Opinião

Atualização do Código Civil: limites e possibilidades

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3 de maio de 2024, 7h00

Nos meses finais do ano de 2023 passou a ser amplamente noticiada na imprensa especializada a formação de uma comissão de juristas para realizar um estudo e propor uma revisão do Código Civil de 2002. O propósito, como largamente anunciado, era entregar à Presidência do Senado um anteprojeto com propostas de atualização da Lei Civil. Depois de muitos debates, no último mês de abril a comissão aprovou o relatório sobre o possível anteprojeto, que agora seguirá os trâmites na Casa Legislativa.

Sebo do Messias

A par do texto elaborado e aprovado por respeitáveis juristas, desde a sua formação intensas têm sido as discussões acerca do texto do possível anteprojeto, e uma delas diz respeito à sua necessidade, notadamente da forma substancial como proposto. A questão que aqui se buscará debater é o porquê deste questionamento.

O Código Beviláqua e o Código de 2002

O Código Civil de 2002 foi editado em uma realidade muito, muito distinta da quadra atual em que a população brasileira vive. Naquele momento vigia um Código que tinha, na prática, quase cem anos. Isso porque o Código Civil de 1916 foi fruto de um anteprojeto de Clóvis Beviláqua datado do ano de 1900. Então, quando da promulgação do Código Civil de 2002, estava vigente uma lei com um texto já centenário, de uma realidade que havia mudado muito.

De 1900 até 2002, a mudança da sociedade foi imensa, não só no Brasil, como no mundo, o que tornava o Código Beviláqua substancialmente obsoleto. Não sem razão, no final da década de 1980, o saudoso jurista Orlando Gomes publicou um texto que refletia a realidade do Código Civil naquele momento, intitulado “A Agonia do Código Civil”, a expor a agonizante e insustentável manutenção do Código Civil de 1916 dentro da estrutura normativa no Brasil.

Para se ter uma ideia, nesse ínterim entre o Código Beviláqua e o Código Civil de 2002, o mundo passou por duas grandes guerras, uma guerra chamada de fria e a queda do muro de Berlim, entre outros acontecimentos a nível mundial com impactos na civilização. No Brasil as mudanças sociais também não foram poucas. Inúmeras foram as crises sociais e econômicas que corroeram nosso país. Sob o aspecto jurídico não foi diferente.

Em um século tivemos seis Constituições, dois Códigos de Processo Civil, um Código Penal com uma posterior e grande reforma, e um Código Tributário Nacional. Isso sem falar das dezenas de leis especiais que, buscando atender às necessidades prementes da população, de novas relações que surgiam e careciam de regulação, ou mesmo de outras que já existiam, mas não gozavam de uma lei de regência, produziram grandes impactos na vida dos indivíduos, formando verdadeiros microssistemas, como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, apenas para citar alguns exemplos. Disso se percebe que o Código Civil de 1916 estava completamente ultrapassado.

E o Código Civil de 2002? Bom, primeiro é preciso lembrar que o Código Civil de 2002 já não possuía, quando da sua edição via Lei n° 10.406, um texto tão novo. Ele é fruto de um projeto que nasceu em 1969, e iniciou sua tramitação no Congresso em 1975, tendo sido aprovado seu texto no Congresso Nacional apenas em 15 de agosto de 2001.

Alcance da reforma e mudança social

É verdade que ele não é o mesmo texto do projeto, pois passou por atualizações, sob a coordenação de Miguel Reale, tendo sido modernizado seguindo as inspirações pós-redemocratização. Mas as ideias centrais, de fato, não eram tão novas. Por isso, é evidente que era preciso uma atualização, estando fora de cogitação a ideia de que o texto atual não necessita de ajustes.

Sem prejuízo, o que se questiona é a exigência de uma alteração em larga escala neste momento, mexendo com estruturas não apenas sociais, mas também jurídicas sedimentadas há séculos, desde os romanos, por exemplo. Não que modificações, no âmbito jurídico, não possam ocorrer. Pelo contrário, elas não apenas podem, como devem, especialmente para acompanhar a evolução da sociedade. Então, e sobretudo nas relações civis, as mudanças devem vir da sociedade, e não da lei.

É verdade que alguns ramos do Direito, e a respectiva legislação de regência, servem como instrumento para modificação social. Como exemplo pode-se mencionar o Direito Tributário, em que a criação ou a majoração de tributos podem ter fins especiais, até mesmo extrafiscais, como no caso da “sobretaxação” de certos bens com o propósito de desestimular o seu consumo, v. g., os cigarros.

O objetivo, portanto, é modificar um hábito social, medida essa que tem se revelado exitosa, uma vez que estatisticamente o consumo desses bens diminuiu vertiginosamente no Brasil, se comparado, por exemplo, com as décadas de 1970 e 1980, em que o uso do produto era, inclusive, sinônimo de glamour.

Por outro turno, há outros ramos do Direito em que o instrumento para a mudança social não deve ser a lei. Pelo contrário, esta é que deve acompanhar a sociedade, regulando e pacificando as práticas sociais. A via, portanto, é contrária: a mudança da sociedade vem pela prática das pessoas e dos grupos sociais, cabendo ao legislador apenas regulá-la. É isso que acontece com o Direito Civil, o “ramo dos privados”, em que a lei deve buscar pacificar os conflitos sociais já existentes.

Mudanças pontuais

Por isso, e longe de ser uma crítica à Comissão do Senado para a revisão do Código Civil, e a todos os notáveis juristas que a integram, acreditamos que as alterações sobre o Código Civil de 2002 deveriam ser pontuais, visando efetivamente atualizá-lo, como era a proposta original.

Aliás, tal alerta não pode ser identificado apenas no cenário brasileiro, mas em todos os sistemas jurídicos que se baseiam na tradição jurídica conhecida como da Civil Law, fundados nos valores da segurança e da justiça. Até porque as relações privadas abrangem um sem-número de questões que antecedem ao nascimento e se perpetuam para além da morte das pessoas naturais, como também ao surgimento e a extinção das pessoas jurídicas.

Para além disso, modificações mais substanciais podem provocar rupturas, não apenas jurídicas, mas especialmente sociais, em um ramo do Direito que impacta fortemente o dia a dia dos indivíduos, razão pela qual devem ser introduzidas com cautela, após longo e extenso estudo e debate.

Autores

  • é desembargador presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ-ES), professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá, professor titular de Direito Civil do Ibmec, mestre e doutor em Direito Civil pela Uerj, coordenador da Rede de Juízes de Enlace para a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e acadêmico fundador da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).

  • é mestre e doutorando em Direito Civil pela Uerj, professor dos cursos de pós-graduação da Emerj, da PUC-Rio, Ceped-Uerj, do Verbo Jurídico e do Cers, pesquisador visitante no Max Planck Institute for Comparative and International Private Law (Alemanha), acadêmico fundador da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e advogado.

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