Opinião

Sistema acusatório: o artigo 385 do CPP precisa ser reformado?

Autor

6 de fevereiro de 2024, 6h02

Ninguém questiona que o processo penal brasileiro precisa de constante aprimoramento. No entanto, temos visto um verdadeiro entusiasmo irrefletido em torno desse novo “Deus ex machina” que aparece para solucionar tudo: o sistema acusatório. A nova vítima desse entusiasmo é o artigo 385 do CPP. Será que esse artigo tão demonizado é realmente esse monstro que dizem que ele é?

Vejamos
Quando ocorre um crime, surge um direito de punir para a sociedade, que decorre da violação da lei penal, e a ação penal é o meio de se ver reconhecido esse direito.

“O direito de punir”, bem observa Battaglini, “não é único e constante na sua qualidade: há tantos direitos de punir, quanto são os delitos”. [1] Esse direito de punir não é autoexecutável: num Estado de Direito, é preciso reconhecer este direito pela via processual e por ela somente: nula poena sine judicio.

A ação é o mecanismo legítimo de provocar a jurisdição para que então no processo seja feito o acertamento da pretensão punitiva que a toda sociedade pertence. A ação penal não pode então ser confundida com a pretensão punitiva, ou, o que é mais grave, tratá-la como uma “pretensão acusatória”.

É precisamente este o erro daqueles que dizem que, feito o pedido de absolvição pelo Ministério Público, o juiz não poderia mais condenar: reduzir a pretensão punitiva — que a toda sociedade pertence — a uma pretensão acusatória, como se vem dizendo ultimamente, do Ministério Público.

Pretensão acusatória
O termo “pretensão acusatória” é uma criação que não reflete a realidade, pois desconsidera que o Ministério Público não poderia exercer uma pretensão acusatória, já que, a ação penal consiste no direito “di ottenere una pronunzia giurisdizionale in merito all’esistenza o meno della pretesa punitiva sostanziale.[2] E esta pretensão punitiva substancial pertence à sociedade, que é a titular da ação penal, precisamente o meio de se provocar a jurisdição para a verificação da procedência dessa pretensão punitiva.

Falar de uma suposta pretensão acusatória significaria dizer que o Ministério Público deduz, ao exercer a ação penal, uma pretensão sua, particular, uma demanda sobre um patrimônio particular seu, quando, sabemos bem, o Ministério Público deduz uma pretensão que a toda a sociedade interessa seja acertada. Para bem esclarecer o que estamos dizendo, sempre útil recorrer às precisas lições de Carnelutti:

(Q)ualquer pessoa se convence facilmente de que uma coisa é o interesse da civitas no pagamento de uma dívida civil, e outra coisa o interesse no castigo de um homicida. Por este caminho se encontra, entre a pretensão penal e a pretensão civil, uma diferença semelhante àquela que tratamos de definir no primeiro livro entre o prejudicado e o ofendido, e pode-se formular como uma menor determinação da pretensão penal em relação à pretensão civil do ponto de vista do sujeito ativo; diferença que se aguça até o ponto de que, ao passo que falar de uma pretensão penal anônima não seria um contra-senso, a pretensão civil é sempre estritamente nominal: se a opinião pública permanece assim indiferente ante uma letra de câmbio que não foi paga, comove-se por outro lado tão vivamente quanto a um homem assassinado que amiúde reclama vivamente a descoberta e punição do assassino. Eis aqui por que, se temos em vista a distinção entre acusação e pretensão, a resposta fácil de que a pretensão é proposta pelo Ministério Público não nos satisfaz; o que o Ministério Público faz é recolher uma pretensão que existe no ar, poder-se-ia dizer, ou seja, que serpenteia na sociedade quando aparece a notícia de um delito. [3]

Ilícito penal
Se existe um ilícito penal, e, portanto, uma ação penal, é porque por meio dela se tutela um interesse que não é restrito ao ofendido tampouco ao Ministério Público. Portanto, devemos nos sentir autorizados a fazer a seguinte pergunta: de onde que tiraram essa expressão “pretensão acusatória” e a que título atribuem ao Ministério Público essa pretensão no processo penal? A título de credor do acusado? A título de ser ele mesmo o titular do bem jurídico violado pela infração penal?

No campo penal, como ensinou Carnelutti, a pretensão punitiva não é nominal, do acusador, seja ele o Ministério Público, o ofendido ou um cidadão, mas é uma pretensão anônima, difusa, se se preferir.

Por isso a importância de não se confundir a ação penal com o direito de punir que no processo se pretende ver reconhecido: a sociedade possui direito sobre a ação penal justamente para poder ir à justiça ver reconhecido ou não o direito de punir, e por isso exerce a sua pretensão punitiva no processo (pretensão de ver reconhecido o direito de punir), por meio do direito de ação, como bem esclarece Pisapia:

Da mesma forma que não se deve confundir, no processo civil, o direito material que se faz valer em juízo (por exemplo, o direito de propriedade ou o direito de crédito) com o direito à instauração do processo e à ativação da função jurisdicional para a aplicação da lei, assim também no processo penal deve-se ter bem distinto o direito substantivo do Estado à punição do culpado (ius puniendi) da ação, ou seja, do poder-dever de ativar a atividade jurisdicional. Uma vez que a existência ou não do direito de punir só será acertada ao final do processo, o que se faz valer no processo é tão somente uma pretensão.[4] (tradução livre)

Pedido do MP
Como se vê, não existe uma “pretensão acusatória”: a pretensão não nasce de um “pedido” do Ministério Público ou de uma particular propensão de ir a Juízo postular um crédito ou outro patrimônio particular da instituição ou de seu membro; a pretensão é punitiva, que decorre do interesse tutelado pela norma penal, e que a notícia do crime fez nascer e exige assim o pronunciamento jurisdicional sobre ela para fazer o acertamento dessa pretensão, que, se for positiva, redundará no reconhecimento de um direito de punir.

Se esse direito de punir não é do Ministério Público, se esse direito precisa ser reconhecido por um terceiro imparcial que detém a jurisdição, e se essa jurisdição só atua se provocada pela ação, toda a ideia da indisponibilidade da ação penal deita sua razão de ser na premissa de que a pretensão punitiva não pode ficar subordinada ao arbítrio de apenas uma pessoa, no caso, o Ministério Público.

A indesistibilidade (irretrattabilità) é uma das manifestações da indisponibilidade da ação penal. E esta indisponibilidade preserva o objeto do processo (pretensão punitiva) de disposição das partes pela preservação da relação processual mesma.

Irretrattabilità
Como explica Leone [5], a “irretrattabilità” procura preservar a relação processual de qualquer poder dispositivo das partes, já que indisponível é antes o objeto, vale dizer, a res in iudicium deducta. Se a opinião de absolvição pudesse subtrair o objeto deduzido do pronunciamento jurisdicional, haveria então uma desistência, uma retratação da ação penal: a relação processual seria extinta junto com o seu objeto indisponível.

É nesse sentido que se deve entender a “irretrattabilità” da ação penal, como bem explica Massari: “La irretrattabilità dell’azione penale importa non solo che “l’azione penale non può sospendersi, interrompersi o farsi cessare, come si esprime l’articolo 75, ma altresì un altro caratteristico effetto: quello cioè che il giudice non è mai vincolato alle richieste assolutorie del pubblico ministero.[6]

Por outro lado, não há na hipótese do artigo 385 violação da inércia da jurisdição: ele não dá ao juiz o poder de agir ex officio sem a ação penal, mas de aplicar a lei a uma pretensão já submetida ao seu conhecimento por provocação do órgão acusador, para reconhecer o direito de punir nessa pretensão. Aqueles que criticam o artigo 385 do CPP fazem uma leitura equivocada e superficial do princípio ne procedat iudex ex officio.

Há violação ao mencionado princípio quando a jurisdição se move sem provocação, quando há, por outras palavras, jurisdição sem ação. Com absoluta precisão, Vannini e Cocciardi ensinam que o princípio ne procedat iudex ex officio, que procura resguardar a imparcialidade do juiz, apenas exige que ele aja por provocação, mas não conforme essa provocação:

Questo principio va inteso nel senso che il giudice non può procedere che in seguito a richiesta di un altro organo (Pubblico Ministero), non già nel senso che il giudice debba procedere conforme al contenuto della richiesta da esso organo avanzata.” [7]

E em seguida arrematam:

Ciò che investe il giudice del potere-dovere di decidere non è il contenuto della richiesta, ma la richiesta di per sè.[8]

Inércia
Desde que o juiz esteja plenamente investido da ação penal por provocação do Ministério Público, independentemente do conteúdo desta provocação, estará respeitada a sua inércia, pois os fatos e as provas vieram até ele sem qualquer movimentação jurisdicional ex officio.

A garantia da imparcialidade do juiz repousa fundamentalmente na sua passividade. “L’attività delle parti processuali”, escreve Graziano, “conduce inflessibilmente alla passività della funzione giurisdizionale.” [9]

Não temos dúvida em afirmar a frontal violação ao sistema acusatório quando o juiz toma parte na produção probatória, pois, como lembra Carnelutti, o juiz que se arroga a função de buscar provas, “se ainda não sabe, sabe ao menos o que é que quer saber.”[10]

Se fosse dado ao juiz, como autoriza o artigo 156, II, do CPP, determinar “a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”, ele estaria fatalmente trabalhando em favor da acusação, pois a situação da qual ele está buscando sair — a dúvida — é aquela que favorece o réu.

O juiz, para não vulnerar a sua imparcialidade, deve-se contentar com o material probatório que as partes trazem ao processo. Sucede então que, como bem lembra Lucchini [11], é somente por meio da rigorosa passividade do juiz que se garante a sua imparcialidade:

È facile però intendere come la neutralità, l’imparzialità e il disinteresse del giudice non possano ottenersi che a una condizione sola e immancabile: la sua passività. Il giudice deve essere giudice, ossia non deve che apprezzare, valutare, giudicare le azioni e le proposizioni altrui. Quando agisce non giudica; e quando giudica il fatto proprio non porge alcuna garanzia di far opera di giustizia.

Fenômeno probatório
Sabe-se que o fenômeno probatório no processo penal é dividido em quatro fases: proposição, admissão, produção e valoração. A questão é saber se essa passividade deve existir inclusive na última fase probatória: a valoração e a decisão.

A rigor, é precisamente neste momento que se deve exigir do juiz que se retire dessa posição passiva para então, tomando uma postura ativa, fazer aquilo que ele deve fazer: julgar e decidir.

Constatado que nas fases anteriores o juiz foi passivo como ele deve ser, deixando ao acusador e ao defensor a iniciativa probatória, o juiz deve então, chegada a fase de decidir, assumir o timão, pois, como bem afirma Carnelutti, “enquanto se trata de recolher ou valorar as provas, ele está, mais ou menos constantemente, acompanhado deles; pelo contrário, no momento de decidir, deixam-no só.”[12]

A possibilidade de o juiz poder condenar mesmo com o pedido de absolvição da acusação tem seu fundamento, em última análise, no próprio sistema acusatório: a separação de funções. Como bem explica Foschini, emitir juízos e decidir são coisas diversas, e, se fosse dado ao Ministério Público impor ao juiz o seu próprio juízo, estaria ele mais do que exercendo a função de acusador mas substancial e irreversivelmente a função de julgador, isto é, a função de decidir.

Ensina com propriedade Foschini que o que distingue o juiz dos demais sujeitos processuais não é o fato de que ele emite juízos, mas que o faz com o poder de impor o seu juízo como decisão: “Poichè anche le opinioni sono giudizi, quindi giudicano tutti gli uffici che partecipano al contradittorio; l’ufficio dell’accusa e l’uffcio di difesa giudicano così come l’ufficio del ‘giudice’, il quale si caratterizza non perchè giudica, ma perchè può decidere, cioè solo in quanto il suo giudizio puó essere una decisione.”[13]

Órgão de decisão
Tal sutileza não escapou da argúcia de Carnelutti: “Aquele que chamamos de juiz é o órgão da decisão; assim se chama não já porque não formem juízos também o acusador e o defensor, senão porque, com sua atividade, que é a decisão, o juízo se realiza e se conclui.” [14]

Poder-se-ia argumentar: não poderia o juiz errar ao não acolher o juízo opinativo absolutório do Ministério Público, condenando um inocente ou aplicando mal o Direito? Certamente. E oporíamos em seguida: não poderia ele errar também quando errado antes está o Ministério Público e se lhe força a seguir servilmente este último?

Veja que estamos diante de duas falibilidades: a falibilidade do Ministério Público e a falibilidade do juiz. Mas note-se bem: a uma dessas falibilidades — a do Ministério Público — pretende-se atribuir uma autoridade que nem mesmo à sentença do juiz se atribui, pois no caso de um possível erro do juiz, sempre estará aberta a possibilidade do recurso pela parte sucumbente, ao passo que um possível erro oculto ou prevaricação na postulação de absolvição do Ministério Público restaria incontornável.

Por outras palavras, o erro do juiz sempre encontraria a sua possibilidade de correção na sucumbência — e, portanto, no inconformismo — das partes, enquanto que esse erro do Ministério Público, se se pretende atribuir todo esse poder que alguns querem que o seu pedido absolutório ostente, seria um erro incontrastável.

A rigor, o artigo 385 é uma decorrência natural da indisponibilidade da ação penal e não tem nada de inquisitório. Ele preserva o objeto indisponível do processo penal de disposição manipulativa do Ministério Público sem prejudicar a imparcialidade do juiz.

_________________________________

[1] BATTAGLINI, Giulio. Direito Penal, 2º Volume, Trad. Paulo José da Costa Júnior, Editora Saraiva, 1973, p. 623. (itálico no original)

[2] PISAPIA, Gian Domenico. Compendio di Procedura Penale, 2ª Edizione, Padova: Cedam, 1979, p. 137.

[3] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, V. 4, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Editora Bookseller, 2004, p. 19, 20.

[4] PISAPIA, Gian Domenico. Op. cit., p. 136.

[5] CONTI, Ugo. Il Codice di Procedura Penale illustrato articolo per articolo, Vol. 1, Milano: Società Editrice Libraria, 1937, p. 352.

[6] MASSARI, Eduardo. Il Processo Penale nella nuova legislazione italiana, Napoli: Casa Editrice Jovene, 1934, p. 99.

[7] VANNINI, Ottorino; COCCIARDI, Giuseppe. Manuale di Diritto Processuale Penale Italiano, Milano: Giuffrè Editore, 1979, p. 55.

[8] Idem.

[9] GRAZIANO, Silvestro. La difesa penale nell’istruttoria, Seconda Edizione, Bologna: Fratelli, 1913, p. 663.

[10] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Vol. 4…, p. 41.

[11] LUCCHINI, Luigi. Elementi di procedura penale, Firenze: G. Barbèra Editore, 1895, p. 256.

[12] Lições sobre o processo penal, Vol. 4…, p. 64.

[13] FOSCHINI, Gaetano. Sistema del Diritto Processuale Penale, Vol. I, Seconda Edizione, Milano: Giuffrè Editore, 1965, p. 199.

[14] Lições sobre o processo penal, Vol. 1…, p. 237.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!