Opinião

Ilha de poder: o Banco Central como empresa pública

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30 de março de 2024, 6h02

Em desafio aos limites da noção de autonomia das entidades da administração pública indireta, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023, em tramitação no Senado, propõe-se a transformar o Banco Central, de autarquia, em empresa pública, sem vinculação ou subordinação a ministério, mas submetido a “supervisão” do Congresso.

A PEC 65/2023 é de iniciativa parlamentar, mas contou com participação de diretores do BC em sua elaboração, conforme declarou em 3/3/2024 seu atual presidente, Roberto Campos Neto, em entrevista à Folha de S. Paulo [1]. Para ele, “é importante o governo estar de acordo com a nossa proposta, que é um avanço institucional para o Brasil”.

Ao dar ao Banco Central roupagem de empresa pública, a PEC 65/2023 submete-o ao regime jurídico de direito privado, o qual coordena a convivência de particulares segundo o princípio da igualdade em ambiente especulativo.

Contudo, pelos termos da proposta, o BC seguirá exercendo “poder de polícia, incluindo poderes de regulação, supervisão e resolução, na forma da lei”, os quais caracterizam a posição sobranceira do Estado voltada ao atingimento de interesses gerais, segundo pressupostos do direito público e do regime jurídico administrativo.

De acordo com sua Justificação, a PEC 65/2023 caracteriza “proposta de evolução institucional do Banco Central do Brasil” com previsão de “garantia de recursos para que atividades relevantes para a sociedade sejam executadas sem constrangimentos financeiros”.

Assim, uma vez tornado o Banco Central empresa pública, provavelmente suas despesas deixarão de transitar pelas leis orçamentárias votadas no Congresso e passarão a ser objeto de deliberação e execução internas, sem riscos de contingenciamentos impostos pelo Executivo, notadamente quanto à política remuneratória de seu pessoal.

EBC
Banco Central sede

Com isso, isolar-se-á o BC do quadro de carências orçamentárias que incide sobre os órgãos e entidades públicas brasileiras.

A PEC 65/2023 — é certo — provoca questionamentos à luz de teorias administrativistas a respeito da submissão das atividades do Banco Central ao direito privado, e decerto ensejará, se aprovada, judicialização e abalo à segurança jurídica.

Constituição

Este artigo, porém, se ocupará de reflexões a partir do ponto de vista do direito constitucional sobre possível violação à cláusula pétrea da separação dos Poderes, na medida em que a autonomia que se pretende conferir ao Banco Central parece ser ainda mais robusta do que aquela reconhecida aos Poderes da República.

Diz-se parece ser porque a PEC 65/2023 é ambígua quanto à inserção do BC na estrutura organizacional do Estado brasileiro. Não é possível saber se seus proponentes almejam tornar o Banco Central um quarto Poder ou vinculá-lo ao Legislativo.

Com efeito, de um lado, a PEC 65/2023 enuncia que a “autonomia” do Bacen será caracterizada por “ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública e de tutela ou subordinação hierárquica”, a significar desvinculação do Executivo.

Essa regra exclui o Banco Central da incidência da norma do artigo 87, parágrafo único, I, da Constituição, que atribui aos Ministros de Estado o exercício da “orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência (…)”.

Assim, caso seja aprovada a PEC 65/2023, diversamente das demais empresas estatais federais, o BC será uma ilha de poder, não estando submetido às diretrizes, à coordenação e aos critérios de governança corporativa fixados atualmente pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), nos termos do artigo 32, VIII, da Lei 14.600/2023.

De outro lado, a PEC 65/2023 indica que a autonomia do Banco Central será exercida “sob supervisão do Congresso Nacional”, sem que se saiba o que se pretende com essa “supervisão”. Porém, no texto da Constituição atual, esse termo não é vazio de significação.

Todas as vezes em que aparece, é em contextos de controle interno, que é aquele exercido no interior de cada Poder. Vão nesse sentido as normas do artigo 87, parágrafo único, I (supervisão ministerial no âmbito do Executivo), do artigo 105, § 1º, II (supervisão exercida pelo Conselho da Justiça Federal no âmbito do Judiciário federal), e do artigo 111, § 2º, II (supervisão exercida pelo Conselho da Justiça do Trabalho no âmbito do judiciário trabalhista).

É plausível, portanto, a interpretação de que, em caso de aprovação da PEC 65/2023, o Banco Central passará a integrar a esfera do Legislativo. Não obstante, contraditoriamente, a PEC 65/2023 submete o Banco Central a fiscalização a ser exercida pelo Congresso “mediante controle externo”, o que sugere que a empresa pública não integrará a esfera do Legislativo.

Como se argumentará, em qualquer cenário, a PEC 65/2023 é problemática, ainda que consideremos que o constituinte originário não se ateve à fórmula clássica de tripartição de Poderes, que inseria todo órgão ou entidade em uma das três esferas: Legislativo, Judiciário ou Executivo.

Funções Essenciais à Justiça

De fato, no esquema proposto pela Constituição de 1988, em seu Título IV, “Da Organização dos Poderes” (arts. 44 a 135), além do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, constam outras três instituições estatais tidas como “Funções Essenciais à Justiça” (FEJ): o Ministério Público (artigos 127 a 130), a Advocacia Pública (artigos 131 e 132) e a Defensoria Pública (artigo 134).

Roberto Campos Neto, presidente do BC

Nenhuma das FEJ exerce poder de império estatal, mas o constituinte as considerou fundamentais para que o exercício do poder ocorresse conforme premissas democráticas, como tive oportunidade de expor em artigo publicado em 2013 nesta revista [2].

Conquanto localizadas no Título IV da Constituição fora dos três Poderes, em 1988 não se reconheceu explicitamente autonomia frente ao Executivo a duas das três FEJ estatais. Diversamente do Ministério Público, que foi dotado de autonomia funcional, administrativa e orçamentária desde logo, o constituinte foi menos generoso com a Advocacia Pública e a Defensoria Pública, instituições às quais não cuidou de atribuir formalmente autonomia, de modo que, na prática, elas ficaram vinculadas ao Executivo.

Contudo, desde 1988, havia a compreensão de que a Advocacia Pública e a Defensoria Pública seriam instituições que não cabiam nas entranhas dos Poderes. Mas, ao contrário do Ministério Público, que já era bem estabelecido ao final da década de 1980, a Advocacia Pública e a Defensoria Pública eram instituições em fase inicial de amadurecimento.

No caso da Defensoria Pública, um primeiro avanço em termos de autonomia se registrou com a Emenda Constitucional (EC) 45/2004, mais conhecida como “Reforma do Judiciário”, que lhe assegurou, no artigo 168 da Constituição, o repasse de recursos correspondentes às dotações orçamentárias segundo a sistemática de duodécimos, emulando sistemática do Legislativo, Judiciário e Ministério Público.

ADI 5.206

Marco mais significativo para a Defensoria veio dez anos mais tarde, com a EC 80/2014, oriunda de proposta de iniciativa parlamentar, que teve a propriedade de consagrar-lhe autonomia funcional, administrativa e orçamentária. Porém, conquanto pudesse ser vista como desdobramento de ideia que havia sido lançada em 1988 e reforçada pela EC 45/2004, a EC 80/2014 veio a ser questionada pela Presidência da República, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.296 no Supremo Tribunal Federal (STF).

O autor da ADI 5.296 argumentou que a EC 80/2014 seria inconstitucional por vício de inciativa, pois caberia ao chefe do Executivo propor alteração referente a servidores da União ou a seu regime jurídico.

Contudo, em novembro de 2020, por maioria, vencido o ministro Marco Aurélio, na forma do voto da relatora ministra Rosa Weber, esse vício foi rejeitado, pois se entendeu que não se poderia confundir iniciativa reservada de projetos de lei com iniciativa de emendas à Constituição.

O STF também entendeu na ADI 5.296 que a formalização de autonomia para a Defensoria não encontraria empecilho na separação dos Poderes. Presentes as garantias assemelhadas de autonomia para o Ministério Público, a relatora considerou que a EC 80/2014 representava “paralelismo entre as instituições essenciais à função jurisdicional do Estado que atuam na defesa da sociedade, sem desbordar do espírito do Constituinte de 1988”.

Ao mesmo tempo, a relatora ponderou que o reconhecimento de autonomia à Defensoria “não significa que necessariamente e sempre serão legítimas alterações, de outra ordem, ou em outros segmentos”, sendo necessária a análise caso a caso, “consideradas a natureza da atividade envolvida e sua essencialidade para a preservação da integridade do núcleo do Poder em que se insere”.

E arrematou: “sem embargo da relevância das atribuições que a Defensoria Pública detém, não guardam elas vinculação direta à essência da atividade executiva”.

Já o ministro Gilmar Mendes, embora acompanhasse a relatora, mostrou preocupação com a consagração de autonomia a instituições públicas, pois seria processo que “engendra imensas dificuldades, por criar uma ‘poliarquia’ dividida em ‘ilhas de poder’ na estrutura do Estado”.

Para o ministro, “poderíamos estar a desenhar um modelo que agravasse a dificuldade de governança, já tão complicada, especialmente no momento de crise no qual estamos inseridos, o que se mostraria perigoso ao desenvolvimento do modelo concebido originalmente pelo texto constitucional”.

A EC 80/2014 e o julgamento da ADI 5296 nos mostram que a equação de separação de Poderes traçada em 1988 não é intocável. É possível, sim, que tenhamos aprimoramentos e ajustes, por meio de emendas, sem que possamos falar em afronta à separação dos Poderes. Porém, nem tudo é possível nessa seara: há um núcleo essencial a ser protegido.

Função do BC

Para o Banco Central, a tese extremada de autonomia é difícil, pois ele não se encontra regulado no Título IV da Constituição. Aliás, uma de suas principais funções, a de emissão de moeda, está enunciada no artigo 164, que faz parte do Título VI, “Da Tributação e do Orçamento”. Assim, uma análise formal/topográfica da Constituição vigente não ajuda o Banco Central a emplacar autonomia extremada, ainda que por meio de emenda.

Além do exercício da política monetária, o Banco Central brasileiro exerce ainda poder de polícia, a exemplo da fiscalização sobre instituições financeiras e da concessão de autorização para seu funcionamento (artigo 10, IX e X da Lei 4.595/1964), atividades que não podem ser desempenhadas por entidades soltas no ar. Afinal, o poder de polícia é indissociável da ação executiva do Estado, que envolve a efetivação de medidas legais “de condicionamento da liberdade e da propriedade dos agentes financeiros em função do bem-estar social[3], sob regime jurídico de direito público.

A propósito, não socorre à PEC 65/2023 o fato de o STF, ao decidir em 2010 o Recurso Extraordinário (RE) 633.782, ter reconhecido que a BHTrans, uma sociedade de economia mista de direito privado, pode exercer poder de polícia por meio da aplicação de multas de trânsito.

Isso porque o estatuto jurídico da BHTrans é diferente daquele quadro extremado de autonomia que se pretende dotar o BC. Basta observar que, nos termos da Lei de Belo Horizonte 5.953, de 1991, coube ao Prefeito a tarefa de constituir e organizar a BHTrans, ao passo que a PEC 65/2023 transforma, ela mesma, o Banco Central em empresa pública, sem participação do Executivo.

Além disso, a Lei Municipal prevê que o estatuto da BHTrans deve ser aprovado por decreto do prefeito (§ 2º, do artigo 1º), atribuindo ao Secretário Municipal da Coordenação de Política Urbana e Ambiental a presidência do Conselho de Administração (artigo 9º), sendo certo que a PEC 65/2023 está longe de atribuir ao Ministro da Fazenda a presidência do Banco Central.

O problema da PEC 65/2023 em termos constitucionais não está propriamente no exercício de poder de polícia pelo Banco Central transformado em entidade de direito privado. Esse é um problema — sério — para o direito administrativo.

A dificuldade constitucional, à luz da separação de Poderes, surge quando se percebe que a autonomia proposta envolve desvinculação do Executivo, indo além da autonomia de que gozam as empresas públicas em geral e daquela bem modesta de que dispõe a BHTrans.

Seja como quarto Poder, seja como estrutura de funções executivas compreendidas estranhamente no Legislativo, o Banco Central tornado empresa pública nos termos da PEC 65/2023 perturbará o núcleo essencial da separação de Poderes desenhada em 1988.

Será um grande teste de estresse, pois representará agravo à integridade do Executivo. E certamente veremos a propositura de ADIs, de modo que o STF será chamado a validar ou invalidar o que pode ser um decisivo passo rumo a uma concepção de Estado marcada por um conjunto descoordenado de ilhas de poder.

 

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[1] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/03/bc-esta-disposto-a-sentar-com-governo-para-debater-autonomia-ampla-diz-campos-neto.shtml. Acesso em 26/3/2024.

[2] Disponível em https://www.conjur.com.br/2013-ago-20/pablo-luciano-advocacia-publica-vitima-serie-equivocos/. Acesso em 26/3/2024.

[3] BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 3 ed. V. 1. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 36.

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