Opinião

Projeto do Código Civil: avanços, retrocessos e omissões (parte 1)

Autor

  • Maria Berenice Dias

    é advogada vice-presidente do IBDFAM e integrante da Comissão de juristas instituída Senado para elaborar proposta de atualização do Código Civil.

8 de abril de 2024, 19h25

A Comissão de Juristas foi constituída em 4/9/2023 pelo senador Rodrigo Pacheco para propor alterações ao Código Civil, sob a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão. Depois de oito meses de debates e uma semana de deliberações, em 5/4/2024 foi aprovado o projeto a ser encaminhado ao Sendo.

Como tive a honra de participar da subcomissão que cuidou do Direito de Família, sinto-me no dever de trazer, ainda que de forma breve, as sugestões aprovadas.

Claro que tecendo algumas considerações sobre os pontos mais significativos, quer no que representou avanços, quer no que consagrou retrocessos. Sinalizando também as omissões, que acabaram por chancelar distorções que precisavam ser corrigidas, o que ensejou meu pedido de afastamento da comissão.

Não havia como firmar um projeto que acabou por descumprir o encargo mais importante que nos foi atribuído: apontar soluções que atendam ao preceito constitucional de assegurar proteção especial, com prioridade absoluta a crianças e adolescentes.

Direito de Família

Apesar de aprovado pela Subcomissão o uso da expressão mais do que consagrada “Direito das Famílias”, atentando à diretriz constitucional que esgarçou o conceito de família,  a proposta foi rejeitado sob a justificativa que a proposição “de” é mais inclusivo do que “das”.

Do direito de constituir família

Artigo 1.511-A a G

Em boa hora deixou o casamento de inaugurar o livro que trata do direito das famílias, cedendo espaço à disposições gerais, que traçam as diretrizes que perpassam todo o seu conteúdo.

Além de assegurado o livre planejamento familiar, são reconhecidas como expressões da dignidade humana e da paternidade responsável, a potencialidade e a vida humana pré-uterina, bem como os cuidados com a gestante.

Inserida no conceito de família as constituídas pelo casamento, a união estável e a família parental. Expressão esta que alberga não só as famílias monoparentais previstas constitucionalmente, mas as demais estruturas de convívio entre parentes, de há muito reconhecidas em sede doutrinária e jurisprudencial.

É reconhecido o divórcio como um direito potestativo, a ser concedido judicial ou extrajudicialmente por iniciativa de um dos cônjuges, sem que o outro possa se opor à sua concessão.

Das pessoas da família

Artigos 1.512-A a G

São assim nominadas as relações de parentesco.

Enorme o avanço em prever que a relação de parentesco civil resulta tanto da consanguinidade como da socioafetividade, da adoção e da reprodução assistida heteróloga. Mais uma positivação que decorre do reconhecimento que o afeto é uma realidade digna de tutela.

São definidos como “enteados” os filhos de outros relacionamentos do cônjuge ou do convivente. No entanto, é feita injustificável ressalva: que desta convivência não decorre, “por si só e necessariamente”, vínculo de filiação socioafetiva. Uma explicitação mais do que desnecessária, pois limitante às consequências que podem advir, ou não, de um vínculo de convivência.

Do casamento

Artigos 1.514 a 1.564

Ao ser definido que o casamento é entre “duas pessoas” e não entre “um homem e uma mulher”, o casamento homoafetivo obteve a chancela legal. Reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, indispensável sua inserção no sistema legal.

Foram excluídas as chamadas “causas suspensivas do casamento”. Um absurdo que punia com a subtração de efeitos patrimoniais o casamento de quem não seguia a recomendação legal: não devem casar. Com isso foi afastada a imposição do regime da separação obrigatória de bens, não só a quem insistia em casar bem como aos que casam depois dos 70 anos, inconstitucionalidade decantada pelo STF.

Houve enorme simplificação no procedimento de habilitação para o casamento, que passou a chamar-se de procedimento pré-nupcial.

O requerimento pode ser feito virtualmente, sendo atribuição do oficial do registro civil proceder à busca, em sistemas eletrônicos sobre eventuais impedimentos.

Maria Berenice Dias, advogada e vice-presidente do IBDFAM

Foi dispensada a presença de testemunhas e a publicação de proclamas. O oficial do registro civil, investido das funções de juiz de paz, pode celebrar o casamento. Acabou também a exigência de a cerimônia ser levada a efeito com as portas abertas.

Salutar ter sido afastada a possibilidade de anulação do casamento por motivo de idade, se resultou gravidez. Nada mais do que a chancela do tão combatido casamento infantil.

 Da união estável

Artigo 1.564-A a E

Sua regulamentação foi deslocada para o lugar onde sempre deveria estar: depois do casamento. E vários dispositivos passaram a regular estes institutos conjuntamente.

Ao ser substituída a expressão “entre o homem e a mulher” por “entre duas pessoas”, foi inserida no sistema legal as uniões homoafetivas.

Houve ligeira alteração no conceito de união estável. A locução “estabelecida com o objetivo de constituição de família”, foi substituída por “estabelecida como família”, na busca se subtrair elemento subjetivo de difícil comprovação.

No entanto, a constituição do estado civil de conviventes ocorre somente quando do registro da união no Cartório do Registro Civil e, só a partir daí é obrigada a declaração de tal estado em todos os atos da vida civil.

O estabelecimento de tal requisito acabou por criar duas espécies de as uniões estáveis: as registradas e as não registradas, diferenciação que não se encontra nem na Constituição da República. Com isso a insegurança jurídica persiste, uma vez que o regime da comunhão parcial de bens  vigora a partir da constituição da união e não do seu registro.

De outro lado, a injustificável omissão em regulamentar as uniões simultâneas, perpetua a conivência machista da justiça e do legislador. Ao não serem impostos deveres e obrigações a quem mantém relacionamentos concomitantes, ainda que presentes todos os requisitos de uma união estável, os homens são incentivados a perpetuarem esta prática que vem em prejuízo da mulher e dos filhos deste relacionamento.

A infeliz redação do Código atual (Artigo 1.727: As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato), foi substituída por outra, ainda mais perversa: A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família.

Uma tentativa redentora: relegar as questões patrimoniais às regras do enriquecimento sem causa.  Com isso, no entanto, foi ressuscitada a “sociedade de fato”, a ser distribuída aos juízes cíveis e, com isso, sendo afastadas consequências outras, como direito a alimentos, benefícios previdenciários e direitos sucessórios.

Da eficácia do casamento e da união estável

Artigos 1.565 a 1.570

O tratamento conjunto do casamento e da união estável acabou por equiparar os deveres, entre eles, entre eles, o injustificável dever de fidelidade recíproca e de vida em comum no domicílio conjugal. Ora, estes são temas que dizem com a privacidade e intimidade do casal, ceara em que não pode imiscuir-se o estado. Até porque, a eventual infringência de tais obrigações não geram qualquer consequência, uma vez que a perquirição da culpa esta banida desde a Emenda Constitucional 66/2010.

Foi dada especial ênfase à convivência e à responsabilidade compartilhada dos genitores quanto ao cuidado e os encargos parentais.

Também foi previsto o direito de compartilhar a companhia e o dever arcar com as despesas destinadas à manutenção dos animais de estimação.

Da dissolução da sociedade e do vínculo conjugais

Artigos 1.571 a 1.582-C

Apesar de o título fazer referência ao fim do casamento, também disciplina o término da união estável.

Como o casamento se constitui com a chancela estatal, seu término depende de ato formal. Já a união estável, que é fruto da convivência prolongada e ostensiva como uma família, não precisa ser formalizada para existir e produzir efeitos jurídicos. E, ainda que inscrita no registro civil, sua dissolução acontece quando do fim da vida em comum.

Daí a necessidade de distinção entre término e dissolução do casamento.

Tanto o casamento como a união estável terminam com a separação de fato ou a separação de corpos, a qual pode ser decretada judicialmente ou formalizada por instrumento público ou particular. De qualquer modo, mesmo que o fim da vida em comum faz cessar os deveres mútuos e a comunicabilidade patrimonial, a dissolução do casamento precisa ser chancelada pelo divórcio.

O divórcio, agora, foi reconhecido como direito potestativo. Ou seja, pode ser requerido judicial ou extrajudicialmente por somente um dos cônjuges, sem que o outro possa se opor ao pedido. Ele é simplesmente notificado e, se não for encontrado, é citado por edital, promovendo o oficial do registro a averbação do divórcio.

Igual o proceder quando é pretendida a dissolução formal da união estável.

Mais um avanço já consagrado pelos tribunais. Havendo consenso, tanto o divórcio como a dissolução da união estável pode ser levada a efeito por escritura pública, mesmo havendo filhos menores ou incapazes. As partes precisam estar acompanhadas de advogado e será ouvido o Ministério Público.

E uma bela novidade: o direito de permanecer na residência comum quem lá reside com os filhos ou aquele se dedicou aos cuidados da família e não desempenha atividade remunerada.

Uma positivação que se fazia necessária: o falecimento de um dos cônjuges ou de um dos conviventes, depois da propositura da ação de divórcio ou de dissolução da união estável, não enseja a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data estabelecida na sentença como aquela do final do convívio.

Da convivência entre pais e filhos e o exercício da autoridade parental

Artigos 1.583 a 1.596

É bem isso. Certamente o capítulo mais significativo no âmbito das relações familiares é o que diz com a convivência entre pais e filhos.

Só que, cedendo a pressões de uma minoria barulhenta de mulheres que querem ser reconhecidas como proprietárias exclusivas dos filhos, a comissão, simplesmente, se absteve de submeter à aprovação a proposta encaminhada pela subcomissão de regulamentar a convivência de modo a dar efetividade ao comando constitucional que assegura a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar, responsabilidade que é atribuída a ambos os genitores.

Diante desta omissão, cristalizam-se as inconstitucionalidades de dispositivos da lei civil, como, por exemplo, o que permite que qualquer dos pais possa, simplesmente, abrir mão do dever de cuidado para com o filho. E mais, ao invés de regulamentar a divisão igualitária dos encargos parentais, se limita a regular guarda e visitas, expressões que nem cabem quando se fala de crianças e adolescentes.

Da forma como está – e vai permanecer –, é chancelada a guarda unilateral sucessiva, afrontando a necessidade dos filhos de convierem com ambos os pais, de modo a assegurar seu sadio desenvolvimento.

E, se uma comissão nacional formada por um punhado de juristas encaminha proposta de emendas ao Código Civil, sem nada sugerir sobre este tema tão sensível, tal significa que reconhece que nada merece ser alterado.

E esta omissão foi o que ensejou o meu pedido de afastamento da comissão.

Do reconhecimento dos filhos

Artigos 1.591  a 1.596

Certamente um dos mais significativos avanços foi admitir o reconhecimento do filho diretamente no cartório de registro civil. Possibilidade que em muito decorre da facilidade de descobrir a identidade genética pelo exame do DNA. Segundo dados do IBGE, diariamente são registradas 500 crianças sem o nome do pai.

A urgência de impor a paternidade responsável levou à atualização da chamada averiguação oficiosa da paternidade (Lei 8.460/1992), que nunca teve efetividade, apesar de todos os esforços do Conselho Nacional de Justiça.

Agora, comparecendo a mãe ao cartório do registro civil, se indicar o nome e a localização de quem afirma ser o genitor, o oficial determina sua intimação pessoal para que compareça ao cartório para proceder ao registro ou ser designada data para a realização do exame de DNA. Caso ele não compareça, se negue a registar o filho e a se submeter ao exame, o oficial promoverá o registro do filho em seu nome e encaminha o expediente ao Ministério Público ou Defensoria Pública para propor a ação de alimentos e regulamentação da convivência.

A qualquer tempo o pai poderá buscar a exclusão do seu nome do registro, mediante a prova da ausência do vínculo genético ou socioafetivo.

 

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