Seguros Contemporâneos

A importância de se transformar a Susep em agência reguladora

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

8 de fevereiro de 2024, 8h00

O órgão regulador deve ser isento, imparcial e técnico. Ao iluminar determinado mercado, não pode ceder a pressões ou ser capturado politicamente, sob pena de colocar o exercício da regulação em xeque. Consumidores, fornecedores, integrantes das cadeias produtivas, entre outros participantes, cada qual à sua maneira, serão objeto da regulação como um instrumento em prol do desenvolvimento da atividade econômica em questão.

A contrario sensu, reguladores que cedem a pressões de grupos de interesse ou do próprio governo acabam por causar ineficiência e danos ao mercado respectivo, o que, e.g., retrata a história do Banco Central do Brasil (Bacen).

Lei de 2021
A Lei Complementar nº 179, de 24/2/2021, finalmente positivou a desejada autonomia do Bacen e foi festejada por célebres economistas brasileiros, entre outros, Ilan Goldfajn, Marcos Lisboa e Armínio Fraga. [1] Esta LC revogou diversos dispositivos da Lei nº 4.595, de 31/12/1964, diploma legal que, à época, estruturou o sistema financeiro nacional.

Algumas regras desta LC são dignas de nota:

– Os mandatos dos Presidente e dos Diretores do Bacen têm prazo fixo por 4 anos, e suas durações não coincidem com o mandato do Presidente da República, que os nomeará (art. 4º);
– As hipóteses de perda do mandato pelo Presidente e sua Diretoria são taxativamente previstas no diploma legal (art. 5º), o que evita pressões políticas as mais diversas;
– O art. 6º, importantíssimo àquilo que se deseja ressaltar neste ensaio, remete à ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira, pela investidura a termo de seus dirigentes e pela estabilidade durante seus mandatos. (Grifou-se).

Mandato fixo e estável
Ao reunir mandato fixo e estável, não coincidente com o do presidente da República, além de ausência de vinculação a ministério, tampouco de subordinação hierárquica de qualquer espécie, o país deu um salto de qualidade em termos do exercício da regulação por parte do Bacen, essencialmente porque este órgão deixou de ser objeto de políticas de governo, para passar a representar institucionalmente o Estado brasileiro.

Noutras palavras, o Bacen autônomo deve funcionar independentemente do governo da ocasião, predicado valiosíssimo em tempos de acentuada polarização política tanto no Brasil quanto no exterior.

A título ilustrativo, confira-se a lição de Armínio Fraga, antes ainda da publicação desta LC:

“No caso do Brasil, a história foi bem mais dramática. Até 1965 não havia sequer banco central. A emissão de moeda era responsabilidade da Superintendência da Moeda e do Crédito, a Sumoc, um departamento do Banco do Brasil, um banco comercial controlado pelo governo. O Banco Central foi criado em 1965 com mandato de cuidar da moeda, mas logo perdeu sua autonomia e passou a funcionar acomodando as pressões dos mandatários de plantão. Com o tempo a economia foi se indexando, o que enraizou ainda mais a inflação, que ao fim da linha chegou à hiperinflação. Teve papel crucial nesse trágico enredo a fragilidade das instituições orçamentárias do país. Importantes também as caraterísticas da federação, destacando-se na área monetária a existência de bancos estaduais, que se financiavam diretamente com o Banco Central. Idem para os bancos federais. […]
Ao longo dos últimos 20 anos, a independência do BC foi se estabelecendo de facto, em boa parte porque a sociedade entendeu que inflação baixa é uma conquista que beneficia a todos, sobretudo aos mais pobres. […] O Congresso considera hoje a formalização da independência do Banco Central. Penso que seria um avanço importante, que contribuiria para sustentar um sistema bem-sucedido. Sou defensor de primeira hora da ideia. Cabe apenas não nos esquecermos do pilar fiscal, sem o qual o sistema não para de pé.” [2]

Mercado de seguros
Os mercados bancário e de seguros, como é sabido, compõem algo maior, de envergadura vital ao desenvolvimento econômico brasileiro — o mercado financeiro. Se, pelo lado do mercado bancário pode-se festejar a promulgação da referida LC e a segurança institucional por ela positivada, isto não se vê no também importante mercado de seguros que, continua a ser objeto de regulação pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), tudo nos termos do vetusto Decreto-Lei nº 73, de 1966.

Spacca

Se o Bacen é autônomo, não vinculado a um ministério e não submetido a subordinação hierárquica, a Susep, conforme dispõe o artigo 35 do Decreto-Lei 73, é “entidade autárquica, jurisdicionada ao Ministério da Indústria e do Comércio, dotada de personalidade jurídica de Direito Público, com autonomia administrativa e financeira”.

No tocante à sua administração, “será exercida por um Superintendente, nomeado pelo Presidente da República, mediante indicação do Ministro da Indústria e do Comércio, que terá as suas atribuições definidas no Regulamento dêste Decreto-lei e seus vencimentos fixados em Portaria do mesmo Ministro“.

Vinculação da Susep
Como claramente se nota, a autonomia do Bacen cede espaço à vinculação da Susep e os mandatos fixos e estáveis daquele órgão não têm paralelo neste órgão, no qual a demissão ocorre ad nutum, isto é, ao gosto do Poder Executivo.

O CNSP, por sua vez, segundo o art. 33 do Decreto-lei 73/1966, representa um conjunto de autoridades vinculadas ao governo da ocasião. Os atributos de independência dele passam bem longe.

Em termos práticos, a regulação do mercado financeiro no País segue passos completamente distintos e contraditórios: se aos bancos assegura-se uma relação isenta, técnica e imparcial, o mesmo não se observa aos participantes do mercado de seguros: seguradoras, resseguradores, corretores, segurados, além das entidades de previdência complementar aberta e de capitalização.

Com as mudanças de governo bem características dos tempos modernos, como se disse, marcados por acentuada polarização, o mercado de seguros sofre com alterações de rumo permanentes de seu órgão regulador, o que resulta em potenciais capturas por grupos de interesses de ocasião.

Esta coluna teve como objeto trazer breves considerações a propósito dos mercados bancário e de seguros, mas poderia ir além. Se observarmos os mercados de óleo e gás (ANP), telecomunicações (Anatel) ou energia elétrica (Aneel), constataremos que suas agências reguladoras possuem as mesmas características do Bacen (autonomia, não vinculação hierárquica, mandatos fixos de seus dirigentes). [3] Ora, por que, então, o mercado de seguros não segue este mesmo passo? Trata-se, com efeito, de uma boa pergunta…

Projeto de lei
Tramita vagarosamente no Congresso o Projeto de Lei nº 5.277/2016 [4], cuja finalidade é, justamente, transformar a Susep em agência reguladora. De sua exposição de motivos, esta passagem bem sintetiza a reflexão que se deseja propor por meio deste breve ensaio:

“O atual ambiente regulatório resulta em frequentes mudanças de diretrizes e procedimentos impostos ao mercado supervisionado, causando volatilidade ao ambiente de supervisão e regulação. Parte da volatilidade resulta da ausência de requisitos mínimos para a nomeação do Superintendente e dos Diretores, os quais poderiam, a qualquer momento, ser exonerados sem publicação dos motivos de seus desligamentos.”

Assim como o mercado bancário clamou por regulação isenta, imparcial e técnica, o mercado de seguros também o faz. Os benefícios decorrentes da promulgação da LC nº 179/2021 são evidentes, sobretudo no sentido de gerar segurança jurídica e estabilidade a todos os stakeholders participantes desse mercado e, assim, fomentar mais investimentos.

Que nossas autoridades estejam atentas às reais necessidades do mercado de seguros.

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[1] Os depoimentos de Goldfajn, Lisboa e Fraga podem ser examinados no excelente podcast Casa das Garças, organizado pelo Instituto de Estudos de Pesquisas Econômicas (Iepe), a reunir preciosas lições de economia, crédito, juros, câmbio etc. https://open.spotify.com/show/5rGMCtnuZJjXmTePfv7qaF?si=9d3329526bf24c60, visitado em 30.01.2024.

[2] FRAGA, Armínio. Moeda, inflação e a independência para o Banco Central. Disponível em https://iepecdg.com.br/artigos/moeda-inflacao-e-a-independencia-para-o-banco-central/, visitado em 30.01.2024.

[3] A autonomia e os mandatos fixos dos diretores da ANP, ANATEL e ANEEL são observadas, respectivamente, nas Leis números 9.478/1997, 9.472/1997e 9.427/1996.

[4] Para informações ref. à tramitação do PL nº. 5277/2016 – https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2084394#:~:text=PL%205277%2F2016%20Inteiro%20teor,Projeto%20de%20Lei&text=Altera%20o%20Decreto%2DLei%20nº,operações%20de%20seguros%20e%20resseguros., visitado em 30.01.2024.

Autores

  • Sócio fundador de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados. Advogado e parecerista, é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Leciona na FGV Direito Rio, FGV Conhecimento, Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ e na Escola de Negócios e Seguros (ENS-Funenseg). É Membro dos Conselhos Editoriais da Revista de Direito Civil Contemporâneo – RDCC e da Revista Jurídica da CNSeg.

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