Opinião

Pedofilia intrafamiliar e omissão materna: impactos jurídicos e emocionais

Autor

  • Camila Falkowski

    é advogada criminalista especialista em Direito Penal e Processo Penal pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e pós-graduada em Perícia Criminal pela Instituição Verbo Jurídico.

28 de março de 2024, 15h16

É notório que desde a implantação de um novo sistema de governança denominado patriarcado, a historiografia feminina sofreu abrupta interrupção, bem como máculas de violência em sua trajetória até os dias atuais.

O movimento de reconquista feminina está presente em todas as vertentes sociais e é diariamente trabalhado no emocional e profissional das mulheres, mediante o fortalecimento legislativo ao combate à violência de gênero e programas de incentivo ao empreendedorismo feminino.

Apesar de todos os esforços para reestruturar a posição feminina na sociedade, essa mesma violência, antes exteriorizada e perceptível ao mundo material, adentrou as camadas sombrias do subconsciente feminino, deixando-o semi-automatizado para a normatização de certos comportamentos masculinos naturalmente reprováveis e danosos tanto à vítima quanto à sociedade, como o abuso infantil em âmbito familiar.

A pedofilia, do ponto de vista psiquiátrico forense, é considerada uma parafilia ou transtorno de preferência sexual classificada pelo Código Internacional de Doenças (CID 10 — F654). A frequência da perversão sexual não é passível de verificação senão mediante o flagrante delituoso.

Destarte toda a particularidade descritiva da doença, estudos sobre o perfil psicológico desses agentes atestam estar a parafilia comumente acompanhada de outras formas de transtornos (personalidade, humor, etc…) além de pontuais sinais de raiva e hostilidade, níveis de inteligência abaixo da média e dificuldade em relacionar-se socialmente com pessoas da mesma faixa etária.

Para a efetiva constatação da doença, é necessária, além de testes psicológicos, a realização de exames ambulatoriais (dosagem hormonal, tomografia computadorizadas, entre outros).

Pedofilia intrafamiliar

Em âmbito jurídico, a pedofilia é considerada crime, previsto no artigo 217-A do Código Penal:

“Estupro de vulnerável                

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:               

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.”

Denomina-se pedofilia intrafamiliar quando há laços consanguíneos ou de afinidade entre autor e vítima (pais, padrastos, mãe, madrastas, avós, tios, primos, irmãos) prática esta passível de aumento de pena ante o grau de proximidade, bem como o rompimento do dever de amparo e proteção à criança e adolescente:

 “Aumento de pena

 Art. 226. A pena é aumentada:               

  …

 II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela;”

Considera-se em situação de vulnerabilidade certos segmentos populacionais que, devido a própria condição, historicidade ou posição econômica, estão mais suscetíveis à incidência de violência ou discriminação, entre eles crianças, adolescentes e meninas.

Para isso, possuem especial proteção jurídica:

“Estatuto da Criança e Adolescente

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”

Apesar de toda a aparelhagem protetiva legislativa e programas sociais que visam tanto a conscientização como a contenção da problemática por intermédio de canais especializados de denúncia, levantamento realizado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Disque 100) revelou que mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados em âmbito familiar.

São comumente noticiados, nos canais de telecomunicações, casos de abuso em que figuram o padrasto como autor. o que decerto é passível de recriminação; entretanto, trago o alerta da problemática quando o abusador possui vínculo biológico com a vítima, sendo seu próprio pai.

Spacca

Excetuando-se os casos em que a mãe figura como agente incapaz de oferecer defesa, pois, concomitantemente à vítima, se encontra em situação de violência doméstica em suas variadas ramificações (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), bem como não é portadora de parafilia ou transtorno mental equivalente, tendo pleno domínio de suas faculdades intelectuais e escolhe, conscientemente se omitir frente a situação de abuso sexual de sua filha(o), também se entende como ação criminosa, conforme dispositivo legal:

Código Penal

 Art. 13, § 2º. A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

  1. a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; 
  2. b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; 
  3. c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Estatuto da Criança e Adolescente

Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Pedófilo abusador

Decerto, a emancipação feminina e seus benefícios ainda demandam muito desenvolvimento, sobretudo no emocional feminino. A aplicação indiscriminada do perdão e tolerância em nome da constância familiar, tarefa atribuída exclusivamente à condição feminina, além de vantajosa ao abusador, contribui para a permanência das práticas em detrimento da criança.

Minuciosa pesquisa científica intitulada Perfil Psicológico e Comportamental de Agressores Sexuais de Crianças (Serafim, et al. 2009) traça 11 perfis comportamentais de pedófilos, sendo o mais predominante em âmbito familiar o pedófilo abusador.

A característica primária desse perfil abusador, vencida a barreira da oportunidade de acesso à criança, é a capacidade de manipulação sentimental em confundir os sentimentos da menor com as sensações provocadas pelas carícias íntimas; a imaturidade decorrente da idade leva a criança a considerar natural as carícias íntimas como gesto de carinho e zelo próprios da figura paterna; a ausência de violência torna quase imperceptível a prática em âmbito escolar e familiar quanto a parentes mais ou menos distantes, podendo se perpetuar por períodos consideráveis.

A escolha por findar o relacionamento incestuoso, quando não interceptado por terceiro, cabe ao abusador,  preferenciando período pretérito ao amadurecimento emocional da criança. De certo, um dos perfis mais dantescos e reprováveis de toda categorização parafílica.

Invalidação da vítima

Natural a repulsa e repugnância de qualquer pessoa ao se deparar com semelhante situação em seu lar; sobretudo, sendo mulher e mãe ao constatar que a vítima é sua própria filha. Entretanto, há as optantes pelo silente consenso.

Todo apoio e proteção para a superação do trauma é transferido para o agressor, e a consciente distorção de percepção do abuso sexual passam a favorecer o abusador, que se entende como a real vítima da situação ante a incapacidade de conter seus impulsos doentios, e assim ele se apresenta e reforça diariamente sua condição diante da esposa, figura eleita para garantir a impunidade de seus crimes.

A vítima se encontra em situação de maior vulnerabilidade e risco e, ao ter seus sentimentos invalidados, seu processo de desenvolvimento é afetado pela situação traumática não tratada. Da mesma forma, a obrigatoriedade de convivência diária com o agressor e o abandono materno são agravantes para o eventual desenvolvimento de quadros depressivos e transtornos psicológicos.

Não raro, o processo de “problematização” da vítima persiste até a fase adulta, garantindo socialmente sua descredibilidade em caso de revelação do abuso.

Considerável e louvável é o trabalho dos estudiosos em listar as características e modus operandi dos portadores dessa parafilia. Entretanto, é consenso acadêmico que a personalidade do pedófilo é extremamente plástica e adaptável às situações, podendo ser tanto uma pessoa bem quista socialmente como antissocial, pois age conforme seu desejo e necessidade e camufla suas intenções, contando com o benefício da dúvida. Mais eficaz é conscientizar aqueles ao redor, sobretudo a figura materna.

Não se trata de sobrecarregar ainda mais a mulher, mas sim conscientizá-la de seu poder de ação, pois suas decisões possuem efeito modelador da sociedade interferindo diretamente no bem-estar social das futuras gerações. O silêncio materno ante uma situação de abuso e o esquecimento do fato pela criança são a garantia do abusador. O ato, por si só degradante, já o desqualifica como pai, ainda mais como homem.

Pior que o silêncio dos inocentes é o silêncio daqueles que, podendo agir, nada fizeram.

 


Bibliografia

  • ANTONIO DE PÁDUA SERAFIM, FABIANA SAFFI, SÉRGIO PAULO RIGONATTI, ILANA CASOY, DANIEL MARTINS DE BARROS. Perfil psicológico e comportamental de agressores sexuais de crianças, (2009). Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
  • Flávia Argemiro De Almeida E Silva (2020): “O silêncio da mãe diante do abuso: A omissão materna”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (marzo 2020). En línea: http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2003silencio-mae-abuso
  • D’AVILA, FABIO ROBERTO. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
  • Estatuto da Criança e Adolescente

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

  • Código Penal

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

 

 

 

 

 

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