Opinião

A ADPF 442 sob o crivo do judicial review responsivo

Autor

  • Herick Feijó Mendes

    é advogado mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos (UERR) especialista em Direito Público e ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

19 de fevereiro de 2024, 7h04

O Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF 442, irá debater sobre a descriminalização do aborto no Brasil, assunto extremamente sensível e delicado.

Apesar de não ter uma data definida para a retomada do julgamento, que já possui o voto da ministra relatora Rosa Weber (aposentada), a corte estará no centro da discussão de elevado teor moral, além de colocar à prova, novamente, o seu papel constitucional.

As cortes constitucionais passaram a ter peso considerável no debate político, muitas das vezes instada pela anemia legislativa ou pela fuga do parlamento em tratar assuntos polêmicos que não agradariam o público majoritário (eleitorado).

Isso gerou críticas à teoria do judicial review [1], principalmente sobre os limites dos tribunais em invalidar leis ou atos normativos do parlamento.

Inegavelmente, as cortes tiveram participação decisiva na garantia de direitos civis e políticos no decorrer da história, dando densidade e força normativa necessária às promessas da Lei Fundamental.

Não obstante, é preciso compreender que algumas soluções precisam de estruturação duradoura, à luz de um diálogo institucional, prestando-se deferência a cada pilar democrático estatuído pela Constituição.

Dessa premissa que partiu Rosalind Dixon, professora de Direito (Austrália), ao tratar do judicial review responsivo na atuação da corte constitucional, de modo a traçar argumentos sobre as formas de controle (forte-fraco/fraco-forte) no sistema de verificação de compatibilidade constitucional.

Certamente a tese é passível de críticas, assim como é necessário cautela para aplicações genéricas, considerando que cada país possui suas peculiaridades e submetem-se a contextos constitucionais distintos.

No Brasil, apesar de a CF/88 trazer como competência do Supremo o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, isso não afastou o permanente desconforto com algumas decisões, ainda mais quando se tratam de desacordos morais complexos e de difícil resolução.

Nixon defende que nos casos em “que o âmbito ou significado da linguagem constitucional não seja claro, os tribunais devem interpretar essa linguagem com vista a combater três grandes riscos para a democracia: (i) fontes de poder de monopólio democrático; (ii) pontos cegos democráticos; e (iii) cargas de inércia” (2022, p. 1).

Superação de bloqueios legislativos
Uma nova teoria sobre a revisão judicial — moderada em determinadas circunstâncias — nos possibilita extrair instrumentos primorosos para o momento que muitos países vivem, sobretudo quando estamos a falar da solidez da democracia e da consolidação das cortes como guardiã da Constituição.

O intuito da teoria é dizer que apesar de a revisão judicial buscar exercer um controle mais “fraco”, isso possibilitaria superar bloqueios legislativos e garantir resoluções mais fortes quanto à sua instrumentalização, estimulando que o legislativo trate de determinadas matérias.

Temáticas polêmicas como aborto, drogas e política em geral, quando levadas à Suprema Corte, levantam, imediatamente, de um lado, a resistência contra a atuação do Poder Judiciário em tais assuntos, e, de outro, a busca incansável de parcela social por direitos civis não contemplados pelo legislativo diante da sua inércia sistêmica.

Desse resumo problemático, é que se deve partir para a busca de soluções constitucionais que fortaleçam nossa democracia, devendo o Poder Judiciário, especialmente em sede de controle de constitucionalidade, atuar racionalmente nos limites de sua competência.

Portanto, a quem cabe tratar sobre o aborto? Uma decisão judicial detalhada e forte seria a melhor solução constitucional e democrática?

A busca pelo diálogo jurídico-legislativo
O judicial review responsivo pode ser um caminho teórico interessante para alguns problemas atuais, a partir de evidências recentes experimentadas em outros países.

Até porque a defesa de um controle de constitucionalidade, em determinadas situações e mais ameno, possibilitará resoluções mais fortes e sólidas, com reforço de representação.

A ideia, portanto, é “combinar a confiança em modos de revisão fracos e fortes quando se procura combater os pontos cegos democráticos e o fardo da inércia — ou seja, uma combinação de soluções urgentes e coercitivas com modos de revisão menos prescritivos” (RIVERA apud DIXON, On Dixon’s Responsive Theory of Judicial Review: How Responsive Can The Responsive Model Be?. 2023, p.2).

As cortes devem, independentemente da combinação de direitos fortes ou instrumentos fracos e vice-versa, buscar e criar oportunidades para um diálogo jurídico-legislativo sobre questões constitucionais. A teoria pede dos juízes “que combinem revisão ativa e moderação cuidadosamente calibrada” (DIXON, 2022, p. 2)

Superação de Roe v. Wade
É nesse ponto, aliás, que nos cabe fazer uma referência sobre a superação do precedente Roe v. Wade 410 U.S. 113 (1973), em que a Suprema Corte dos Estados Unidos detalhou os prescritivos ao direito ao aborto. O que se observou, após isso, foi uma reação que dificultou sobremaneira a instrumentalização do direito.

Em 2022, foi levado à Suprema Corte o caso Dobbs vs. Jackson Women’s Health Organization, por meio do qual se questionou a constitucionalidade de uma lei do estado do Mississipi que proibia a prática do aborto caso a gestação fosse superior a 15 semanas.

No julgamento, o juiz Kavanaugh defendeu que “O Tribunal no caso Roe atribuiu-se erroneamente a autoridade para decidir uma questão criticamente moral e política que a Constituição não concede este Tribunal decidir. Como juiz Byron White explicou sucintamente, Roe foi um exercício imprevidente e extravagante do poder de revisão judicial” (19-1392597 U.S. 215 , 2022, p. 130).

O Chief of Justice John Roberts parece seguir uma linha responsiva de calibragem, ao dizer, no caso, que “não tenho a certeza, por exemplo, de que a proibição de interromper uma gravidez desde o momento da concepção deva ter o mesmo tratamento pela Constituição como uma proibição após quinze semanas. Um Membro atencioso deste Tribunal aconselhou certa vez que a dificuldade de uma questão ‘nos adverte a observar as sábias limitações da nossa função e a confinar que devemos decidir apenas o que for necessário para a resolução do caso imediato’.” Whitehouse v. R. Co., 349 US 366, 372–373 (1955) (Frankfurter, J.,).

Observando-se todas as nuances do caso e das balizas do judicial review responsivo, evidencia-se que a corte constitucional possui papel determinante na solidificação da democracia, sendo um instrumento relevante na criação e oportunização de diálogos institucionais a permitir que que temáticas complexas sejam passíveis de reforço representativo, não cabendo ao tribunal, em determinadas circunstâncias de desacordos morais, detalhar e prescrever a resolução do problema por completo, permitindo-se que o parlamento também exerça seu papel na calibragem dos direitos a serem protegidos pela Constituição.

É possível, à luz da superação de Roe v. Wade, que decisões que detalhem ou prescrevam em absoluto o direito, sem espaços para diálogos institucionais, sofrem resistência, efeito backlash e até mesmo uma possível superação, ainda que se leve certo tempo, ante a vulnerabilidade representativa e solidificação da resolução.

A adoção da revisão judicial moderada no caso da ADPF 442 vai permitir uma resolução mais sólida e que mantenha a progressão dos agentes democráticos no cumprimento das promessas constitucionais, fortalecendo a democracia, resolvendo o caso emergente e permitindo que o parlamento possa, dialogicamente, afastar sua debilidade em discutir assuntos sensíveis à sociedade.

 


Referências

Dixon, Rosalind, In Defense of Responsive Judicial Review (May 5, 2022). UNSW Law Research 22-11, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4100843 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4100843

Velasco-Rivera, Mariana (2023) “On Dixon’s Responsive Theory of Judicial Review: How Responsive Can the Responsive Model Be?,” National Law School of India Review: Vol. 34: Iss. 2, Article 20. Available at: https://repository.nls.ac.in/nlsir/vol34/iss2/20.

[1] A revisão judicial é um processo pelo qual as ações executivas , legislativas ou administrativas  estão sujeitas à revisão pelo Judiciário.

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