Opinião

Citação e interrupção da prescrição no anteprojeto de reforma do Código Civil

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5 de abril de 2024, 15h14

A prescrição, instituto de Direito Material, tem forte presença no processo, como observado por Alexandre Câmara [1].

O anteprojeto de reforma do Código Civil, na redação proposta pela relatoria-geral, pretende alterar a disciplina de um dos temas que envolvem a interação entre a prescrição e o Direito Processual.

De acordo com a proposta, o artigo 202, I, do CC passaria a prever que a interrupção da prescrição ocorrerá, além de outras hipóteses, pela “citação, retroagindo seus efeitos para a data da ordem judicial ou arbitral que a ordenar, mesmo que incompetente o juiz ou o árbitro para o exame do mérito, desde que o autor a promova no prazo e na forma da lei processual”.

Atualmente, o dispositivo mencionado prevê, como uma das causas de interrupção da prescrição, o “despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual”. Já a regulação dos seus efeitos está contida no artigo 240, § 1º, do Código de Processo Civil, segundo o qual a “interrupção da prescrição, operada pelo despacho que ordena a citação, ainda que proferido por juízo incompetente, retroagirá à data de propositura da ação”.

Interpretação da retroação

A alteração sugerida no anteprojeto é significativa ― e muito preocupante. E vai além da clássica discussão sobre se o fato gerador da interrupção é a citação ou o ato judicial que a ordena.

Em passado não tão distante, o tema da produção do efeito de interrupção da prescrição, em razão da citação, exigiu atenção do legislador e dos tribunais.

Spacca

Na redação original do CPC/1973, o artigo 219, § 1º, estabelecia que a “prescrição considerar-se-á interrompida na data do despacho que ordenar a citação”.

O problema era evidente: e se a prescrição viesse a se consumar em algum momento no intervalo de tempo entre o ajuizamento da ação e o pronunciamento judicial que determina a realização da citação?

A prescrição é instituto diretamente ligado à inércia [2].

Inércia, especificamente, do titular de uma pretensão. Ajuizada a ação dentro do prazo prescricional, o tempo necessário até o pronunciamento do juiz não pode ser considerado como período de omissão do sujeito, que não deve ter sua esfera jurídica atingida pela demora do Poder Judiciário, quando nada mais o titular da pretensão possa fazer.

A doutrina já criticava a opção legislativa [3] e propunha interpretação de retroação à data de distribuição. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já determinavam que a prescrição deveria retroagir à data de distribuição da ação [4].

Enunciado nº 106 do STJ

Exatamente por isso, em 1994, o STJ editou o Enunciado nº 106 da sua Súmula de Jurisprudência Predominante, com o seguinte teor: “Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência” [5]. O verbete é compatível com a lógica que orienta a prescrição: se não há inércia do titular da pretensão, não há fundamento para fazê-lo ver transcorrer em seu desfavor o prazo prescricional.

A súmula também resolvia um outro problema, que era a exigência de que a citação fosse promovida em 10 dias após prolatado o despacho (artigo 219, §2º). Para que não houvesse os efeitos retroativos da interrupção da prescrição, a causa da demora na citação devia ser um ato exclusivamente do autor (ex: não recolhimento de custas) [6].

Lei nº 8.952/1994, CPC/2015 e a Lei de Arbitragem

Meses depois da edição do Enunciado nº 106, no contexto das reformas do CPC/1973, foi publicada a Lei nº 8.952/1994, que, entre várias outras modificações, alterava a redação do artigo 219, § 1º, do Código. O dispositivo passava a prever, então, que a “interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação”. Garantia-se, com isso, que o titular da pretensão não sofreria com uma inércia que não lhe fosse imputável, compreensão mantida após a chegada do Código Civil de 2002 [7].

A solução, que é boa e coerente com o instituto da prescrição, foi preservada no CPC/2015, que também explicitou que a “parte não será prejudicada pela demora imputável exclusivamente ao serviço judiciário” (artigo 240, § 3º).

O tema também causava dificuldades no âmbito da arbitragem, com divergências a respeito do momento de incidência do efeito de interrupção da prescrição [8]. Apenas em 2015, com a reforma da Lei de Arbitragem, foi estabelecido que a “instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição” (artigo 19, § 2º, Lei nº 9.307/1996, inserido pela Lei nº 13.129/2015).

Conclusão

A proposta contida no anteprojeto de reforma do Código Civil prevê que os efeitos da interrupção da prescrição, em decorrência da citação, retroagirão à “data da ordem judicial ou arbitral que a ordenar”.

A alteração sugerida não contribui para o aperfeiçoamento da disciplina sobre a matéria. Se interpretada literalmente, a novidade importará revogação do artigo 240, § 1º, do CPC e, parcialmente, do artigo 19, § 2º, Lei nº 9.307/1996, em um retrocesso de décadas, submetendo o titular da pretensão aos efeitos da demora da decisão judicial ou arbitral. Se interpretada sistematicamente com os mencionados dispositivos, será inútil.

Enfim, após muito tempo de amadurecimento, o tema foi bem solucionado pela legislação brasileira. A mudança, aqui, não parece ser o melhor caminho. Problemas não faltam no direito brasileiro e não convém ao legislador ressuscitar aqueles já resolvidos.

 


[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. Repensando a prescrição. Barueri: Atlas, 2023, p. 1.

[2] LEAL, Antônio Luís da Câmara. Da prescrição e da decadência: teoria geral do Direito Civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 12.

[3] TORNAGHI, Hélio apud CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: RT, 2008, p. 103.

[4] CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência…. cit., p. 103.

[5] O Enunciado n. 106 reflete, também, o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, antes (1ª T., RE n. 63.770, rel. Min. Djaci Falcão, j. em 22.10.1968, publicado em 28.02.1969) e depois (2ª T., RE n. 87.178, rel. Min. Xavier de Albuquerque, j. em 03.05.1977, publicado em 20.05.1977) da edição do CPC/1973.

[6] CÂMARA, Alexandre Freitas. Repensando a prescrição… cit., p. 118.

[7] Enunciado n. 417 das Jornadas de Direito Civil: “O art. 202, I, do CC deve ser interpretado sistematicamente com o art. 219, § 1º, do CPC, de modo a se entender que o efeito interruptivo da prescrição produzido pelo despacho que ordena a citação é retroativo até a data da propositura da demanda”.

[8] NUNES, Thiago Marinho. “Arbitragem e interrupção da prescrição”. In: MELO, Leonardo de Campos; BENEDUZI, Renato Resende (coord.). A reforma da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2016, 509-517.

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