Inimigos do Zé Gotinha

Administradores correm risco de serem punidos por decretos contra vacina

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13 de fevereiro de 2024, 8h52

A onda de decretos estaduais e municipais que vetam a exigência de vacina contra a Covid-19 para matrícula na rede pública de ensino — evidentemente um afago nos eleitores antivacina em ano de eleições municipais — pode gerar consequências judiciais para seus autores.

Decretos que vetam exigência de vacina para matrícula viram arma de marketing político

A conduta dos gestores públicos que produzem normas contra a vacina pode ser enquadrada como crime de responsabilidade, violação aos princípios da administração pública e até mesmo suscitar conflito de competência, na avaliação de especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. A possibilidade de enquadramento na Lei de Improbidade Administrativa, contudo, gera controvérsia entre os estudiosos do tema.

Nas últimas semanas, ao menos 11 cidades de Santa Catarina editaram decretos que derrubavam a exigência do plano vacinal completo para matrícula na rede pública. O governador catarinense Jorginho Mello (PL) chegou a gravar um vídeo reforçando a não obrigatoriedade da vacinação.

O Ministério Público catarinense notificou todas as prefeituras que pegaram essa onda para informar que as normas eram ilegais e violavam regras de competência constitucional. O MP também lembrou que o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese sobre a constitucionalidade da vacinação obrigatória de crianças:

“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.

Algumas cidades já voltaram atrás, mas outras ainda insistem na validade das normas antivacinas. Em Minas Gerais, o governador Romeu Zema (Novo) editou um decreto estadual nos mesmos moldes dos catarinenses.

Zema chegou a afirmar — não se sabe ao certo se de brincadeira ou a sério — que as crianças devem estudar o assunto para poderem decidir se vão se imunizar. “Toda criança tem direito de frequentar a escola, é inquestionável. Com isso, a criança vai ter uma alimentação, uma merenda boa, vai ter boas escolas. Vai, principalmente, aprender ciência, para que no futuro ela tenha condições, diferente do que já aconteceu no passado, queremos que ela venha a decidir se quer ou não ser vacinada”, disse ele em entrevista à CNN.

Três consequências
O advogado e professor de Direito Administrativo Sérgio Ferraz acredita que podem existir ao menos três irregularidades cometidas por esses gestores. “A primeira é o exercício de uma competência que é prerrogativa do governo federal. O plano nacional de saúde não pode ser desrespeitado. Embora a saúde seja uma obrigação comum a União, estados e municípios, as diretrizes nacionais são postas pela União, então prefeitos e governadores não podem ir contra uma política nacional. Assim, existe aí uma inconstitucionalidade por incompetência.”

A segunda é o crime de responsabilidade, já que o gestor público que edita um decreto que representa um impedimento à concretização da política nacional de vacinação comete crime contra a população.

“A terceira e última é uma violação aos princípios da administração pública. Não só aqueles que estão na Lei de Improbidade, mas também aqueles que estão nos artigos 1º a 5º da Constituição. Isso constitui realmente motivo para um enquadramento como um ato de improbidade, e por essas razões eles poderiam ser realmente acionados”, afirma Ferraz.

O advogado Carlos Mourão, sócio fundador do escritório Nascimento e Mourão Advogados e ex-procurador do município de São Paulo, também acredita que a conduta desses gestores pode ser enquadrada como crime.

“O plano nacional de vacinação foi criado pela Lei 6259/75, que fixa a competência do Ministério da Saúde para elaborar e definir o programa de vacinação, inclusive o seu caráter obrigatório. É competência dos estados e municípios a execução do programa, estabelecido pelo ministério, mediante as Secretarias de Saúde. A recusa dos prefeitos e governadores poderá acarretar a responsabilidade criminal por negar a execução de lei federal sem recusa ou impossibilidade (inciso XIV do artigo 1° do Decreto-Lei 201/67).”

Improbidade complexa
O enquadramento dos autores dos decretos na Lei de Improbidade Administrativa, contudo, não é uma unanimidade. O advogado Clóvis Alberto Bertolini acredita que as alterações promovidas nessa norma pela Lei 14.230 afastaram a possibilidade de classificação dessas deliberações como atos de improbidade.

Apesar de o artigo 11, XXI, da Lei 8.429/1992 prever como improbidade a prática de publicidade que viole o sentido da Constituição Federal — como a edição de decretos de forma próxima ao período eleitoral —, é necessária a comprovação da intenção de prejudicar o funcionamento regular da administração pública, o que parece não ser o caso.

Bertolini, contudo, acredita que é possível questionar a validade desses decretos por meio da Lei de Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), que visa a proteger o adequado funcionamento da administração pública sob o ponto de vista da legalidade e da moralidade administrativa.

Zema defendeu que crianças deveriam estudar antes de se decidir pela vacina

O administrativista Gustavo Marinho, sócio do Warde Advogados, acredita que as possibilidades de enquadramento jurídico desses decretos são várias. “Quando prefeitos e governadores se rebelam contra o plano nacional de vacinação, violam o referido dispositivo legal, além de inúmeros princípios constitucionais, podendo ser severamente responsabilizados. São diversas as esferas de responsabilização: criminal, administrativa, política e até mesmo impeachment (crime de responsabilidade). Apenas a improbidade administrativa não pode ser aplicada, uma vez que as alterações implementadas pela Lei nº 14.230/2021 excluíram esta possibilidade. Mas há projeto de lei que objetiva qualificar condutas como essa como improbidade administrativa (PL 632/2020).”

O advogado e professor de Direito Constitucional do Mackenzie Alessandro Soares diz que o que torna essa situação difícil de ser enquadrada como improbidade é mesmo a questão do dolo. “É importante lembrar que, desde a reforma da lei, que aconteceu em 2021, tem um rol que, de início, é exaustivo. Ou seja, você tem de enquadrar a conduta do prefeito dentro daquele rol, ou dentro de alguma legislação especial que diga que essa conduta praticada pelos prefeitos é uma conduta que pode levar à improbidade.”

Soares acredita que é preciso analisar decreto por decreto para vislumbrar a possibilidade de prefeitos e governadores terem incorrido em improbidade. “Tendo a entender que existe uma inconstitucionalidade, existe uma ilegalidade, mas que não dá para, pelo menos de início, de um ponto de vista abstrato simplesmente, falar que é uma violação à legislação de improbidade administrativa.”

Decisão judicial
Na semana passada, o juiz Evandro Volmar Rizzo, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Criciúma (SC), decidiu suspender um decreto municipal que suspendia a exigência de esquema vacinal completo para matrícula e rematrícula escolar.

O julgador entendeu que dispensar a exigência de vacina contra a Covid-19 para matrícula e rematrícula viola decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema e o artigo 14, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na medida em que o Ministério da Saúde decidiu pela inclusão dessa vacina no Programa Nacional de Imunizações (PNI).

E o decreto estadual de Romeu Zema também está sendo questionado. No último dia 5, a deputada Beatriz Cerqueira (PT-MG) acionou o Ministério Público e a Defensoria Pública contra a medida.

Processo 5002310-48.2024.8.24.0020

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