa sobre as organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) e estabelece que são entidades sem fins lucrativos que têm como objetivo principal a realização de atividades de cunho público, como assistência social, educação, cultura, saúde, meio ambiente, entre outras [2].

De acordo com a lei, para ser qualificada como OSCIP, a entidade deve atender a uma série de requisitos, como ter finalidade pública e caráter social, não distribuir lucros, aplicar integralmente seus recursos na realização de suas atividades, entre outros.

Os entes de colaboração mesmo firmando contrato de gestão ou termo de cooperação não integram a administração pública direta ou a indireta, pois são consideradas entidades paraestatais.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 1923/DF, de relatoria do ministro Ayres Britto, enfrentou diversas questões envolvendo a natureza jurídica e os seus reflexos jurídicos entre o terceiro setor e o poder público [3].

Restou decidido que as entidades do terceiro setor não integram o conceito constitucional de administração pública, portanto, não estão submetidas ao dever de licitar, do artigo 37, inciso XXI, da constituinte de 88, razão pela qual não precisam seguir os procedimentos estabelecidos pela Lei de Licitações, a antiga 8.666/93 e atual Lei nº 14.133/21.

Embora não estejam submetidas ao dever de licitar, as mencionadas organizações recebem recursos públicos, bens públicos e, em determinados casos, servidores públicos, portanto, devem, ao menos, respeitar os princípio da administração pública previstos no caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

Não é objeto deste artigo, mas é de bom alvitre asseverar que a Suprema Corte determinou que as entidades paraestatais não estão obrigadas a realizar concurso público para a contratação do funcionários, no entanto, devem adotar procedimento objetivo e impessoal para admissão de pessoal.

Não há crime licitatório

Considerando que o Terceiro Setor não está submetido à égide das lei de licitações, entende-se que não é possível imputar a prática de crimes licitatórios, tanto os previstos na Lei n. 8.666/93 quanto aqueles que foram transferidos para o Código Penal, entre os artigos 337-E e 337-O, pois se estaria praticando analogia in malam part.

Isso porque, na legislação penal brasileira os crimes licitatórios apenas abrangem condutas realizadas em licitações propriamente ditas e contratos administrativos. Ou seja, não há previsão legal que abranja os procedimentos de contratação impessoais e objetivos realizados pelas entidades paraestatais.

A analogia é a aplicação de uma norma a um caso não previsto expressamente na lei, mas que é semelhante a casos já contemplados pela legislação. A analogia é uma técnica interpretativa que visa preencher lacunas na lei penal, quando há ausência de norma específica para determinada conduta.

No brasil, em razão do princípio da legalidade estrita do direito penal, somente é permitida a analogia in bonam part para o Réu (aquela que beneficia). Portanto, a analogia in malam part é técnica interpretativa inconstitucional que não deve ser admitida [4].

Ainda que não seja possível a imputação dos crimes licitatórios, existem outras alternativas eficientes no ordenamento jurídico brasileiro que são capazes de prevenir e reprimir os crimes praticados pelo terceiro setor, sobretudo, no tocante os desvio de recursos públicos.

As organizações sociais (OS) e as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs) são empresas privadas. Contudo, recebem subsídios, recursos e bens públicos. Portanto, estão submetidas as disposições da Lei de Improbidade Administrativa, conforme o §6º do artigo 1º da Lei nº 8.249/92. [5]

Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei. […]

§ 6º Estão sujeitos às sanções desta Lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade privada que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes públicos ou governamentais, previstos no § 5º deste artigo.

Caso haja enriquecimento ilícito, dano ao erário ou lesão aos princípios da administração pública, os responsáveis irão respondem pelos atos descritos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei n. 8.249/92, bem como estarão sujeitos às penalidades descritas no artigo 12, todos da Lei de Improbidade Administrativa.

Funcionários públicos

Na esfera penal de responsabilização, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no HC 138484/DF, de relatoria do ministro Marco Aurélio, Dje 11.09.2018, Info 915, determinou que os direitos de organizações sociais são considerados como funcionários públicos por equiparação para fins penais, nos termos do artigo 327, §1º do Código Penal [6].

A Suprema Corte, adotando lição da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, entendeu que as organizações sociais que celebram contratos de gestão devem ser consideradas “entidades paraestatais”.

“(…) Exatamente por atuarem ao lado do Estado e terem com ele algum tipo de vínculo jurídico, recebem a denominação de entidades paraestatais; nessa expressão podem ser incluídas todas as entidades integrantes do chamado terceiro setor, o que abrange as declaradas de utilidade pública, as que recebem certificado de fins filantrópicos, os serviços sociais autônomos (como Sesi, Sesc, Senai), os entes de apoio, as organizações sociais e as organizações de sociedade civil de interesse público.” [7]

No mesmo sentido é a doutrina de Luiz Régis Prado:

“Entidades paraestatais são pessoas jurídicas de direito privado, instituídas por lei, ‘para realização de atividades, obras, serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado’. Inserem-se como modalidades de entidades paraestatais as empresas públicas, as sociedades de economia mista, os serviços sociais autônomos e modernamente o que se denomina ‘terceiro setor’ (entes da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos).” [8]

Portanto, os diretores de organizações sociais respondem pelos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, do Título XI, Capítulo I do Código Penal.

Em outras palavras, a autoridade policial poderá imputar a prática de crime de peculato, do artigo 312; de emprego irregular de verbas públicas, do artigo 315; de concussão, do artigo 316; de corrupção passiva, do artigo 317; de prevaricação, do artigo 319, todos do Código Penal [9].

Se os diretores ou funcionários das organizações sociais (OS) ou as organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) omitirem, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa daquela que deveria estar escrita, com o fim de prejudicar terceiros ou alterar a verdade de fato juridicamente relevante, responderão pelo crime de falsidade ideológica, do artigo 299 do Código Penal.

Não bastasse isso, se constatado o conluio de agentes, ajuste subjetivo e estável de vontades para a prática de crimes, poderá ocorrer o indiciamento pela prática do crime de associação criminosa, do artigo 288 do Código Penal, ou organização criminosa, do artigo 1º e 2º, da Lei nº 12.850/13 [10], desde que haja o preenchimento dos requisitos exigidos pela lei.

Ainda, na hipótese de dissimulação ou ocultação de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal haverá a prática do crime de lavagem de dinheiro, do artigo 1º, caput, da Lei 9.613/98 [11].

Diante do exposto, é possível concluir que as organizações do terceiro setor, incluindo as organizações sociais e as OSCIPs, não podem cometer crimes licitatórios. No entanto, existem outras esferas de responsabilização que são igualmente eficientes, como por exemplo: a improbidade administrativa da Lei nº 8.249/92, ou até mesmo a esfera penal com a imputação de crimes alternativos aos licitatórios.

 


[1] BRASIL. Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 maio 1998.

[2] BRASIL. Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 mar. 1999.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1923. Relator: Ministro Ayres Britto. Julgamento em 16.04.2015. Publicado em: 17.12.2015.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 1.145-2/PB. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Julgamento em 19.12.2006.

[5] BRASIL. Lei nº 8.249, de 12 de novembro de 1992. Dispõe sobre a organização do Ministério Público da União, sua competência e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 nov. 1992

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. Habeas Corpus nº 138484/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgamento em 11.09.2018. Info 915.

[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27ª ed. Atlas: São Paulo, 2014. p. 566-567.

[8] PRADO, Luiz Régis. Comentários ao código penal: jurisprudência. Conexões lógicas com os vários ramos do direito. 11.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 863.

[9] BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 31 dez. 1940.

[10] BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013.

[11] BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 mar. 1998.

Autores

  • é aluno do Curso de Formação Policial de Delegado de Polícia do Espírito Santo (Acadepol Vitória) e pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela PUC-PR.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!