Opinião

Feudalismo regulatório reage ao avanço do verificador independente

Autor

  • Riley Rodrigues de Oliveira

    é economista e assessor especial da Secretaria de Estado da Casa Civil do Governo do Rio de Janeiro com 17 anos de experiência como consultor em projetos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco Mundial.

10 de março de 2024, 7h08

Tenho acompanhado, nos últimos meses, o crescimento junto a agentes reguladores de posições mais extremadas e defesa de ações contra a figura do verificador independente nos contratos de concessão e parcerias público-privadas.

As justificativas sempre desaguam na defesa de um inexplicável feudalismo. Analistas, especialistas e conselheiros de agências reguladoras chegam a dizer claramente que o verificador independente representa a redução das atribuições das agências. Não é verdade e sabem disso.

Outro argumento é de que que não há independência se quem paga o verificador é a concessionária. Recorrem mais de uma vez ao argumento de que existe decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre o tema, mas esquecem que se tratava de análise específica (como todos os processos de tribunais de contas) no âmbito da modelagem das concessões das rodovias BR-153/414/080/TO/GO [5] e BR-163/230/MT/PA e das Florestas Nacionais de Canela e São Francisco de Paula (RS).

Nesses casos, o TCU foi firmemente contrário à presença do verificador independente nas modelagens. O tribunal (que sabemos — embora muitos ajam como se não soubessem — não integra a estrutura do judiciário, mas do Legislativo), argumentou, como principais pontos:

  1. A fiscalização do cumprimento das condições da concessão e das cláusulas contratuais pelas concessionárias cabe ao poder concedente, devendo ser desempenhada diretamente por ele ou por entidades a ele conveniadas (ANTT e ICMBio, respectivamente, nos casos analisados) — note que, em nenhum contrato, decisões regulatórias são transferidas para o verificador, que atua no apoio às agências reguladoras e ao poder concedente na análise da execução dos contratos, no que tange, principalmente, ao cumprimento de metas e dos indicadores de desempenho;

  2. A dificuldade de se estabelecer a independência e isenção do avaliador, quando contratado e remunerado diretamente pela concessionária, em relação jurídica regida pelo direito privado, que escapa da jurisdição do poder concedente e do TCU, nos termos do §2º do artigo 25 da Lei Federal nº 8.987/1995 — note que a independência é garantida através de  uma estrutura adequada de compliance e governança estabelecida nos editais e contratos e que, aqui, a preocupação maior era que a relação “escapava do controle” do poder concedente do TCU;

  3. A contradição intrínseca à atuação do verificador independente que, embora tenha sido concebido para ser isento, é dependente economicamente do parceiro privado (quando por ele contratado) a quem deve fiscalizar, o que tende a impedir uma atuação efetiva e independente — novamente, ao apontar contradição na atuação do verificador independente, ignora as contradições de agências reguladoras e órgãos de controle como os próprios tribunais de contas, cujos membros diretivos são nomeados pelos governantes, notadamente pelos executivos e legislativos, muitas vezes sem que carreguem a competência técnica e o mínimo conhecimento das áreas reguladas, o que cria, até pelo estatuto da recondução ao cargo, uma contradição em relação à necessária independência.

Como pode ser visto, todos os argumentos usados pelo TCU contra o verificador independente podem receber uma leitura crítica em direção às agências reguladoras e tribunais de contas dos estados e do distrito federal. E, honestamente, em proporção, quantos escândalos são conhecidos em contratos de concessão envolvendo poder concedente, tribunais de contas, agências reguladoras e verificadores independentes?

Ao citarem o TCU, muitos se esquecem de outro ponto: ressalvadas exceções muito específicas, o TCU não tem competência para se manifestar sobre a modelagem de projetos de outros entes da federação. Óbvio que suas decisões e entendimentos têm relevância nos demais tribunais de contas por ser considerado órgão-paradigma nesse âmbito do controle.

Divulgação/TCU

Mas se o TCU ditasse todas as regras a serem seguidas, não existiria TCEs e, fazendo um paralelo, com a existência da ANA, ANTT, Aneel, Anvisa, por exemplo, não seria necessário haver agências reguladoras estaduais e distritais. Fechemos todos os TCEs e agências reguladoras estaduais e distritais e vamos economizar bilhões de reais que ficarão liberados para os governos investirem.

Em defesa do verificador independente

Defendo essa medida? Claro que não, mas quando se abre o coco de tucumã não se pode mais capturar o que escapa e voltar a fechar como se nada tivesse acontecido (sou txucarramãe, por isso a referência que, para simplificar, é basicamente a mesma história grega da caixa de pandora).

No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, temos agências que regulam serviços de saneamento (abastecimento de água; esgotamento sanitário e resíduos sólidos), energia (abastecimento de gás natural) e transportes (rodoviário — ônibus intermunicipais; aquaviário — barcas; trens metropolitanos e metrô).

Discute-se, nesse momento, um convênio com a ANP para o estado atuar, em parceria, no setor de extração de petróleo e gás, no qual estima-se que haja grande prejuízo para a arrecadação do estado, de acordo com CPI da Alerj. O Inea não é agência reguladora, mas atua diretamente nesta linha no que se refere ao ambiente.

Por meu lado, defendo que, pela importância para o desenvolvimento do estado, em especial pela capacidade de geração de receitas, deveria haver uma agência reguladora que integrasse as atividades ligadas ao ambiente e ao extrativismo mineral, que inclui a mineração comumente entendida e, por exemplo, extração de água de aquíferos e demais corpos hídricos fora da atividade de abastecimento público, atividades reguladas pelo Departamento de Recursos Minerais (DRM) e (quando em convênio) pela Agenersa.

Normalmente, quando vejo ataques pesados contra a figura do verificador independente, nunca encontro nos discursos a defesa veemente das responsabilidades da atividade regulatória, mas sempre a defesa incondicional dos poderes dos agentes reguladores. Vejo também que essa discussão se divide em dois grupos, os moderados e os extremistas.

Os moderados defendem que, na contratação do verificador independente, independentemente de quem irá efetuar o pagamento, essa deva ocorrer através de licitação realizada pelo poder público, com ampla concorrência, como forma de evitar que o contratante selecione discricionariamente aquele que mais lhe interessa e lhe será mais alinhado.

Já os extremistas são da linha “hay gobierno, soy contra”, chegando a afirmar que abrir concorrência para a contratação de verificador independente é o primeiro passo para dar ao verificador atribuições regulatórias. Ignorância, para ser gentil na escolha das palavras. Verificador independente não pode assumir funções regulatórias, que são atribuições governamentais estabelecidas por leis. Seus limites de atuação são claros e, se não forem, basta recorrer a órgãos como as procuradorias gerais e Ministério Público para que sejam. Vejamos, por exemplo:

“O verificador independente não substitui, nem afasta o exercício do poder de fiscalização da agência reguladora no âmbito da concessão.”

O item 3.6 do Anexo V — Disposições para contratação de verificador e certificador independentes, nos contratos de concessão dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário nos municípios do estado do Rio de Janeiro dá a dimensão exata dos limites de atuação e competências do verificador independente. No caso do certificador independente, os mesmos limites são impostos pelo item 5.3. Ou seja, não há abdução de competências, atribuições e responsabilidades que são inerentes à agência reguladora.

O contrato é mais explícito ao estabelecer, no item 2, o escopo dos serviços a serem prestados pelo verificador independente, o que se repete no item 5 em referência ao certificador independente. Os itens 1 e 4 estabelecem as disposições gerais sobre o verificador e o certificador independentes, assim como os itens 3 e 6 trazem os regramentos de competência e compliance para a contratação do verificador e do certificador independentes.

Sobre a responsabilidade de realizar a contratação e o custeio, o item 3.1 é cristalino ao afirmar que “a contratação do verificador independente e a respectiva remuneração caberá à agência reguladora, nos termos das diretrizes dispostas neste anexo”, repetindo a sistemática para o caso do certificador independente, no item 6.1.

A agência reguladora optou para, dentro dos critérios, contratar a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), entendendo não haver necessidade de realizar licitação. Destaca-se, a decisão foi a agência reguladora, a quem verificador e certificador independente estão subordinados na estrutura de governança, mas com independência na elaboração de seus pareceres.

Ou seja: a figura do verificador independente ou congêneres não retira responsabilidades das agências reguladoras. É apenas mais um elemento de fiscalização do cumprimento dos contratos, notadamente dos indicadores de desempenho e das metas.

Criação das agências reguladoras

Mas, para os curtos de memória, um pouco de história faz bem: as agências reguladoras foram criadas a partir de 1997 no governo Fernando Henrique Cardoso com o objetivo de fiscalizar a qualidade do serviço e estabelecer normas para diversos setores.

O objetivo fulcral da criação das agências era garantir previsibilidade para investidores que pudessem se interessar em aportar recursos em serviços até então de controle estatal.

Em 2003, em seu primeiro ano como presidente, Luiz Inácio Lula da Silva disse que pretendia mudar o papel das agências reguladoras, que, segundo ele, estavam independentes demais.

Um ano depois enviou um projeto de lei ao Congresso que pretendia dar aos ministérios mais controle sobre as agências reguladoras. O projeto, que não avançou, ficou conhecido como Lei Geral das Agências Reguladoras.

Passada uma década, em 2013, Dilma Rousseff, então presidente, pediu para retirar da pauta do Congresso o projeto do governo, o que abriu espaços para que avançasse um novo texto, do Legislativo.

O texto determina, entre outras medidas, que cabe ao Senado aprovar ou vetar as indicações que o presidente da República fizer para a direção das agências. O modelo é adotado nos estados e a aprovação dos indicados às agências cabe às Assembleias Legislativas. Em 2019, foi publicada a Lei nº 13.848, ou Marco Legal das Agências Reguladoras.

Destaca-se que essa lei só se aplica às agências federais. Cada estado possui sua legislação específica. Por exemplo, no Rio de Janeiro temos, simplificadamente, a Lei Estadual nº 4.556/2005, que “cria, estrutura, dispõe sobre o funcionamento da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa), e dá outras providências”, e o decreto nº 38.618 de 8 de dezembro de 2005, que “regulamenta e fixa a estrutura administrativa, atribuições e normas de funcionamento da agência”.

Retomando: o verificador independente é uma terceira parte nos contratos, isento do poder concedente e da concessionária. Suas atribuições são, como no modelo do saneamento no Rio de Janeiro, definidas de forma pétrea no contrato de concessão, permitindo que exerça papel de aferidor, mensurador e fiscal independente, responsável por calcular, com base em parâmetros técnicos e objetivos, a nota de desempenho da concessionária, sem jamais invadir a competência regulatória, exclusiva da agência reguladora.

Destacando que, no caso do Rio de Janeiro, a presença do verificador e do certificador independentes passou por todos os crivos da PGE, Agenersa, TCE, MP-RJ e licitantes. Foram pedidos esclarecimentos, que foram dados, sem que jamais se discutisse o impedimento da figura no processo ou quaisquer riscos de haver invasão de competência. Também não houve reação contra suposta perda de poder, que não existe, por parte dos agentes reguladores.

Conclusão

A figura do verificador independente e congêneres nos contratos de concessão é salutar. Precisa que os limites de atuação e responsabilidades sejam claramente definidos nos contratos e que sua seleção ocorra sem interferências do poder concedente e da concessionária, inclusive quando cabe a esta pagar pelas atividades. Por isso o melhor modelo de seleção, na minha opinião, é o concurso público.

Há no mercado muitas empresas com expertise como verificadores independentes, mas nem toda expertise atende aos critérios técnicos de atividades específicas, por isso os editais para contratação devem ser claros e se restringirem à atividade demandada.

O verificador independente não invade competência das agências reguladoras (seja no âmbito federal, estadual ou distrital), que são definidas por legislação específica. De todos os ataques que tenho visto à figura do verificador independente, em nenhum, depois de filtrar a semântica, consegui identificar a defesa da responsabilidade regulatória, mas sempre encontrei a defesa de feudos de poder por parte de grupos de agentes reguladores.

Muitos defendem posições tão extremistas que podem acabar por abrir o Coco de Tucumã e, ao invés de preservar seus pseudo poderes, acabarem descobrindo que, nesse novo mundo, que aposenta velhas práticas, têm ainda menos responsabilidades do que imaginam.

Autores

  • é economista e assessor especial da Secretaria de Estado da Casa Civil do Governo do Rio de Janeiro, com 17 anos de experiência como consultor em projetos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco Mundial.

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