Opinião

Atuação jurisdicional em estruturas patológicas e efeito transformador do processo

Autores

  • Alberto Bastos Balazeiro

    é ministro do Tribunal Superior do Trabalho ex-procurador-geral do Trabalho doutorando em Direito (IDP) e mestre em Direito (UCB).

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

17 de abril de 2024, 15h19

O reconhecimento de que o direito processual pode atuar de maneira estrutural, permitindo a recomposição de instituições desconformes e otimizando a tutela de direitos, tem sido cada vez mais comum na realidade brasileira. É de maneira afinada a esse propósito que, ao longo dos últimos anos, a compreensão e o aperfeiçoamento de nosso processo estrutural passam a assumir crescente protagonismo.

Esse fomento à técnica assume particular importância em searas como a participação judicial em políticas públicas, fazendo com que, como estabelecido no âmbito do Supremo Tribunal Federal no bojo da tese de Repercussão Geral nº 698, ela se torne o mecanismo prioritário para esse fim.

De maneira complementar a esse aspecto, porém, consideramos que há outra hipótese provida de igual importância na qual o processo é capaz de alterar as peças de ambientes desconformes, ainda que (ocasionalmente) de forma reflexa. Essa constatação pode se mostrar seminal em debates de gênese essencialmente privada, permitindo um rearranjo setorial a partir da atuação altiva e adequada do Judiciário.

De que modo essa espécie de efeito pode ser identificada? Como compreender sua possível conformação no sistema jurídico brasileiro, assim como suas potencialidades e seus pontos de atenção?

Para responder brevemente essas perguntas, um importante suporte é fornecido pelo célebre pensamento de Kenneth Scott a respeito da conformação do processo — e, em alguma medida, do direito reparatório de uma maneira geral.

Em síntese, o teórico percebeu que há no palco da disciplina, invariavelmente, uma dupla conformação: ao mesmo tempo em que determinada medida pode prestar tutela a uma situação concreta, sua mensagem é capaz de atuar como importante fator de orientação comportamental coletiva; de agir como indutor comportamental também de atores que não integraram a disputa.

Elucidando o problema, é valioso lançar mão de um singelo exemplo: imagine que, no âmbito de ação civil pública manejada pelo Ministério Público Federal em face de determinada operadora de telefonia, é indicada ocorrência de possíveis derrubamentos forçados de chamada — voltados a compelir a realização de novas ligações pelos consumidores. Diante disso, suponha que o órgão ministerial veicula pedido substancial de reparação por danos morais coletivos.

Nessa situação, é evidente que a companhia ré, caso condenada, sofrerá as consequências diretas do pronunciamento. Dando um passo além, contudo, é bastante provável que a medida coletiva e a sua decisão tragam reais impactos para todo o setor de telefonia.

A confirmação de que a conduta não é tolerada pelo sistema de Justiça tornará sua eventual reiteração bastante menos atraente; seja para a própria demandada, seja para as suas concorrentes, será cristalizado que irregularidades análogas àquela que deu fundo à ação coletiva possuem um elevado preço  mostrando-se, por isso, não-recomendadas.

Dinâmica trabalhista

Spacca

Outro exemplo que podemos citar vem da dinâmica trabalhista. De fato, atualmente, tem ganhado tração a noção de responsabilidade civil aplicada à integralidade da cadeia produtiva, ou pelo menos, aos players chave que detêm efetivo poder de induzir comportamentos ao longo da cadeia, o que se verifica em situações de trabalho em condições análogas à escravidão ou mesmo de trabalho infantil.

Nesses casos, inequivocamente, a atuação da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, ao reconhecer a existência de ilícitos trabalhistas graves, tende a impactar em toda a cadeia produtiva, afetando, até mesmo, os elos finais ou mais fortes. Ademais, as grandes empresas concorrentes em setores similares passam a examinar prospectivamente a sua própria cadeia, com efeitos ainda mais sistêmicos, procurando evitar circunstâncias como aquelas recentemente flagradas no setor de viticultura gaúcho, em que se atestou a ocorrência da vergonhosa chaga do trabalho escravo.

Esse elemento possui afinidade com a própria estrutura geral do sistema jurídico. Por qual motivo, porém, ele deve ser tomado como uma face extremamente rica e por vezes despercebida da atividade processual? Indo além, o que faz com que ele seja pertinente para o estudo dos processos estruturais?

A resposta às indagações é obtida ao percebermos que, em nossa realidade, há inúmeras estruturas providas de traços amplamente patológicos. Esse elemento costuma encontrar causalidade complexa, sendo impulsionado em maior ou menor escala pelo comportamento de diferentes atores. Como consequência, a atuação jurisdicional em uma ponta dessa teia pode trazer efeitos e estímulos em outros sujeitos ali envoltos — atuando de maneira catalítica na obtenção de mudanças significativas.

Um breve exame da realidade brasileira permite que se colham diversos exemplos desse cenário, como a debilidade de segurança em transações ou operações eletrônicas e a atuação excessiva de empresas de telemarketing em prejuízo ao público consumidor. Mais uma vez, extraímos exemplos didáticos da seara trabalhista, em que se observam inúmeros casos de empresas e até mesmo de modelos de negócios estruturados em torno de descumprimentos sistemáticos da legislação laboral (prática de horas extras sem a devida contraprestação ou em prejuízo à segurança do trabalho, não pagamento de adicionais, entre outras condutas).

Isso, não raramente, com base em avaliação de jurimetria que tenha como conclusão que o descumprimento reiterado pode compensar, em face do número reduzido de demandas e de indenizações reconhecidas em Juízo.

As situações indicadas, como dito, são absolutamente ilustrativas. Ainda assim, elas revelam que há um sem-número de hipóteses que podem assumir esse perigoso atributo. Embora muitas vezes o cenário não possa ser imputado apenas a um agente, forma-se uma indesejada apatia em que o contexto, por mais que indevido, é normalizado; convive-se, sem maior preocupação, com a desconformidade.

Não obstante, o ponto que é aqui destacado traz um tempero adicional a esse caldo: o adequado tratamento do tema pelo Judiciário em determinada medida, compreendendo suas raízes e reconhecendo sua real reprovabilidade, pode alterar os ânimos gerais do setor. Isso, até mesmo, em ações com polo passivo simples.

As circunstâncias descritas acima ratificam esse fator. A intolerância e a refutação de falhas sistêmicas de segurança de um ente poderá fazer com que outras sociedades inseridas no setor aprimorem seus protocolos; o tratamento duro e devido dos abalos trazidos pela atuação irregular de uma empresa de telemarketing poderá servir como fio condutor para uma reorientação geral do setor; ações de fiscalização em segmentos como o consumerista ou trabalhista, de forma ampla e centradas na reestruturação do adequado compliance legal, podem produzir impactos significativos, especialmente se orientadas a combater o que se transforma num autêntico benchmark patológico de práticas setoriais.

Com efeito, parece ser necessário reconhecer que existem externalidades sociais negativas de condutas empresariais que necessitam de um equacionamento adequado, inclusive à luz do direito econômico. Perceba-se que o aumento arbitrário dos lucros constitui infração contra a ordem econômica (Lei nº 12.529/11) e crime contra a economia popular (Lei nº 1.521/51).

Da mesma forma, devemos olhar para a outra face espalhada dessa moeda, ou seja, a redução arbitraria (ou ilegal) dos custos, calcada exatamente em práticas setoriais patológicas, também é uma violação aos valores da ordem econômica e concorrencial.

Mais que isso, o raciocínio parece plenamente condizente com a própria lógica de backward induction que entra em cena em inúmeros momentos de tomada de decisão. Embora o cumprimento da lei e o respeito à Constituição devam ser vistos como fins, é oportuno que esse caminho seja reforçado como o único que compensa. Como consequência, ao observar a sua possível gama de ações, é recomendado que as rotas diversas tragam consigo a alta potencialidade de um resultado negativo.

Mudança de rumo

Compreendido esse pilar, percebe-se que cada processo, no final do dia, pode não ser apenas um processo, mas um ponto de apoio para uma importante virada de página em determinado setor; para uma inversão do seu leme rumo a uma (necessária) recomposição.

Nessa espécie de situação, contudo, não se incorreria no risco de instrumentalizar a parte e a sua situação jurídica? Ao olhar para a sua disputa como um meio, não haveria uma ofensa a sua dignidade e ao seu rol de garantias fundamentais?

As preocupações são extremamente pertinentes. A partir delas, consideramos oportuno estabelecer uma premissa geral: quando a reforma setorial puder ocorrer por meio de medidas coletivas capazes de congregar os diferentes atores relevantes, esse caminho tende a ser preferível.

Em setores marcados por uma maior limitação quantitativa de jogadores, é factível que o problema seja enfrentado de maneira global, fazendo com que (sem prejuízo de responsabilidades individuais) pense-se também globalmente em sua reestruturação. Isso, evitando gargalos como os possíveis desequilíbrios de cariz concorrencial.

Nesses casos, pode-se enfrentar o problema a partir da sua raiz, conforme nos ensina Matheus Galdino: quanto mais próximo nos encontrarmos de se extirpar a raiz que sustenta a “árvore” de uma demanda plurissubjetiva, maior a chance de real efetividade da solução judicial buscada, evitando-se qualquer contribuição negativa ou pouco eficaz na superação do problema.

Por outro lado, há circunstâncias em que a formação dessa macrolide não é viável, mas a patologia e a possibilidade de reconstrução catalítica seguem presentes. Nesses casos, entretanto, não se trata de transformar quem quer que seja em exemplo.

Gustavo Moreno/SCO/STF
stf fachada sede prédio

A realidade é outra: toda medida judicial ligada a um tema setorialmente sensível será, inevitavelmente, exemplificativa — para qualquer um dos lados. Em uma ação na qual se debata a abusividade ou não de determinada prática adotada por uma operadora de internet, a resposta fornecida pelo Judiciário irá tensionar todo o setor: sua improcedência representará uma chancela para que a conduta seja amplamente adotada, estimulando sua ocorrência; sua improcedência, por outro lado, levantará um indispensável alerta contrário a essa opção.

Como consequência, seja em uma demanda plurissubjetiva (o que, quando possível, é preferível) ou não, o impacto escalonado existe. Isso, repete-se, não deve levar a uma instrumentalização do sujeito ou do litígio, tampouco justificar que eventuais ordens ou reparações excedam desarrazoadamente ou sem justificativa as peculiaridades do caso concreto.

Ainda nesse debate, contudo, é importante destacar o momento histórico que vivemos, com a iminente reforma do Código Civil, particularmente no campo da responsabilidade civil, que pode impactar diretamente o tema do processo civil como elemento de equilíbrio setorial de mercado. Isso, especialmente, caso se avance no reconhecimento de uma sistemática de danos punitivos e pedagógicos no direito brasileiro. Nesse caso, torna-se ainda mais clara a importância de medidas processuais comunicantes entre as esferas individuais e coletivas.

De fato, ao reconhecer-se que violações sistemáticas e patológicas em face de direitos admitem indenizações com fins repressivos e pedagógicos, também se apresenta razoável facultar aos magistrados a possibilidade de imposição de indenizações, em demandas individuais, voltadas à reparação pública em casos estruturais. Há uma dúplice vantagem na hipótese: tanto se evita o enriquecimento indevido à parte individual, quanto se sinaliza e se repara esse aspecto social decorrente das violações (que, em princípio, seriam apenas inter partes), desnudando a clara ligação entre demandas de massa e o interesse social na correção das situações patológicas.

Trata-se de um campo novo, para o qual o entendimento de elementos de economia comportamental e a percepção econômica do movimento das cadeias produtivas e dos setores passam a ser necessários à estruturação de qualquer política judiciária que se almeje efetiva. Ainda assim, a carta deve ser posta na mesa, permitindo uma importante conclusão: enfrentar problemas inseridos em estruturas patológicas exige que esse dado seja considerado e tomado com seriedade. Afinal, qualquer encaminhamento poderá reforçar essa desconformidade, ou contribuir para sua gradual superação.

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Autores

  • é ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), doutorando em Direito (IDP), mestre em Direito (UCB, 2017), coordenador do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro e observador na 111ª Conferência Internacional do Trabalho.

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da UFPR, doutor e mestre em Direito pela UFPR, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e advogado e parecerista.

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