Fábrica de Leis

Imposturas e incompreensões sobre o regimento interno das casas legislativas

Autor

  • Roberta Simões Nascimento

    é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

28 de novembro de 2023, 8h00

No último texto, foram apresentados os diversos indícios de que existe uma certa inclinação, viés ou pensamento antiparlamentar permeando a maior parte da literatura produzida no Brasil sobre processo legislativo. Então, leitores escreveram para perguntar qual é o manual que esta colunista recomenda. Pois bem: o livro que embasa o curso que ministro na graduação da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) é o Processo Legislativo Constitucional, que já está em sua 6ª edição, de autoria do professor João Trindade Cavalcanti Filho.

Claro, essa não é a única referência que utilizo. Costumo indicar também outros textos/autores, trabalhar casos concretos e sugerir leituras complementares. Embora eu não coincida com todas as suas posições, o fato é que o livro do professor João Trindade é hoje o melhor ponto de partida para a compreensão das linhas básicas que regem a elaboração das leis no país. Até poderia escrever uma coluna só para dialogar com as ideias dele, se não fosse a necessidade de entrar logo no assunto da coluna de hoje.

ConJur

Em continuação à tarefa ingrata de apontar imposturas da academia e dos tribunais em matéria de elaboração das leis, o tema da vez escolhido é a relação dos regimentos internos das casas legislativas com as demais normas do ordenamento jurídico. Antes disso, porém, deve-se começar com uma breve incursão sobre as origens históricas dessa competência exclusiva da Casa Legislativa para elaborar e revisar seu próprio regimento interno.

Não será preciso recuar até a Grécia clássica, pois os legisladores gregos ainda não vislumbravam a necessidade de um regimento para suas atividades, ao menos isso é o que se infere da reconstrução que Jacqueline de Romilly faz das leis nessa época. Somente por volta do século 13, começou a surgir um regramento para as reuniões do parlamento na Inglaterra, sob a forma de lex et consuetudo parliament, isto é, convenções, regras não escritas, extraídas dos documentos, atas e diários que ficavam no arquivo do parlamento. Tais standing orders são a fonte dos dispositivos regimentais de quase todos os parlamentos modernos.

As regras de procedimento naquele então, contudo, não estavam codificadas de forma sistematizada. Curiosamente, os costumes ingleses foram compilados nos Estados Unidos, por ninguém menos que Thomas Jefferson, cuja experiência legislativa adveio de quase 40 anos de estudos, e, especialmente, das suas passagens em diversos cargos, com destaque para deputado do estado da Virgínia e, na qualidade de vice-presidente dos Estados Unidos entre 1797 e 1801, como presidente do Senado.

Pretendendo colocar fim aos efeitos adversos da ausência de regras, Thomas Jefferson publicou seu Manual of Parliamentary Practice, que representa a primeira sistematização das regras fundamentais sobre práticas parlamentares para garantir ordem nas sessões, segurança nas decisões e liberdade na atuação do parlamento. Foram pensadas para o Senado. Até hoje o Regimento Interno da House of Representatives (regra XXIX, 1) estabelece que as regras do Jefferson’s Manual regulam a Casa em todos os casos em que forem aplicadas. Essa é a magnitude da influência desse manual.

Os regimentos internos começam, então, a aparecer como repositório das regras diretoras da ação que se desenrola dentro dos parlamentos, como expressão da autonomia e independência institucional das casas legislativas, o que implica a liberdade para a ordenação dos temas a serem discutidos, do modo de conduzir as discussões e o procedimento de deliberação.

Desde essa concepção tradicional (e que perdura até os dias atuais), trata-se de competência exclusiva das casas legislativas a elaboração e revisão de seu próprio regimento interno e, em se tratando de matéria interna corporis, tais assuntos não se submetem a qualquer controle externo, isto é, não podem ser questionados fora do parlamento. Isso não quer dizer que “ter fundamento em norma regimental” torne a questão automaticamente em interna corporis, mas essa explicação fica para outro dia.

Spacca

O que se quer destacar é que seria possível falar em matérias “sob reserva de regimento interno”: assuntos cujo tratamento deve se dar exclusivamente via regimento, com exclusão de outras espécies normativas (como as leis), mas jamais sem que a própria Constituição possa dispor sobre tais matérias, porque inexiste assunto que não possa ser tratado no texto constitucional. Há uma questão de hierarquia.

Em outra oportunidade, já expliquei que os regimentos internos das casas legislativas são atos normativos primários, aprovados por resoluções, cuja força é extraída diretamente da Constituição. A competência da Câmara (artigo 51, incisos III e IV) e do Senado (artigo 52, incisos XII e XIII) se espelha, por simetria, também para as Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Daí que inexiste relação de hierarquia entre as leis e os regimentos internos das casas legislativas, os quais têm status de lei.

A relação entre essas duas espécies normativas se dá em termos de âmbito material e competência: matérias que começam e se concluem no interior das casas legislativas não devem ser disciplinadas por lei. Portanto, em caso de eventual conflito, deve prevalecer o regimento interno, que é a norma voltada para o interior parlamentar.

Inclusive, precisamente por isso, não estava de todo errada a afirmação do presidente da CPMI dos Atos de 8 de Janeiro, o deputado federal Arthur Maia (União Brasil-BA), sobre a precedência do regimento interno. A resposta só não foi perfeita porque conflito normativo dizia respeito, não a assunto da economia doméstica da Casa Legislativa (questão interna corporis), mas ao direito do advogado de usar da palavra na defesa de seu cliente. Já havia norma constante do artigo 3º, § 2º, da Lei nº 1.579/1952, incluído pela Lei nº 10.679/2003, e a previsão contou com o reforço expresso no artigo 7º, inciso X, da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da OAB), na redação dada pela Lei nº 14.365/2022. Daí, nesse caso, não teria como o regimento interno se sobrepor.

No entanto, a regra geral continua sendo a de que não há hierarquia entre tais espécies legislativas, por mais que essa separação ideal de âmbito material e competência entre ambos não seja o suficiente, como já se vê, para impedir eventuais conflitos entre disposições dos regimentos internos e previsões que constam de lei.

E onde está a impostura em relação a tudo isso que seria tratada na coluna de hoje? Está na jurisprudência dos Tribunais de Justiça dos Estados que — ignorando tudo o que se explica aqui sobre a lógica, status legal e reserva de competência dos regimentos internos — vem afirmando existir uma superioridade hierárquica da Lei Orgânica do Município em relação ao regimento interno da Câmara Municipal. Ora, como se acaba se ver, esse entendimento não tem o menor cabimento.

No entanto, em diversos Municípios, a Lei Orgânica — extravasando os limites do artigo 29 da Constituição — vem dispondo de assuntos que, em princípio, seriam da alçada exclusiva do regimento interno da Câmara Municipal. Por exemplo, o artigo 28 da Lei Orgânica do Município de Massaranduba, na Paraíba, dispõe sobre o dia e horário das sessões da Câmara Municipal. Na controvérsia levada ao TJ-PB, a Câmara Municipal ficou impedida de alterar tal horário via regimento interno, sob o fundamento de que prevaleceria a Lei Orgânica.

No caso da Lei Orgânica do Município de Piranhas, Alagoas, promoveu-se alteração do artigo 39 para permitir a antecipação da eleição para a Mesa da Câmara Municipal, e esse dispositivo serviu de fundamento para o seu presidente convocar, em 2017, as eleições para o biênio 2019-2020. Mais uma vez, ao julgar mandado de segurança impetrado por vereadores, o TJ-AL manteve a convocação das eleições antes do tempo, em atenção ao preconizado na Lei Orgânica.

Outros casos poderiam ser citados, mas esta colunista não quer cansar o leitor. Vou direto à crítica, que é o que interessa.

Existe uma decisão do TJ-ES cuja ementa vem sendo reproduzida em praticamente todas essas outras decisões dos TJs dos demais Estados que a seguem. Trata-se da Remessa Ex-officio nº 46050004632 (oriunda do processo nº 0000463-29.2005.8.08.0046, relator Elpídio José Duque, j. 19/06/2007, Segunda Câmara Cível, p. 25/07/2007). Quem abre o inteiro teor do acórdão vê que toda a fundamentação é espartana e se resume a únicos dois parágrafos, que — na humilde opinião desta colunista — não terminam de justificar a tal “superioridade” da Lei Orgânica em face do regimento interno da Câmara Municipal.

Como se não bastasse o erro desse entendimento, existe o problema agravante de que tais decisões equivocadas ficam sem possibilidade de correção pelas instâncias superiores, pois vêm sendo consideradas pelo STF como direito local, esbarrando no enunciado nº 280 da Súmula do STF: “Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário”. Ou, então, aplicam-se outros entendimentos defensivos.

Nessa linha, cite-se, por exemplo, o que aconteceu no RE nº 679.718, em que a ministra Cármen Lúcia negou seguimento a recurso contra decisão do TJ-MA. O caso concreto envolvia, precisamente, conflito de normas entre a Lei Orgânica do Município de Montes Altos, Maranhão, e o regimento interno da Câmara Municipal. A decisão recorrida determinou que prevalece o disposto na Lei Orgânica, pois esta gozaria de “superioridade hierárquica”.

O fundamento utilizado pela ministra para não conhecer da questão foi a falta de prequestionamento, com base nos verbetes sumulares nº 282 (“É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”) e nº 256 (“O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”), ambos do próprio STF.

Em resumo, tudo indica que esse entendimento equivocado dos tribunais pátrios continuará sem correção, por conta dessa jurisprudência defensiva. No RE nº 1.159.353-AgR, o ministro Gilmar Mendes suscitou a impossibilidade de reexame de acervo fático-probatório (pelo enunciado nº 279 da Súmula do STF: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”). Ou seja, a corte não vislumbra que existe aí uma questão constitucional.

E o pior é que o próprio STF tem entendimento assentado no sentido de que os TJs dos estados, ao realizarem o controle abstrato de constitucionalidade, somente podem utilizar, como parâmetro, a Constituição do Estado (RE nº 421.256). Não cabe a utilização da Lei Orgânica Municipal como parâmetro de controle, por ausência de previsão constitucional, como decidido desde o RE nº 175.087.

Ao julgar a ADI nº 5.548, mais uma vez o STF foi enfático no sentido de que não cabe controle concentrado de constitucionalidade de leis ou ato normativos municipais contra a Lei Orgânica respectiva. A única exceção é a Lei Orgânica do Distrito Federal, que faz as vezes de “Constituição distrital”, de forma que cabe ADI junto ao TJ-DF utilizando como parâmetro de controle a LODF (RE nº 577.025).

Pronto, explicada impostura jurisprudencial dos TJs quanto ao papel dos regimentos internos das Casas Legislativas, especialmente os das Câmaras Municipais, o caso é de trazer as últimas considerações de hoje sobre o âmbito material dessas normas regimentais.

Como se explicava acima, a Constituição de 1988 (artigo 51, incisos III e IV, e artigo 52, incisos XII e XIII) listou algumas matérias típicas dos regimentos internos. Mas essas matérias listadas não são exaustivas, e os regimentos internos avançam sobre outras questões, por exemplo, para esmiuçar a competência parlamentar de fiscalização e controle; disciplinar os direitos e deveres dos parlamentares; fixar as sanções; criar os direitos de oposição política (obstrução parlamentar); institucionalizar a minoria (e suas garantias); o modo pelo qual se dá a participação da sociedade; as regras do debate; entre outras normas do trabalho parlamentar. São normas jurídicas que, como se vê, criam direitos.

Na introdução que abre a compilação do Jefferson’s Manual feita por Wilbur Samuel Howell, fica evidenciado que a preocupação de Thomas Jefferson era oferecer protocolos para a ação parlamentar. Sua crença era a de que a negligência ou o desvio em relação às regras favorece os mais fortes. Em momento algum aparece a ideia de que os regimentos internos devem servir para “controlar” a própria atuação parlamentar desde fora. Mas isso já leva a outro assunto, que ficará para coluna futura.

Por fim, a participação de hoje não poderia terminar sem mencionar o excelente trabalho organizado pela professora Fabiana de Menezes Soares, Thaís de Bessa Gontijo de Oliveira e Caroline Stéphanie Francis dos Santos Maciel, que traz uma visão comparada dos regimentos internos de parlamentos de 11 países.

Autores

  • é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB), advogada do Senado Federal, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha), doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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