Opinião

Responsabilização de grupo econômico transnacional nas relações de consumo

Autor

  • Matheus Siqueira Andrade

    é advogado procurador do estado de Minas Gerais graduado em Direito e mestre em Direito nas Relações Econômicas e Sociais pela Faculdade Milton Campos e especialista em Advocacia Tributária pela Universidade Fumec.

7 de abril de 2024, 7h03

O ordenamento jurídico brasileiro apresenta poucas disposições sobre os grupos econômicos empresariais, suas classificações, conceitos e relações jurídicas, o que gera alguma dificuldade para a solução de conflitos relacionados ao tema.

A Lei 6.404/76 disciplina os grupos societários e adota um sistema dual, de forma a segregá-los em grupos de direito, também chamados de grupos contratuais ou convencionais, e grupos de fato.

A primeira classificação se configura com o registro da convenção, celebrada entre as sociedades com a finalidade de constituírem o grupo, no órgão de registro público de empresas mercantis competente (junta comercial estadual), conforme disposto no artigo 265 da Lei 6.404/76. Assim, é fácil e objetiva sua identificação no caso concreto.

Já os grupos econômicos de fato se originam, como o próprio nome sugere, da união fática de sociedades que realizam suas atividades com interesse comum, em uma mesma direção, muitas vezes se relacionando por meio de participações societárias, independentemente de uma formalização do grupo por contrato ou convenção. Neste caso, há maior espaço para atuação do intérprete na caracterização do grupo.

Fábio Ulhoa Coelho define os grupos de fato da seguinte maneira “os grupos de fato se estabelecem entre sociedades coligadas ou entre controladora e controlada. Coligadas são aquelas em que uma tem influência significativa sobre a outra, sem, contudo, controlá-la. Já controladora é aquela que detém o poder de controle de outra companhia”.

Consequências jurídicas e responsabilização

Além da dificuldade na caracterização de um grupo econômico de fato, no caso concreto, uma vez que o legislador não define com precisão seu conceito, as consequências jurídicas para cada sociedade que o integra também são pouco positivadas e se tornam questões intrincadas em determinadas situações.

É certo que para o Direito brasileiro as pessoas jurídicas pertencentes a um grupo de sociedades conservam cada uma sua autonomia, personalidade jurídica e patrimônio. Assim, não há como regra a responsabilização de uma companhia por obrigação assumida por outra, seja de forma subsidiária ou solidária, entendimento esse manifestado por Fábio Ulhoa Coelho:

“Registre-se que o grupo não tem personalidade jurídica própria, sendo apenas uma relação interempresarial formalizada. Por outro lado, entre as sociedades integrantes do mesmo grupo, não há, em regra, solidariedade (…) Não há, também, em regra, subsidiariedade entre as sociedades de um mesmo grupo.”

Spacca

As exceções a essa regra estão previstas em alguns poucos dispositivos legais, que tratam do tema de forma específica, com as peculiaridades necessárias da seara em que estão inseridas.

O artigo 2°, §2º, da CLT, e o artigo 30, IX, da Lei 8.212/91, preveem a responsabilidade solidária em relação às obrigações trabalhistas e previdenciárias, respectivamente, dentro dos grupos econômicos. Já o artigo 28, §2º, do CDC determina a responsabilidade subsidiária, com benefício de ordem, em relação as obrigações provenientes das relações de consumo:

“As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.”

Grupo econômico transnacional e relações de consumo

Além da pouca regulamentação sobre os grupos econômicos, a realidade apresenta relações jurídicas complexas, com sociedades sediadas em diferentes países compondo um mesmo grupo econômico transnacional, num mundo cada vez mais globalizado e mais influenciado pela evolução tecnológica, capaz de modificar a todo momento a dinâmica das relações comerciais.

Esse contexto permite que produtos e serviços sejam ofertados a consumidores brasileiros por sociedades empresárias sediadas em outros países, com facilidade e naturalidade, muitas vezes sem que o consumidor sequer tenha ciência do local de origem da companhia com a qual contrata.

Em face desses grandes conglomerados internacionais, o consumidor se apresenta cada vez mais em condição de vulnerabilidade e demandar seus direitos frente a uma sociedade internacional não é tarefa tão fácil quanto celebrar um contrato com ela.

Jurisprudência do STJ

Assim, o Poder Judiciário brasileiro enfrenta dificuldade para encontrar soluções justas a serem aplicadas aos casos concretos, em demandas envolvam relações consumeristas compostas por pessoas jurídicas sediadas fora do país.

O STJ tem se manifestado casuisticamente em algumas demandas, que envolvem relações de consumo estabelecidas com grandes grupos econômicos transnacionais, pela possibilidade de responsabilização solidária das empresas ou, ainda, pela responsabilização direta de sociedade brasileira por obrigação originária de pessoa jurídica internacional, apesar da expressa previsão do CDC de que deveria haver apenas uma responsabilidade subsidiária.

Em 2000, foi julgado pela 4ª Turma do STJ o Recurso Especial nº 63.981-SP, em que a sociedade Panasonic do Brasil Limitada, empresa nacional, foi condenada diretamente pela obrigação de garantir a qualidade de produto adquirido de sua matriz, sediada nos Estados Unidos.

No caso em questão, o consumidor brasileiro adquiriu uma filmadora da marca Panasonic, de sociedade estrangeira, quando em viagem à Miami e, posteriormente, após o retorno ao seu país, se deparou com vícios que estariam cobertos pela garantia ofertada na venda da mercadoria.

O consumidor então buscou o Poder Judiciário para condenação direta da Panasonic brasileira, sem demandar a empresa norte-americana, com quem havia celebrado o negócio jurídico Seu pedido foi negado no juízo de primeira instância e no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Irresignado, interpôs o recurso especial ao STJ, que deu provimento ao pleito do consumidor e reformou o acórdão recorrido, para condenar diretamente a Panasonic Brasil Ltda na obrigação de reparar a filmadora, sem necessidade de se demandar primeiramente a companhia estrangeira, contrariando o dispositivo legal do CDC que prevê a responsabilidade subsidiária entre companhias de um mesmo grupo de sociedades.

Na fundamentação da decisão, prevaleceu o entendimento de que uma economia globalizada, sem fronteiras rígidas e que amplia a livre concorrência, demanda uma maior proteção ao consumidor, para se estabelecer um equilíbrio nessas relações, que envolvem negócios mercantis de escala internacional. Se empresas brasileiras possuem a mesma marca da outra sociedade estrangeira, que integram o mesmo grupo econômico, e dela se beneficiam, também devem responder pelos defeitos que os produtos dessa marca apresentem. Se o grupo econômico aufere lucro mundialmente, a garantia também deve ser global.

Em sentido semelhante, em 2008, a 4ª Turma do STJ novamente se manifestou no Recurso Especial 1.021.987- RN, cujo relator foi o ministro Fernando Gonçalves.

Nesse caso, o recurso não foi conhecido por unanimidade, devido à ausência de prequestionamento, no entanto, o relator em seu juízo de admissibilidade se manifestou pela possibilidade de uma responsabilização direta da companhia brasileira, por obrigação originária da sociedade estrangeira, integrante do mesmo grupo econômico, sem que esta precisasse ser citada para compor a relação jurídica processual. Novamente a responsabilidade subsidiária prevista no CDC foi desconsiderada.

Esse recurso foi interposto pela sociedade empresária Yahoo! Brasil Internet Ltda, que havia sido condenada em instâncias ordinárias a retirar do ar site com conteúdo difamatório a uma mulher, hospedado por serviço oferecido pela Yahoo! Inc., sociedade empresária norte-americana, componente do mesmo grupo econômico.

Em suma, a Yahoo Brasil aduziu ser uma empresa distinta daquela envolvida na relação jurídica, com personalidade jurídica própria, o que impediria sua responsabilização direta, por ato atribuído à sociedade estrangeira, além de não possuir ferramentas técnicas para a retirada do conteúdo difamatório da internet, uma vez que não era a prestadora daquele serviço de hospedagem.

O relator não acolheu os argumentos da recorrente e confirmou a possibilidade dessa responsabilização direta da companhia brasileira com base na aplicação da teoria da aparência, já que a Yahoo! do Brasil se apresentava com a mesma logomarca da empresa norte americana e o consumidor não conseguiria distingui-las.

Posteriormente, o relator arguiu: “Se empresa brasileira aufere diversos benefícios quando se apresenta ao mercado de forma tão semelhante à sua controladora americana, deve também, responder pelos riscos de tal conduta”.

Acrescentou-se que não seria razoável impor a autora brasileira, consumidora, a obrigação de demandar uma sociedade estrangeira, o que resultaria claramente em ônus excessivo para a parte hipossuficiente na relação e, consequentemente, continuidade do conteúdo danoso a sua honra e imagem disponível na internet, por período prolongado.

Considerações finais

Assim, diante do ordenamento jurídico brasileiro não oferecer soluções compatíveis com as peculiaridades dos conflitos existentes entre consumidores e grandes grupos econômicos transnacionais, dentro de uma economia cada vez mais globalizada, o Poder Judiciário profere algumas decisões que extrapolam as previsões legais, no intuito de evitar soluções injustas a luz do caso concreto, sem o devido amparo aos vulneráveis.

Apesar de haver previsão expressa de responsabilidade subsidiária para grupos econômicos nas relações consumeristas, o STJ já se manifestou, conforme demonstrado, no sentido de que tal responsabilidade será solidária quando a demanda envolver grupos transnacionais e o benefício de ordem, que determina a necessidade de primeiro demandar a companhia sediada no exterior, possa trazer um ônus excessivo ao consumidor e um resultado prático injusto e violador de direitos e garantias fundamentais.

Autores

  • é advogado, procurador do estado de Minas Gerais, graduado em Direito e mestre em Direito nas Relações Econômicas e Sociais pela Faculdade Milton Campos e especialista em Advocacia Tributária pela Universidade Fumec.

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