Opinião

Os objetivos múltiplos do Banco Central: como se articulam e se medem

Autor

  • Jefferson Alvares

    é procurador do Banco Central e mestre por Harvard foi advogado do Fundo Monetário Internacional membro do secretariado do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB) e consultor do Banco Mundial.

23 de março de 2024, 6h39

Em artigo nesta ConJur, Élida Graziane Pinto convida a discutir os efeitos da atuação do Banco Central  sobre a dívida pública. Sustenta que a autonomia que a Lei Complementar (LC) 179, de 2021, lhe outorgou estaria desacompanhada de critérios e procedimentos para aferir a efetivação dos seus objetivos legais. Para sanar o problema, defende a edição de decreto disciplinando a articulação entre as suas finalidades e a aferição do desempenho dos seus dirigentes em atingi-las.

A compreensão e a crítica de como os objetivos institucionais do BC se encadeiam e de como se mede o sucesso em alcançá-los exigem familiaridade com o regime jurídico do Bacen e com os conceitos econômicos e financeiros que o informam.

Com esse intuito, este artigo discute as mudanças da LC 179 ao mandato do BC, isto é, aos seus objetivos e funções. De início, aborda a evolução do mandato do BC em relação ao regime jurídico anterior. A seguir, discorre sobre os seus objetivos e sobre os critérios e meios para aferir a sua efetivação. Por fim, discute a remoção dos seus dirigentes por insuficiência de desempenho para atingir os fins do BC.

A evolução do mandato do BC

A LC 179 atribuiu objetivos próprios ao BC: um primário — assegurar a estabilidade de preços — e quatro secundários e concorrentes – zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Também lhe confiou o manejo quase pleno das políticas mais relevantes para o controle da inflação, como se verá.

Anteriormente, sob a Lei 4.595, de 1964, o objetivo do BC cingia-se a cumprir as normas do Conselho Monetário Nacional (CMN), expedidas na formulação da política da moeda e do crédito (PMC). Esta consistia num conjunto de funções de controle dos mercados monetário, cambial e creditício visando ao progresso econômico e social.

Tais funções abrangiam o controle do volume de dinheiro em circulação via a emissão monetária, os depósitos compulsórios e as operações de assistência de liquidez e com títulos públicos. Também compreendiam a política cambial, a regulação e a supervisão bancária, e a vigilância do sistema financeiro.

Cada uma dessas funções possuía fins específicos e concorrentes entre si, ficando a sua priorização sob a alçada do CMN, na ausência de parâmetros legais. Esses propósitos abrangiam a prevenção de surtos inflacionários ou deflacionários, a prevenção de depressões econômicas e outros desequilíbrios conjunturais, o equilíbrio dos pagamentos externos, o desenvolvimento inter-regional harmônico, a eficiência do sistema de pagamentos, e a liquidez e a solvência bancária.

Reprodução

A LC 179 suprimiu do âmbito da PMC as funções e os objetivos relativos ao controle do mercado monetário, atualizando a sua concepção econômica e transferindo a sua titularidade do CMN para o BC. Assim, a política de agregados monetários deu lugar à política de juros, os objetivos concorrentes de outrora condensaram-se na estabilidade de preços, e tanto aquela função como este objetivo passaram para a responsabilidade do BC.

Ademais, este adquiriu plenos poderes sobre os instrumentos relevantes para a execução da política monetária, nomeadamente a emissão de moeda, os depósitos compulsórios e voluntários, a assistência de liquidez, e as operações com títulos públicos.

Não obstante extrair a política monetária da esfera da PMC e, por consequência, do CMN, a LC 179 manteve a competência deste para estabelecer as metas de política monetária. Como resultado, privou o BC de definir os contornos do seu principal objetivo, a estabilidade de preços, determinando as metas de inflação.

Detrás dessa escolha do legislador está a concepção de que o poder político é quem teria legitimidade para definir o nível de inflação ótimo para a sociedade, partindo do pressuposto de que mais inflação levaria a menos desemprego. No entanto, a relação que outrora existiu entre os níveis de inflação e de desemprego já não se verifica.

Por essa razão, na prática internacional os próprios bancos centrais detêm competência para interpretar o seu mandato de estabilidade de preços, fixando as metas e as estratégias de política monetária. É o que se passa, por exemplo, com o Banco Central Europeu (BCE) e a Reserva Federal (FED) dos Estados Unidos, os quais regularmente revisam as suas metas e estratégias de política monetária [1].

No que tange ao controle do mercado cambial, a LC 179 foi menos harmônica. Por um lado, suprimiu a regulação do valor externo da moeda do domínio da PMC. Mas, por outro lado, manteve a atribuição do CMN de disciplinar a política cambial, aí incluída a definição do regime pertinente: fixo, flutuante, ou administrado. A manutenção dessa atribuição na esfera do CMN furta ao BC a escolha do regime cambial mais adequado para controlar a inflação.

É que o regime cambial delimita a eficácia da política de juros em controlar a inflação. Grosso modo, a taxa de juros é eficaz no regime de câmbio flutuante, mas não no regime de câmbio fixo, a menos que haja controles de capitais. Já no regime de câmbio administrado, a taxa de juros é menos eficaz do que no regime flutuante, e a política monetária passa a depender de dois instrumentos: o câmbio e os juros. Dada a condicionante entre as políticas cambial e monetária e o controle da inflação, o poder de disciplinar a primeira deveria corresponder ao BC.

Em relação ao controle da atividade creditícia, o terceiro pilar da PMC, a LC 179 manteve-o inalterado. O CMN continuou a cargo de formular a regulação prudencial e de disciplinar o exercício da supervisão bancária e da vigilância do mercado financeiro pelo BC. Essa opção por manter o status quo não se harmoniza à decisão de tornar o BC responsável pela estabilidade financeira.

Isso porque as funções que permaneceram a cargo do CMN estão afetas justamente à persecução da estabilidade financeira, devendo, pois, ser da competência do BC. Essa desconexão entre objetivo e funções é agravada pelo fato de que os objetivos legais do CMN na formulação da PMC não correspondem à estabilidade financeira [2].

Os objetivos do BC e a sua interação

A estabilidade de preços é considerada atualmente a finalidade primária dos bancos centrais, seguida, secundariamente, pela estabilidade do sistema financeiro. A atribuição de outros objetivos é desaconselhada, a fim de preservar a eficiência da sua atuação. Contudo, qualquer que seja o número de objetivos, é essencial que a lei estabeleça a sua ordem de prioridade, vinculando o banco central à valoração do legislador e definindo balizas para a sua atuação e prestação de contas.

No caso brasileiro, a LC 179 conferiu prioridade apenas à estabilidade de preços, tratando os demais objetivos como concorrentes entre si implicitamente. Na prática, isso significa que, ao sopesar a adoção de políticas que possam afetar os seus objetivos de maneira distinta, o BC deverá decidir pela que seja mais compatível com o controle da inflação. Na hipótese de esse estar assegurado, terá então liberdade para privilegiar qualquer dos outros objetivos subsidiários.

Isso não significa que, ao perseguir a estabilidade de preços, o BC possa descurar dos demais objetivos, sob pena de gerar custos sociais superiores ao do cenário inflacionário ou deflacionário combatido. Por exemplo, seria contraproducente elevar a taxa de juros a ponto de estressar o sistema bancário e prejudicar os canais de transmissão da política monetária, ou de produzir uma recessão de impacto superior ao benefício obtido com a queda da inflação. O mesmo cálculo se aplica a uma redução tão intensa dos juros para debelar uma deflação que elevasse o apetite por risco do sistema financeiro para além de limites toleráveis.

Spacca

Estes exemplos ilustram como a estabilidade financeira e a suavização dos ciclos econômicos podem integrar as políticas de estabilidade de preços. Contudo, não se pode antever como as três variáveis se apresentarão em conjunturas distintas, não havendo como normatizar ex ante a sua interação. A melhor técnica teria sido conferir prioridade legal à estabilidade financeira, conforme a prática consolidada após a crise financeira global. Na falta dessa hierarquização, é incerta a ordem de importância que o BC lhes atribuirá ao definir a estratégia de controle da inflação.

Essa incerteza é intensificada pela inscrição da eficiência financeira e do pleno emprego como objetivos concorrentes aos outros dois. Tome-se o cotejo entre a estabilidade e a eficiência do sistema financeiro. A ausência de uma ou da outra resulta em perdas de bem-estar social, o que as torna bens públicos desejáveis.

No primeiro caso, tal perda ocorre pela produção de externalidades negativas na forma de crises financeiras; no segundo, pela apropriação de riqueza social devido a assimetrias de informação e estruturas concorrenciais imperfeitas. Ocorre que, no curto prazo, a instabilidade do setor financeiro produz custos sociais de magnitude muito maior do que a ineficiência das instituições, dos mercados ou dos instrumentos financeiros, cujos custos se propagam por horizontes mais longos. Por essa razão, a estabilidade deveria preceder a eficiência no mandato do BC.

Não estipulando essa hierarquia, a LC 179 possibilitou ao BC preferir a eficiência à estabilidade financeira, conforme o seu juízo de oportunidade e conveniência. Tal preferência poderia materializar-se na recusa a prestar assistência de liquidez a certo banco para evitar distorções à concorrência, ou na hesitação a resolver um banco sistêmico por temor de elevar a concentração bancária, situações limítrofes muito discutidas internacionalmente durante a crise financeira global. Apesar de ser improvável que o BC atuasse dessa maneira, legalmente nada o impediria.

Igualmente, o pleno emprego e a suavização das flutuações da atividade econômica são bens públicos desejáveis, mas nem sempre complementares. Como o nível máximo de emprego não é diretamente mensurável, uma política monetária direcionada a atingi-lo poderia levar a flutuação econômica excessiva. Nessa hipótese, haveria dúvida sobre qual dos dois objetivos o BC faria prevalecer.

Para sanar os inconvenientes de possuir múltiplos objetivos concorrentes subordinados à estabilidade da moeda, o BC poderia estabelecer a priori os parâmetros que norteariam o seu juízo de valor no cotejo entre as suas diferentes finalidades. Esta é a solução que o BCE e a Fed adotam, como visto anteriormente.

A avaliação do cumprimento dos objetivos do BC

Avaliar o cumprimento dos objetivos do BC é uma tarefa qualitativa, amparada em dados quantitativos. À exceção da estabilidade de preços, sujeita a uma métrica objetiva — a meta de inflação —, os demais objetivos não se resumem a uma variável singular. Assim, a estabilidade financeira não se avalia somente com base em indicadores de risco sistêmico ou em coeficientes prudenciais bancários.

O mesmo se aplica à eficiência do setor financeiro, que não se mede apenas por meio de indicadores de concentração de mercado ou de inclusão e proteção do consumidor. Idem no que se refere à estabilização dos ciclos econômicos e ao máximo emprego.

A autonomia acarreta para os bancos centrais deveres mais estritos de transparência e prestação de contas. O padrão internacional está condensado no Código de Transparência de Bancos Centrais do Fundo Monetário Internacional [3].

A praxe é que a prestação de contas ocorra aos poderes constituídos e à sociedade em geral, por meio de auditorias independentes, relatórios anuais, relatórios temáticos, por exemplo de inflação e estabilidade financeira, e audiências públicas.

Todos esses elementos estão presentes no regime jurídico do BC, que abrange os deveres de publicar demonstrações financeiras trimestrais e balanço anual auditado e acompanhado de relatório de gestão; submeter semestralmente ao Congresso Nacional relatório de política monetária e, ao Senado Federal, relatório de estabilidade financeira; e comparecer às comissões do Congresso.

Exoneração por desempenho insuficiente

Caso o BC falhe em atingir os seus objetivos reiteradamente, e tal falha se possa atribuir ao desempenho da sua diretoria como um todo ou de qualquer dos seus membros, a LC 179 permite ao presidente da República exonerá-los. A iniciativa da medida cabe ao CMN e a sua efetivação depende da aprovação do Senado.

A permissão para remover os dirigentes de bancos centrais por insuficiência de desempenho é temerária. É que essa faculdade pode ser utilizada para contornar a autonomia da autoridade monetária em caso de divergências com o governo. A experiência internacional é fértil em exemplos, os quais refletem a incapacidade das instituições de absorver a tensão oriunda de visões discrepantes, seja por falha de concepção ou imaturidade institucional. Casos emblemáticos incluem o afastamento dos chefes dos bancos centrais da Argentina, em 2010; Turquia, por três vezes desde 2019; Nigéria, em 2023; e em breve, ao que tudo indica, Polônia.

Mesmo no Brasil, há poucos meses o governo aventava dar início ao processo de remoção do presidente do BC por discordar da sua política monetária ortodoxa e suspeitar da sua imparcialidade política devido a laços com o governo anterior. A motivação oficial seria o desatendimento da meta de inflação por dois anos consecutivos, não importando a justificativa do BC de que o descumprimento decorrera do aumento global da inflação durante a pandemia de Covid-19.

Dada a possibilidade de que a hipótese legal de exoneração dos dirigentes do BC por insuficiência de desempenho seja invocada para intervir indevidamente nas suas decisões, é imprescindível que o presidente da República regulamente o dispositivo em bases objetivas. É também essencial prever um rito processual que contemple a ampla defesa e o contraditório ao dirigente objeto da medida.

Conclusão

A LC 179 acertou ao priorizar o controle da inflação, mas não ao estipular para o BC múltiplos objetivos subsidiários e concorrentes, o que desfavorece a sua atuação focada e eficiente e enfraquece a objetividade da avaliação da sua atuação. O BC poderia mitigar esses inconvenientes definindo a priori a sua estratégia para articular as finalidades objetivos e definir a sua ordem de prioridade em cada caso.

Não há necessidade de decreto para tanto, bem como para instituir mecanismos de prestação de contas diversos dos que já constam em lei — o que, aliás, seria ilegal. O decreto seria relevante, isto sim, para estabelecer critérios objetivos e um rito que contemplasse as garantias constitucionais para exonerar qualquer dirigente do BC por insuficiência de desempenho, fechando assim as portas para o arbítrio.

 

*Este artigo reflete a posição do autor, não a institucional do Banco Central.

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[1] European Central Bank, The ECB’s monetary policy strategy statement, 8 jul. 2021; Federal Open Market Committee, Statement on Longer-Run Goals and Monetary Policy Strategy, 30 jan. 2024.

[2] Cf. Lei 4.595, 1964, art. 3º.

[3] International Monetary Fund, The Central Bank Transparency Code. IMF Policy Paper, Jul. 2020.

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