Opinião

Projeto do Código Civil: avanços, retrocessos e omissões (parte 2)

Autor

  • Maria Berenice Dias

    é advogada vice-presidente do IBDFAM e integrante da Comissão de juristas instituída Senado para elaborar proposta de atualização do Código Civil.

9 de abril de 2024, 6h01

Continuação da parte 1

Da socioafetividade

Artigos 1.617-A a C

Depois de sacralizado e sumulado pelos tribunais, a socioafetividade e a multiparentalidade são positivados.

No entanto, na contramão das normativas do Conselho Nacional de Justiça, que admitem o reconhecimento da filiação socioafetiva extrajudicialmente, a partir dos 12 anos, se houver a concordância dos pais de adolescentes.

Ao dilatar o prazo até os 18 anos, o projeto se afasta do propósito de desjudicializar os procedimentos que independem de decisão de mérito. Como, nesta hipótese, não haverá audiência, o juiz se limita a chancelar a vontade das partes em decisão meramente homologatória.

Da adoção

Artigos 1.618 e 1.619

Está admitida a adoção de maiores de 18 anos por escritura publica ou perante o registro civil.

No entanto – e injustificadamente – é exigida a concordância dos pais registrais. Sem a concordância, se faz necessária a via judicial.

Ora, sendo o filho maior de idade, dispensável a chancela dos pais, que precisam somente ser notificados, mas não precisam concordar com a adoção.

Da filiação decorrente de reprodução assistida

Artigo 1.629-A a V

Até que enfim a regulamentação da reprodução assistida deixa de ser prerrogativa do Conselho Federal de Medicina e passa a ser disciplinado pela codificação civil. Também foram incorporados os regramentos do Conselho Nacional de Justiça sobre o registro dos filhos nascidos por meio de tais técnicas.

No entanto, uma das hipóteses de inseminação foi ignorada: a chamada auto inseminação ou reprodução caseira.  Só que esta é uma prática recorrente. Quer em face dos elevados custos dos procedimentos nas clínicas de reprodução assistida; quer porque o projeto parental envolve mais pessoas e, muitas vezes, é desejo de todos assumirem a parentalidade.

Como para o registro do nascimento é exigido termo de consentimento informado, firmado na clínica que realizou o procedimento além de um documento público ou particular, as partes precisam se socorrer do Judiciário. Por ausência de controvérsia, o juiz se limita a chancelar o pedido. Ora, este procedimento deveria ser levado a efeito perante o Oficial do Registro Civil, com a atribuição de ouvir as partes e colher a manifestação do Ministério Público.

Da autoridade parental

Artigos 1.630 a 1.636

Diante da insistência doutrinária foi feita a devida correção. Afinal os pais não têm “poder” sobre os filhos, têm responsabilidades para com eles. Daí, ao invés de poder familiar, o correto é mesmo falar em autoridade parental.

Pena não passar de mera recomendação a mediação ou outra forma de solução extrajudicial antes da judicialização dos conflitos dos pais. Aos pais que divergem sobre o exercício da autoridade parental, o correto seria condicionar a busca do judiciário à comprovação de terem previamente buscado uma solução extrajudicial. Certamente ocorreria enorme decréscimo de demandas sobre tema que o juiz não tem como decidir da forma mais adequada, pois não conhece as peculiaridades e cada família.

Mais uma vez é reforçada a responsabilidade e o compartilhamento do exercício da parentalidade. Entre os deveres dos pais se encontram novidades interessantes:

  • prestar assistência material e afetiva aos filhos, acompanhando sua formação e desenvolvimento e assumindo os deveres de cuidado, criação e educação para com eles;
  • zelar pelos direitos estabelecidos nas leis especiais de proteção à criança e ao adolescente, compartilhando a convivência e as responsabilidades parentais de form;a
  • evitar a exposição de fotos e vídeos em redes sociais ou a exposição de informações, de modo a preservar a imagem, a segurança, a intimidade e a vida privada dos filhos;
  • fiscalizar as atividades dos filhos no ambiente digital.

Do regime de bens

Artigos 1.639 a 1.652

Foi excluído regime da separação obrigatória de bens, em quaisquer de suas hipóteses.

A subtração de efeitos patrimoniais do casamento das pessoas 70+, já havia sido banida pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu a inconstitucionalidade de tal injustificável presunção de plena capacidade.

Também foram banidas as demais hipóteses de imposição do regime da separação obrigatórias, uma vez que desapareceram as causas suspensivas do casamento.

Por falta de uso, foi excluído o regime da participação final nos aquestos.

Chama a atenção, positivamente, a dispensa da necessidade da outorga uxória para a concessão de aval. Feita a ressalva que, sendo chamado o avalista a atender o pagamento, o valor sairá de sua meação.

Mais um avanço. Ainda que o imóvel que serve de domicílio ao casal seja bem particular, é necessária a concordância do outro cônjuge para sua alienação.

Outra proposta que chega em muito boa hora: a omissão de informar os bens a partilhar,  implica na aplicação da pena de sonegados. Ou seja, à perda do bem.

Dos pactos conjugal e convivencial

Artigo 1.653-A a 1.657

O pacto antenupcial mudou de nome para pacto conjugal. Bem assim o contrato de convivência que passou a se chamar de pacto convivencial.

Qualquer deles pode ser firmado antes ou durante o período da vida em comum. Mas em nenhuma hipótese dispõe de efeito retroativo.

Maria Berenice Dias, advogada e vice-presidente do IBDFAM

Possível incluir no pacto cláusulas quanto a convivência e sustento dos filhos, em caso de ruptura da vida comum.

Do mesmo modo foi admitido convencionar a alteração automática do regime de bens depois de período de tempo pré-fixado, sem que tal tenha efeito retroativo.

Do regime de comunhão parcial

Artigos 1.659 a 1.666-A

Acréscimos importantes de novas hipóteses que impõem o compartilhamento de bens:

  • as remunerações, salários, pensões, dividendos, fundo de garantia por tempo de serviço, previdências privadas abertas ou outra classe de recebimentos ou indenizações que ambos os cônjuges ou conviventes obtenham durante o casamento ou união estável, como provento do trabalho ou de aposentadoria;
  • os direitos patrimoniais sobre as quotas ou ações societárias adquiridas na constância do casamento ou da união estável;
  • a valorização das quotas ou das participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união estável, ainda que a aquisição das quotas ou das ações tenha ocorrido anteriormente ao início da convivência do casal, até a data da separação de fato;
  • a valorização das quotas sociais ou ações societárias decorrentes dos lucros reinvestidos na sociedade na vigência do casamento ou união estável do sócio, ainda que a sua constituição seja anterior à convivência do casal, até a data da separação de fato.

Do regime da comunhão universal

Artigos 1.667 a 1.671

Admitido o fideicomisso entre vivos, tais bens são excluídos da comunhão.

Do regime da separação de bens

Artigo 1.688

Importante acréscimo: o trabalho realizado na residência da família ou os cuidados com a prole dá direito a obter uma compensação a ser fixada pelo juiz, quando da extinção da entidade familiar

Do usufruto e da administração dos bens de filhos menores

Artigos 1.689 a 1.693

Injustificadamente foi mantida a condição dos pais de usufrutuários dos bens dos filhos. Ora, usufruto significa: posse, uso, administração e percepção dos frutos, ou seja, dos rendimentos dos bens.

Os pais devem é administrar, zelar pelos bens dos filhos, e não se apropriar do lucros que os bens produzem. A hipótese configura, inclusive, apropriação indébita.

De qualquer modo, foram impostas algumas travas:

  • quando a administração dos pais puser em perigo o patrimônio do filho, o juiz, a pedido do próprio filho, do Ministério Público ou de qualquer parente, poderá adotar as providências que estime necessárias para a segurança e conservação dos seus bens.
  • para a continuação da administração dos bens da criança e do adolescente, o juiz pode exigir caução ou fiança, inclusive nomear um administrador.
  • ao término da autoridade parental, os filhos podem, no prazo de dois anos, exigir de seus pais a prestação de contas da administração que exerceram sobre os seus bens, respondendo os pais por dolo ou culpa, pelos prejuízos que sofreram.

Dos alimentos

Artigos 1.694 a 1.700-C

Pontos positivos:

  • A obrigação de prestar alimentos independe da natureza do parentesco, aplicando-se aos casos de parentalidade socioafetiva e de multiparentalidade.
  • Os alimentos são absolutamente irrenunciáveis, mesmo nas hipóteses envolvendo cônjuges ou conviventes.
  • Havendo fundados indícios sobre a adequada utilização da verba alimentar, o alimentante pode solicitar esclarecimentos, mas não apresentação de prestação de contas.
  • A violência doméstica impede o surgimento da obrigação de alimentos em favor de quem praticou a agressão.
  • O alimentante pode incluir, a qualquer tempo, no polo passivo da ação proposta contra o obrigado antecedente.
  • Ocorrendo a morte do devedor, sendo o alimentando herdeiro e menor de idade, tem direito de obter, antes da partilha, a título de antecipação do seu quinhão hereditário, bens suficientes para prover a própria subsistência.

Pontos negativos:

  • Restringiu a obrigação alimentar aos colaterais de segundo grau: os irmãos. Ainda que todos os parentes, até o quarto grau, tenham direito hereditário.
  • Deixou de afirmar que os alimentos são devidos desde a data em que forem fixados, e não da citação do alimentante.
  • Especificar que a redução ou exoneração dos alimentos não dispõem de efeito retroativo.
  • Expressamente autorizar que os alimentos recentes e pretéritos podem ser buscados no mesmo processo, mesmo que sejam por ritos diferentes.
  • Impedir aos herdeiros maiores de idade o direito de obter, antes da partilha, a título de antecipação do seu quinhão hereditário, bens suficientes para prover a própria subsistência.

Dos alimentos devidos ao nascituro e à gestante

Artigos 1.701-A a C

Atendendo à grita generalizada da doutrina, os chamados alimentos gravídicos mudaram de nome.

Enfim, restou esclarecido que os alimentos são devidos desde a data da concepção, independente da data de sua fixação.

Dos Alimentos devidos às famílias conjugais e convivenciais

Artigos 1.702 a 1.709

Dois pecados que vêm em prejuízo da mulher:

  • Estabelece que o fim da sociedade conjugal ou convivencial do devedor com o credor de alimentos extingue o dever alimentar.
  • Admite a fixação de um termo final à obrigação alimentar. Ou seja, concede ao juiz o dom de prever o fim da necessidade de quem não reúne aptidão para obter, por seu próprio esforço, renda suficiente para a sua mantença.

Ambas as hipóteses se afastado do parâmetro legal.

  • O dever de alimentos persiste mesmo após o fim do casamento e da união estável.
  • Os alimentos são devidos enquanto existir a necessidade de um e a possibilidade do outro.

Dos alimentos compensatórios

Artigo 1.709-A a C

Os alimentos compensatórios mereceram previsão legal, contemplando duas hipóteses: amenizar o desequilíbrio econômico que implique em brusca redução do padrão de vida; e quando os bens comuns que geram renda se encontram na posse exclusiva de um dos cônjuges ou conviventes.

Dois senões:

  • não ter havido expressa previsão de que os valores recebidos não são compensáveis na partilha;
  • de forma injustificável, foi afastada a possibilidade da cobrança de tais valore pelo rito da prisão civil.

O fato é que, em qualquer destas hipóteses, os alimentos servem para assegurar a sobrevivência de quem foi alijado de seu patrimônio ou dos meios de garantir sua sobrevivência.

Da tutela

Artigos 1.728 a 1.766

A tutela deixou de ser um múnus obrigatório. Quem foi indicado para assumir o encargo, pode simplesmente recusar, sem a necessidade de apresentar qualquer justificativa.

Da curatela

Artigo 1.767 a 1.783-E

Foi desjudicializado o procedimento de direitiva antecipada da curatela, cuja formalização deve ser feita por escritura pública ou instrumento particular autêntico.

Do bem de família

Artigos 1.711 a 1.722

A possibilidade de instituição de bem de família voluntário, foi banida. Quer pela  existência do bem de família legal (Lei 8.009/1990), quer para evitar o uso desta ferramenta para blindar patrimônios em prejuízo de terceiros.

 

 

 

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