Contas à Vista

Mais poder terá o Supremo quanto maior for a Constituição

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff – Advogados.

13 de fevereiro de 2024, 8h00

A dinâmica constitucional brasileira apresenta alguns paradoxos muito curiosos, que possivelmente não se repetem em outros países. Tentarei explicar um deles.

Por definição, quanto mais amplo for o texto constitucional, maior será o poder atribuído à Corte Constitucional, que é, por definição, o órgão incumbido de a interpretar em última ou única instância. No Brasil essa tarefa cabe ao Supremo Tribunal Federal, que acumula um conjunto enorme de outras competências.

A Constituição de 1988 já nasceu amplíssima, pois foi construída “de baixo para cima”, isto é, a partir de diversas subcomissões, em assuntos que muitas vezes se sobrepunham, gerando uma multiplicidade de normas que podem parecer conflitantes, exigindo um esforço interpretativo enorme para conciliá-las. Um exemplo esclarece: a propriedade é um direito inviolável (artigo 5º, caput), o que se repete logo adiante (artigo 5º, XXII), para, em seguida, afirmar que exerce uma função social, o que a relativiza (artigo 5º, XXIII, XXIV e XXV), e por aí vai.

Texto paralelo
Não bastasse isso, já chegamos a 132 emendas constitucionais, além das seis emendas constitucionais de revisão, algumas das quais criaram uma espécie de “texto paralelo”, pois não encartam as normas aprovadas no texto constitucional, vigorando apenas no corpo da emenda que as aprovou. Isso foi feito, sem ineditismo, pela Emenda Constitucional 132, conforme expus em outro texto.

Muitas dessas emendas foram feitas como um drible ao processo legislativo regular, pois não se referem à matéria constitucional, como a da Emenda Constitucional 96, que determinou não serem consideradas cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais. Esta norma poderia ser uma lei, mas suspeito que seus propositores optaram pelo processo de emendar a Constituição, com receio do veto presidencial. Os exemplos poderiam se multiplicar.

Spacca

A pecha de ativista
O fato é que, quanto maior a Constituição, maior o poder dado ao STF – simples assim. E, por consequência, menor o poder do Congresso para fazer leis ordinárias ou complementares, uma vez que tudo acaba sendo constitucionalizado.

Com isso, o STF recebe a pecha de ser ativista, o que não é na maior parte das vezes, embora existam situações em que isso ocorre. O STF interpreta a Constituição, mas, como ela é muito ampla, tem o poder de discutir uma gama enorme de assuntos. Um exemplo: à luz da Emenda Constitucional 96, será a briga de galos (conhecida também como rinha de galos) uma manifestação cruel ou uma manifestação cultural de prática desportiva que usa animais?

O fato é que mais forte fica o STF com a ampliação da Constituição – e, muitas vezes, esse aspecto não é observado pelos parlamentares, que, de uma forma ou de outra, buscam reduzir os poderes do STF por meio de novas emendas constitucionais cuja constitucionalidade será apreciada pelo próprio STF.

Qual a solução?
Uma das muitas possíveis seria o Congresso reduzir as propostas de emendas constitucionais (PECs), voltando-se à legislação ordinária e complementar, passando a implementar efetivamente a Constituição conforme o texto já aprovado, sem buscar alterá-la quotidianamente. O Congresso voltaria suas ações para legislar, e não para reconstitucionalizar.

Outra ideia, meio estapafúrdia, seria a de recuperar o artigo 178 da Constituição Imperial, de 1824, que estabelecia: “É só constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos, e individuais dos cidadãos. Tudo, o que não é constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias”. Isso daria mais poderes ao Congresso, porém estamos em uma república, e não no império, e a teoria constitucional avançou muito desde então.

Não se trata de um problema que tenha solução simples, mas não é dos melhores o caminho que o Congresso atual, e os anteriores, vêm trilhando.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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