Opinião

Pode a vítima de violência doméstica falar?

Autores

  • Fernanda Pacheco Amorim

    é advogada doutoranda em Direito na UFPR mestra em Ciências Jurídicas na Univali pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai te amo sempre" feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

  • Ana Claudia da Silva Abreu

    é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-doutora em Desenvolvimento Comunitário pela Unicentro e professora de Direito Penal no Centro Universitário Campo Real (Guarapuava/PR).

25 de abril de 2024, 19h36

Em 2 de abril de 2024, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou um processo de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, que está em segredo de Justiça, visando a analisar a possibilidade de revogação de medidas protetivas da Lei de Violência Doméstica em razão de decurso de tempo.

A decisão seguiu o entendimento já fixado pela corte superior de que para a revogação de medidas protetivas é necessária a manifestação da vítima, a fim de aferir a persistência da situação de risco.

Destacamos que a Lei 11.340/2006 (Maria da Penha) não estipula prazos para as medidas protetivas interpostas, por essa razão, há orientação jurisprudencial para uma revisão periódica por parte do Juízo, a fim de evitar a perenização desse instrumento.

A própria lei, no artigo 19, §6º, em redação incluída pela Lei 14.550, de 2023, também dispõe que “as medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes”.

Acontece que não há definição de procedimento para revogação de medidas protetivas aplicadas, o que gera o debate sobre a perenização de algo que deveria possuir caráter provisório e abre brechas para pedidos de revogação sustentados em decurso de tempo.

Disso tudo decorre o julgamento recente da 6ª Turma, que objetiva assegurar que a oitiva da vítima seja indispensável quando da análise de pedidos de revogação de medidas protetivas em razão do decurso de tempo, a fim de garantir que o juízo faça a aferição de manutenção ou não de perigo para a ofendida de maneira mais assertiva.

Essa decisão se origina de uma série de instrumentos e normativas nacionais e internacionais que buscam garantir acesso e manutenção de direitos, especialmente relativos a questões de gênero, como o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero (CNJ, 2021), por exemplo.

Reprodução/TV Brasil

O próprio informativo do STJ, que divulgou tal decisão, vincula o processo a dois objetivos do desenvolvimento sustentável elencados na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas: Objetivo 5 — igualdade de gênero; e Objetivo 16 — paz, justiça e instituições eficazes.

Dados de violência

Antes de apresentar nossas considerações, uma ressalva: achamos que tal decisão é extremamente relevante e importante, sobretudo considerando as resistências sociais à lei, e também por parte do próprio sistema de Justiça, um caminho marcado por teses de inconstitucionalidade, pela exigência de requisitos não previstos para a concessão das medidas e pela imposição de prazo de duração ou da necessidade de uma ação penal.

O Atlas da Violência de 2023 trouxe dados atualizados de violências contra as mulheres no Brasil, e os números de feminicídio subiram de 0,43 para 1,2 por 100 mil habitantes a partir de 2019. De 2020 para 2021, houve um aumento de 0,3% no número de feminicídios no país, sendo que a taxa de homicídios da população em geral apresentou queda. A pesquisa frisou que esses números podem ser 0,7% maiores em razão dos chamados “homicídios mal classificados”, considerando que essa forma de violência é caracterizada pela invisibilidade e pelas subnotificações.

Essencial destacar que, do total de mulheres assassinadas no Brasil, 67,4% eram mulheres negras, o que só demonstra que a intersecção de marcadores de gênero e raça coloca um alvo maior em algumas pessoas. E, quando falamos de pessoas trans e travestis, os números são ainda mais assustadores. Entre 2020 e 2021, houve um aumento de 9,5% nos casos de violência física contra essa população, sendo que as pessoas travestis negras e jovens são as mais vitimizadas.

O aumento dos números em relação a essas violências, segundo o Atlas da Violência, tem três possibilidades de explicação:

  1. Houve uma significativa redução no orçamento público federal em relação ao que antes era destinado a políticas de enfrentamento às violências;
  2. O crescimento do neo-conservadorismo, do binarismo político e do radicalismo, que têm por base uma cultura patriarcal e misógina;
  3. O impacto da Covid-19 em razão: das restrições de funcionamento dos serviços; da redução do controle social das violências em razão da necessidade de isolamento; do aumento da convivência familiar com consequente aumento nos conflitos; do maior número de rompimentos afetivos; da redução do poder econômico das mulheres em razão da queda no número de empregos e, consequentemente, aumento da dependência econômica.

Pois bem, nos parece que a realidade atual da política brasileira em relação às violências contra as mulheres deve ser de retomada dos investimentos (fiscais, sociais e financeiros) para redução dos números. Assim, de fato, o Estado brasileiro demonstrará preocupação e comprometimento com os acordos e as normativas internacionais que visam a assegurar os direitos das mulheres e das pessoas atingidas por essa forma específica de violência.

A Lei de Violência Doméstica prevê uma série de mecanismos indispensáveis para que as medidas protetivas possam ser asseguradas e, mais, para que as mulheres tenham condições materiais de sair das situações de violências, mas esses mecanismos, em muitos lugares, não existem.

Vítimas precisam ser escutadas

Por isso a pergunta que dá título a este texto: pode a vítima falar? Há uma frase popular usada para quando se quer dar lições sobre empatia, que diz: “Falar é fácil, é só bater com a língua nos dentes”, mas para que pessoas em situações de vulnerabilidade consigam, efetivamente, falar, é preciso que sejam criadas as condições não apenas para que elas falem, mas para que sejam escutadas.

Débora Diniz apresenta, juntamente com Ivone Gebara, no livro Esperança Feminista (2022), um verbiário feminista, composto por 12 verbos. Quando ela se refere ao verbo ouvir, diz que o ouvir precisa se transformar em escutar, pois, enquanto ouvir é um ato passivo e que pode vir acompanhado do desprezo pelo falante, o escutar é um processo de entrega, apto a ouvir as dores. Uma escuta incômoda em que as verdades e as vontades das mulheres em situação de violência precisam ser ouvidas fora dos paradigmas do patriarcado.

A partir dessas reflexões, aos nos perguntarmos se pode a vítima falar, a outra questão que se impõe é: pode o sistema de Justiça escutar? A Lei Maria da Penha é uma legislação marcada pelo incômodo, afinal ela visibiliza uma violência até então naturalizada e manda a sociedade e o Estado meter a colher. Mas também porque desafia o modelo tradicional do processo penal brasileiro, ao criar uma competência conjunta de matéria penal e cível nos Juizados de Violência Doméstica e ao prever medidas cautelares (as medidas protetivas) sem a exigência de instauração de uma ação penal.

Muitas mulheres que sofrem violências precisam voltar à convivência com o agressor por não terem rede de apoio, por não terem condições financeiras para se manter longe, por não conseguirem suporte para voltarem a construir uma estrutura de vida fora do ambiente no qual são vulnerabilizadas. Será que na oitiva da vítima para avaliação de um pedido de revogação de medida protetiva o juízo escutará sobre isso?

Afinal, não podemos esquecer que, em um mundo patriarcal e colonial, as falas são hierarquizadas, assim como o são os sujeitos que falam. Ou seja, como bem apontado por Grada Kilomba (2009), quando Spivak argumenta que a subalterna não pode falar, não se refere ao ato de fala em si, mas, sim, à dificuldade de falar dentro de um sistema de Justiça marcado pelo colonialismo e pelo racismo.

Novamente, o entendimento da 6ª Turma é essencial para que o decurso de tempo não se torne pressuposto de cessação do perigo, mas ele é insuficiente quando trata de uma situação tão complexa quanto a enfrentada pelo Estado brasileiro.

Não podemos esquecer daquilo que frisou Ana Flauzina: “As mulheres vitimadas querem, claramente, que os sons reverberem”. A vítima precisa, sim, ser ouvida, mas é dever do Estado criar um ambiente adequado para que ela possa falar e para que, de fato, haja escuta!

 

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Referências

CERQUEIRA, Daniel; BUENO, Samira (coord.). Atlas da violência 2023. Brasília: Ipea; FBSP, 2023. DOI: https://dx.doi.org/10.38116/riatlasdaviolencia2023

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021.

DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança Feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Lei Maria da Penha: entre os anseios da resistência e as pos-turas da militância. IN: FLAUZINA, ANA; FREITAS, Felipe;

VIEIRA, Hector; PIRES, THULA. Discursos Negros. Legislação penal, política criminal e racismo. Brasilia: Brado Negro, 2015, p.121-151

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

ONU BR – NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL – ONU BR. A Agenda 2030. 2015. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/>.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG (2010 [1985]).

Autores

  • é advogada, doutoranda em Direito na UFPR, mestra em Ciências Jurídicas na Univali, pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst, autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai, te amo sempre", feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

  • é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-doutora em Desenvolvimento Comunitário pela Unicentro e professora de Direito Penal no Centro Universitário Campo Real (Guarapuava/PR).

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